O Devoto e o Profano

 
Sobre: "O Devoto e o Profano" é uma pequena história fictícia em 3 capítulos que escrevi há alguns anos. É um dos meus primeiros "experimentos" como escritor. Provavelmente influenciado pelos estudos do vestibular que prestava na época, tentei misturar a linguagem bem humorada de alguns contos brasileiros com críticas científicas. Já havia postado o texto no Recanto, mas decidi repostar neste novo formato aproveitando outros recursos do site. Espero que se divirta com a leitura!

 

 
 
Capítulo 1 - O Casório


Já era tarde naquela velha cidadezinha escondida no interior dos interiores. Ruas pequenas e estreitas sem calçamento algum. Casas pequenas, tão simples, algumas caindo aos pedaços. A igreja frágil e maltratada. Cidade com poucos habitantes, tão poucos, humildes, desafortunados e perdidos no tempo.

Era o dia tão esperado. O casamento de João e Maria. Maria filha do prefeito. Era a família mais popular da cidade. A igreja estava lotada. Quase toda a cidade estava presente. Padre Teodoro estava no altar aguardando os noivos, assim como Pedro, homem malandro e muito sincero que esbanjava assunto e simpatia por todos (ou quase todos) na cidade, sentado em uma das primeiras fileiras.

A maior parte dos convidados estava ali presente interessada na festa que ocorreria logo após o casamento. Não havia nada que reunisse mais as pessoas naquela cidade do que comida à vontade. Podia-se ouvir Pedro cochichando com alguém do seu lado:

- Quando vão acabar com isso? Estou morrenu di fome!

Cochichos como o de Pedro eram ouvidos por todo canto. E após um belo tempo de espera, eis que surge o noivo. João entra na igreja vestindo um terno simples não muito novo, dando passos curtos e lentos, muito lentos, e ao fundo um violinista tocava notas desafinadas com aparente esforço.

- Vamo home! Ande logo com isso! – Diz Pedro faminto e apressado.

João chega ao altar depois de uma longa caminhada com direito a tchauzinhos e beijinhos até a música parar e um silêncio divino tomar conta da igreja. As portas que já haviam se fechado, abrem-se novamente e logo surge a noiva Maria de braço dado a seu pai, o prefeito. A música recomeça, dessa vez com mais intensidade, mas ainda desafinada. Com passos curtos, mas não muito lentos, o prefeito mantinha um sorriso interminável ao lado da filha, satisfeito e alegre como nunca. Já Maria estava neutra, expressando até certo desprezo como se não se importasse com o que estava acontecendo.

Quando chegam ao altar, o prefeito entrega a mão de sua filha a João e os noivos seguem em direção ao altar. Padre Teodoro, ao sinal do seu único ministro, Tobias, dá início a celebração:

- Boa noite meu povo! – Exclama – Estamos aqui hoje testemunhando a união deste belo casal! Uma união sincera e pura que ultrapassa os medíocres valores carnais. - Todos estavam atentos às palavras do padre, exceto Maria, que mantinha seu olha de desprezo - Um homem e uma mulher que se unem num laço de amor, afeto, carinho, lealdade e sinceridade. Um amor que não se cabe palavras para descrever. E essa é a mágica dessa magnífica emoção, o amor. O amor é uma chama! Uma energia divina que nos inspira a sermos melhores, a sermos melhores para os outros! - E envolvido e contagiado por suas próprias palavras, o padre toma a frente do altar e continua sua pregação:

- O amor não poder ser explicado pela lógica, pois está fora da nossa compreensão, somente a consciência divina pode desvenda-lo. Deus! Deus é amor! Deus é o amor! Nada mais pode nos aproximar mais do Senhor do que o amor! O amor move montanhas! O amor abre portas onde só existem paredes! O amor é a resposta em meio à incerteza! O amor é o refúgio diante do temporal! O amor é o consolo em meio às mágoas! O amor é a luz no fim da escuridão! O amor é o pão de cada dia! O amor é o queijo na goiabada da vida! O amor é...

- Está bem, sinhô padre – Pedro interrompe – Já sabemos o que é o amô. Agora andi logo com isso.

Faz-se um pequeno silencio e o padre Teodoro com uma expressão de impaciência retoma suas palavras:

- Como eu dizia, o amor é... – E ele observa a igreja com várias pessoas cochichando, algumas com olhos semiabertos, já outras até roncando – O amor é... – Tentava o padre, mas vencido pelo desinteresse dos presentes, avança a celebração:

- É... Agora darei início a união matrimonial de Maria e... Esse senhor aqui – Diz sem jeito – Antes de mais nada, se houver alguém que se oponha a esta união, manifeste-se agora ou cale-se para sempre! - A igreja retoma o silêncio por alguns instantes – Ninguém? – Indaga o padre – Então continuemos – O padre volta aos noivos com a bíblia em mãos e segue os votos matrimoniais:

- É... Hum... O senhor... É...

- João. – Acrescenta o noivo.

- Senhor João, o senhor aceita Maria como sua legítima esposa? Promete amá-la e respeitá-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença até que a morte os separe?

- Sim! Sim, sim! – Responde João eufórico.

- E a senhorita, Maria. – O padre se aproxima da noiva – Aceita João como seu legítimo esposo? Promete amá-lo e respeitá-lo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, e claro... – Cochicha – também promete continuar vindo à igreja todo domingo e continuar contribuindo com o dizimo? Isso é muito importante! Quase que me esqueço! – O padre toma frente dos noivos mais uma vez e dá início a outra pregação:

- São muitos os casais que se esquecem completamente do Senhor! Primeiro fazem tudo correto, seguem as regras, mas depois de conquistarem o que querem, esquecem de Deus! Deus que continua ao teu lado esperando que você o perceba, que você o aceite ou que você ao menos se lembre dele! Porque Deus, Deus é amor, Deus é o amor! E não há vida com amor sem Deus! Deus é tudo! Deus é o amor! Não há como viver sem Deus! Deus é vida! Deus é harmonia! Deus é consolo! Deus é a resposta para os anseios da vida! Deus é...

- Ora sinhô padre, ande logo com isso! Esse tal de Deus aí nem se qué existe! – Pedro interrompe de novo e todos na igreja ficam inquietos. Podia-se ouvir cochichos indignados por todas as partes.

- Que absurdo está dizendo? – Questiona o padre Teodoro espantado caminhando lentamente em direção a Pedro.

- Ora! Estô dizendo que esse tal Deus aí que o sinhô fala nu existe! – Responde já de pé.

- Ora! De onde o senhor tirou uma barbaridade dessas?

- Ora, mais foi o dotô que me disse ontem cedo quando fui me consulta. Ele me pergunto por que eu havia demorado tanto pra ir vê-lo. Ai eu disse pra ele que no ano passado tinha juntado um dinheiro o ano todinho pra doar pra igreja e depois rezá bastante e assim recebê a cura pras minha doença. Dai eu juntei o dinheiro, doei pra igreja e rezei bastante, mas continuei ruim! Ai então passô-se mais um ano, eu juntando meus trocadinho, só que dessa vez eu resolve í nu médico. Foi aí, então, que o dotô me disse pra eu pará de me dexá levá por essas coisa, que esses papo de igreja ai é tudo história pra pegá dinheiro do povo.

- Ora! Como ousa interromper uma celebração como essa e ainda por cima desta maneira? – Berra o padre furioso – Isso é um absurdo! Um pecado descomunal!

- Ora, e quem se importa com pecado já que nada disso existe? – Diz Pedro debochado.

- Era só o que me faltava! Responde o padre fora de si.

Naquele momento começam a surgir pessoas argumentando a favor do padre. Um homem sentado nos fundos da igreja se levanta:

- O sinhô Pedro está enganado. Eu estive doente há um tempo atrás e só depois de rezar bastante arranjei um dinheiro pra compra uns remédio e me curei. – Comentários positivos são ouvidos, mas Pedro rebate:

- Ora home! Então nesse caso não foru as suas orações que lhe salvaru, mas os remédio que o sinhô conseguiu compra dobranu o preço do leite que vende na cidade, nu é mesmo?

Comentários indignados agora são ouvidos e o homem se senta envergonhado. A igreja continua inquieta até outro sujeito mais a frente se levantar e dizer culta e calmamente:

- Certa vez eu estive num hospital. Havia me acidentado no trabalho, corria risco de vida. Mas Deus, que me ama muito, teve piedade de mim e me curou!

E Pedro logo responde com um sorriso debochado:

- Ora, se Deus lhe ama tanto assim como o sinhô diz, por que então ele deixou o sinhô se acidenta e fica a bera da morte, primeiro?

A igreja fica inquieta com inúmeros comentários, alguns já a favor de Pedro. Maria, até agora em silêncio, se pronuncia pela primeira vez:

- Então Pedro, quer dizer que tudo isso é mentira? Que não existe essa coisa de Deus, nem céu, nem inferno?

- Sim, ora! É tudo invenção! Tudo história! – Responde Pedro satisfeito e sorrindo.

- Então se é assim, eu que não me caso! – Diz Maria abandonando seu noivo no altar e indo para perto de Pedro.

- Maria! – Diz o prefeito se levantando indignado.

O noivo José, perplexo, diz:

- Ora, Maria, o que está fazendo?

- Ora digo eu! – Responde Maria firme – Você sabe que só aceitei me casar contigo porque meus pais queriam que eu me casasse com um homem da mesma religião que a nossa, caso contrário eu sofreria muito depois. Mas como nada disso é verdade, não preciso fazer isso mais!

E de repente as portas de igreja se abrem com violência e um homem cambaleando aparece:

- Eu protesto!
...
 


Continua no Capítulo 2 - O Protesto
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Leandro Abreu
Enviado por Leandro Abreu em 04/12/2018
Reeditado em 04/12/2018
Código do texto: T6518660
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