Filhos da ignorância (setembro de 2018)

João Guando voltava do aniversário de casamento de uma prima guiando a bicicleta pela noite escura rente ao acostamento de uma rodovia. Deixava para trás muitos copos vazios de cerveja e uma discussão acerca da propriedade de um grande terreno baldio. Temendo os ânimos exaltados na briga decidiu ir embora para casa.

Trocara palavras duras com os filhos de seu primo Maurício, que insistiam com ele que a propriedade do terreno era de seu pai. Movidos pelo ânimo perigosamente alterado pelo álcool, que lhes escorria queimando goela abaixo, desentenderam-se. Travaram uma guerra de acusações em um crescendo até o momento em que João Guando partiu.

No princípio de toda a conversa, seu primo Maurício manteve-se calado. Permaneceu observando tudo sentado em uma cadeira de palha indiana ao lado dos dois filhos, que se embriagavam como ele, e só entrou verbalmente na briga ao final da discussão – dando mais força à chuva de ofensas que já tomava conta do quintal de trás da casa.

A escritura do tal terreno teria sido dada de presente a João Guando por sua avó, havia já vinte anos, antes de seu falecimento. Mas, teimava o pequeno clã de Maurício – ele, Telmo José e Joel Osíris – que o terreno havia sido comprado de sua avó anos antes da alegada doação. João Guando, que detinha a escritura, assegurava que era tudo mentira.

Para quem acredita em histórias de outro mundo, talvez acredite como eu que a questão do terreno era um pretexto para subjugar, ofender, maltratar o primo João Guando. Eis que João possuía uma pinta de uns três centímetros no meio da testa, o que fez com que ouvisse zombarias por toda a vida: sua pinta lhe concederia poderes sobrenaturais.

Maurício estava do lado da família que via naquilo algo diabólico e tratava o caso do orgulho de João Guando em torno da pinta com desdém. É que João aprendeu a se orgulhar da pequena mancha e a acreditar que lhe trazia sorte. Nas poucas vezes em que lembrava de rezar à noite acreditava ter o dom de falar diretamente com Deus.

Sendo assim, e para quem acredita em histórias do outro mundo, saiba que para algumas pessoas – como era o caso da família de Maurício – o mal havia encarnado na estrutura frágil de metro e cinquenta e cinco de altura e uma pança que apontava em direção aos joelhos das pernas finas. E havia contra ele ainda, obviamente, a pinta no meio da testa.

João Guando era um homem diferente, ao menos para nós que acreditamos em histórias do outro mundo: a pinta o fazia diferente. Mas também era um homem pobre e feio, que vivia de pequenos concertos de carros na oficina de veículos. A venda do terreno baldio um dia serviria, oportunamente, para fazer justiça frente a seus parcos meios de vida.

Pois, naquela noite, não se pode dizer com certeza o motivo principal – material ou sobrenatural das coisas – João Guando entrou em uma infeliz discussão dispondo de pouco para defender-se. E neste momento, como sabemos, há o ódio que se propaga. O ódio é uma irmandade apoiada em julgamentos equivocados sobre a vontade de Deus.

Na escuridão da rodovia, notou quando um farol alto atrás de si piscou. O motor do carro diminuiu e o veículo encostou ao lado da bicicleta de João Guando. Esse, logo reconheceu o primo Maurício na direção, Telmo José e Joel Osíris no banco de trás. Notou os bastões de madeira nas mãos dos ocupantes do carro e sentiu pena de morrer.

Como seria impossível escapar do carro onde estavam os três primos ameaçadores, parou a bicicleta e conseguiu apenas balbuciar um autoritário “não!” que foi lançado ao vento. Os veículos de faróis altos que vinham pela estrada também foram incapazes de salvar João Guando – ou lhe permitir identificar de onde vinham as pancadas.

João foi golpeado várias vezes ali mesmo, no acostamento de veículos da rodovia. Além das inúmeras pancadas dos pedaços de pau na cabeça houve o momento dos chutes e pontapés. Os xingamentos não foram poucos: besta encardida, ladrão, o escolhido da vó filha da puta, viado, macumbeiro pobre, anãozinho preto, etc.

Os agressores não cederam. Dispunham de força para subjugar João Guando e golpeá-lo. Toda a ação demorou bem mais que uma hora, a contar do momento da abordagem ao momento em que empurraram o corpo ainda vivo de João – junto com sua bicicleta – para além do acostamento morro abaixo, onde havia uma espécie de charco.

É que cansaram de feri-lo porque, como já não se mexia, acreditaram já estar morto. João Guando contribuiu para enganá-los quando pensou na necessidade de se fingir de morto como estratégia para que cessassem os golpes. Ainda consciente, rolou todo o caminho de vinte metros abaixo, dentro da área encharcada coberta de mato alto.

Com a exceção do ruído dos carros que passavam logo acima de onde estava, não se ouvia muito e via-se pouco na noite escura da rodovia naquele sábado à noite. Mas foi capaz de ouvir um estrondo de motor vindo da rodovia quando Maurício girou a ignição do velho Passat caramelo 1986 e acelerou o carro para longe da cena de um crime.

A dor intensa no corpo o impedia de mexer-se, mas pôde agradecer a Deus a retirada dos agressores. Notou que a água impregnava sua roupa e que tinha de manter a cabeça elevada em relação ao charco, mas aos poucos ele afundava e se afogava. Foi então que pediu a Deus que lhe desse forças a ele, Seu amigo especial a quem não abandonaria.

E Deus, ouvindo suas preces, parou o tempo. A lua no céu não se movia. Todos os carros, de toda a estrada, pararam. E o frio que sentia até então já não o incomodava. Nada tinha importância porque o silêncio ia dominando tudo o que – com os sentidos muito prejudicados – João ainda podia perceber. Enquanto isso, ele afundava.

O que dizer para nós, que acreditamos nos poderes sobrenaturais? Ah, espíritos roídos pelo ódio, esse ódio se propaga! O ódio é como uma irmandade! Sabemos que João Guando é um homem especial em muitos aspectos e que isso contribuiu para o desfecho violento de sua história de vida. O final da vida de mais um filho de Deus.