Clarisse moça (agosto de 2018)

Deveria doar as roupas por saber não mais usá-las. Ouvia da mãe que nunca voltaria ao corpo de outros anos: Ana argumentava que era atitude egoísta não permitir que as roupas fossem embora. A mãe de Clarisse acreditava que a garota, em quem apenas despertava a puberdade, devia doar para os pobres o que não lhe servia mais.

Mas o apego de Clarisse era algo profundamente entranhado. No momento de escolher entre as bonecas e um vestido bem cintado a então já moçinha sentia-se desorientada por não saber escolher como escolher. As bonecas dela, que dormiam amontoadas no quarto junto a uma pilha de vestidos de criança, simplesmente não queriam ir embora.

Foi quando seu tio Marco e sua mãe Ana tiveram a ideia de remover os pertences de Clarisse enquanto ela estava na escola. Acomodariam os saiotes, as dezenas de pares de pequenas sapatilhas, muitas outras peças de roupa e as bonecas em caixas de papelão. Depois, levariam na caminhonete de tio Marco tudo para sua casa, dobrando a esquina.

O plano dos dois incluía reacomodar as bugigangas de Clarisse novamente, depois de chegadas à casa de tio Marco. É que com maior tempo poderiam passar tudo por uma triagem cautelosa, separando tudo de acordo com os destinatários. Devagar, separariam o que iria para o bazar da igreja e o que iria para o setor de pediatria de um hospital.

Em uma segunda-feira de manhã puseram o plano em prática. Clarissa foi inocentemente para a escola, e quando o transporte escolar apenas havia saído chegou tio Marco para ter com Ana – trazendo para executar o plano seis caixas grandes de papelão – correndo para dentro os dois com aquela destreza que só os vilões possuem.

Primeiro, avançaram sobre as bonecas. Clarisse tinha seguramente mais de quinze e Ana lembrou-se então que já não fazia ideia do quanto mimara a filha presenteando-a com tamanha quantidade de brinquedos. Tio Marco, a um comentário de Ana sobre isso, esboçou um sorriso triste e respondeu que não sabia na pele o que Ana queria dizer.

Tio Marco havia sido casado por mais de oito anos, mas sua esposa falecera antes de poder parir um filho, havia dois anos. A tristeza de não ter tido um filho o irmão de Ana trazia no semblante e no coração. De uma maneira bem compreensível para qualquer um, o afeto que poderia ser dado a uma cria sua ele o transferia para a sobrinha.

As bonecas haviam sido compradas todas por Ana, que nunca conseguira negar um pedido de Clarissa. Tio Marco não lhe havia comprado sequer uma única boneca, por que preferia mimar Clarissa com vestidinhos. Os vestidinhos que ele havia presenteado Clarisse encheram três caixas. Os vestidos restantes ocuparam uma.

Agiam como dois vilões, assim se sentiam os dois, juntando os pertences de Clarissa. Toda montanha de brinquedos e vestidos comprados ao longo de quinze anos estavam ali, pouco a pouco e feiamente acomodados em caixas enormes de papelão. O trabalho lhes tomara duas horas, ao cabo do qual levaram de carro tudo para a casa de tio Marco.

Sentiam os dois gatunos que a tarefa que empreendiam era importante, era necessária. Havia alguma mudança na vida de Clarisse que havia de ser marcada: era o fim da infância, chegada da adolescência. Não podiam deixar de marcar esse rito de passagem para a menina que se tornava moça e ela teria que compreendê-los um dia.

Os dois vilões, afinal, não eram assim muito bandidos. De fato, era fácil julgá-los por mocinhos. Havia um serviço feito à moça que, um dia, lhes haveria de agradecer. Ana argumentava sempre com Clarisse (mas nunca fora entendida) que abrir mão do passado era necessário. As caixas levariam embora um tempo que não voltaria mais.

E chegaram os dois na casa de tio Marco. As caixas de bugigangas até não pesavam tanto assim como previram. Puseram-se a acomodar tudo no quarto dos fundos, abrindo uma a uma as caixas e, em cima de uma enorme cama, depositaram com zelo todo o conteúdo delas. Havia a pressa de terminar o trabalho antes que Clarisse retornasse.

Não era mesmo este o momento combinado para fazer a triagem dos pertences de Clarisse. Em um outro dia, quando Clarisse se houvesse talvez cansado de chorar a perda das bonecas, tio Marco e Ana fariam secretamente a separação dos objetos. Ana já havia até conversado com o padre da paróquia e com uma enfermeira do hospital.

Mas, um instante de silêncio foi o suficiente para que tio Marcos fosse dominado por uma mão invisível que o nocauteou – sem que este pudesse entender prontamente o que lhe houvera atingido. Sentiu subitamente uma grande tristeza invadindo-o por completo. Era a lembrança de um passado seu que não voltaria mais.

Talvez a tristeza lhe tenha nocauteado por conta do quarto onde estavam. Algo ali criava para o homem uma atmosfera de tristeza: aquele era o antigo quarto que compartilhara com a esposa falecida em seus oito anos de convivência. Tio Marco comprimiu o diafragma para impedir o choro e sentou-se no chão frio, no chão.

Ana, perspicaz, deduziu o que se passava com o irmão, e silenciosamente aproximou-se dele sentando-se também no chão a seu lado, envolvendo-o com o braço na altura dos ombros. Depois, sussurrou seu nome e apontou com o dedo as caixas. A vida, pensou Ana, passara para ele como passou para Clarice e, de fato, passaria para qualquer um.

Os irmãos demoraram-se por um momento no chão, lado a lado. Depois de uns minutos de silêncio levantaram-se e se abraçaram. Ana se lembrou de cobrir o irmão de beijos no rosto e de sorrir. Tio Marco não atinou o motivo do sorriso, mas algo prontamente fez sentido lá dentro, e por isso devolveu de forma automática o abraço de Ana.

Tio Marco entendia o esforço de Ana para trazê-lo à realidade. O tempo passa, calando as vozes que ficaram para trás. Era o mesmo para ele, para sua irmã Ana, para Clarisse. Todos deviam abrir mão das lembranças do passado: ele que perdera sua esposa, Ana que perdia uma criança, e Clarisse que perdia sua infância. E nada voltaria a ser.