Odisseu, o Alemão e o Brasil: mais aqui que acolá

******************* Vorspiel *******************

De novo Ulisses, meu amigo solerte. Meu compadre. Hoje fomos encontrar um amigo em comum, Valmir Alemão, que estava de passagem pela cidade. O Alemão, nosso amigo, nosso irmão. Já começo a fazer versos, e o leitor destas linhas não deve gostar de versos, caso contrário iria ao Bandeira, pois este sim sabia fazer versos.

Mas como eu dizia, fui com meu amigo Odisseu encontrar o Alemão. Uma tarde primaveril. Ulisses, como de costume, estava radiante. Exalava aquela alegria leve que só os jovens têm. Eu guardava-o complacente, pedindo a Deus com todo o coração que não deixasse meu amigo envelhecer.

Saímos a pé, fazendo um longo percurso até chegar à linda praça onde o Alemão nos esperava. Lá estava ele, nosso teutônico amigo, como sempre pronto a nos despejar aquela enxurrada de consoantes que são seu pasto diário. Nós, Ulisses e eu, ficamos sempre boquiabertos diante daquele “paladar”.

--Como vai, Herr Valmir?, atalho eu num tom amistoso.

--Mir geht’s gut, responde secamente nosso Siegfried.

A praça está movimentada. Alguns grupos musicais se apresentam. Detivemo-nos diante de um sambista que tocava Bob Dylan numa versão reggae para uma platéia de transeuntes fascinados que por ali passavam e ali pararam. Ulisses já começava a balançar o esqueleto quando eu disse: “vamos tomar uma em um boteco aqui perto”. Valmir, como bom alemão, não pestanejou para aceitar a proposta.

********* Aqui Nessa Mesa de Bar ************************

Fomos ao Bar do Fabão. Ali nos sentamos, ali pedimos uma cerveja. Ali, naquela mesa de plástico, a cerveja chegou: gélida como uma norueguesa; saborosa como uma brasileira; inebriante como uma tenista russa.

Valmir foi o primeiro a falar:

--Pô, aqui tá um calor infernal!

--Mas é estamos em julho, Valmir. Respondi estupefato. Valmir havia realmente incorporado profundamente seu filogermanismo.

--Ja ich weiß es. Mas, sabe como é, né? Sou nórdico demais para esse clima brasileiro. País de merda, clima de merda.

Valmir odiava o Brasil. E fazia sempre o elogio da Alemanha à custa da própria pátria. O rosto de Ulisses se contorcia ao ouvir aquilo. O meu amigo Odisseu era um tipo antigo, quase esquecido, espectral: era um patriota. Bastava uma criticazinha qualquer à sua pátria amada, idolatrada, salve, salve, e o itacense sacava o seus estudos sobre Gilberto Freyre e os jogava na cara do prepotente crítico. Porém, não ousara até então contradizer Valmir. Este último, colérico como era, podia meter-lhe um soco na cara enquanto assoviava o "Walkürenritt".

Por fim, Odisseu resolveu romper o silêncio:

--Pô Valmir, não precisa esculhambar, né? O Brasil também tem suas virtudes. E o Machado? E o Carlos Gomes? E o Samba, caralho? Acaso não valem nada?

-- Ora Ulisses, todo mundo sabe que dois compassos de Wagner valem toda a obra do Carlos Gomes; que um romance do Mann vale todos os do Machado, e assim vai. Reafirmo: país de merda, compositores de merda. Samba? Samba nem é música.

Ulisses tinha os olhos rútilos e os lábios trêmulos. Valmir tinha os olhos horizontalmente tricolores: preto, vermelho e dourado. E despejava os insultos ao Brasil numa cadência inegavelmente wagneriana.

-- Wagner era um anti-semita filho da puta! gritou Ulisses.

-- Você é um provinciano de merda, Odisseu. Die heil’ge deutsche Kunst!, Die heil’ge deutsche Kunst! Valmir se pusera de pé e começara a cantar no seu brasileiríssimo e castiço alemão.

O solerte Ulisses não se deixava intimidar. E a discussão continuava.

-- Você nunca saiu do Brasil, Valmir. Assuma sua morenice e largue esse fetiche germânico idiota. De que te vale viver nessa fantasia? Você é brasileiro, baiano! — de fato, Valmir nascera na gloriosa Amargosa, interior da Bahia e agora morava em Salvador) — Só porque leu algumas coisinhas e ouviu umas músicas acha que pode mudar sua essência? Até uns anos atrás você ia conosco pras rodas de samba. Acha que a Alemanha está ainda povoada de Wagneres, Beethovens e Goethes? A decadência na cultura é geral, seu incauto!

-- E daí se nasci no Brasil? E daí que nunca estive na Alemanha? É apenas uma questão de azar, e de pobreza. O que importa é que Mein Geist ist Deutsch.

Eu contemplava, estarrecido, aquela discussão estéril. Estávamos ali, num bar barato e sujo no centro de São Paulo. Eqüidistantes, léguas e léguas, de Thomas Mann e de Machado de Assis; de Richard Strauss e de Carlos Gomes. Tão longe de Villa-Lobos, tão perto da versão reggae que já não era mais do Dylan, mas sim do Legião Urbana.

Pensando em acabar com aquela interminável discussão. Vasculhei rapidamente a memória em busca de uma sentença que sepultasse a questão, deixando ambos (Ulisses e Valmir) satisfeitos. Pigarreei, assumindo um ar solene, e disse:

-- … a Europa é uma burrice aparelhada de museus. O Brasil é o analfabetismo genial!

Feito. Os dois entreolharam-se surpresos. Cada um concordou com uma parte daquela frase e acharam que, além de ter muito estilo, eu estava montado na razão.

Não lhes disse que a frase não era minha, mas sim do Nelson Rodrigues. Como um só lia aqueles amontoados de consoantes germânicas e o outro só lia Freyre e Machado, nunca iriam descobrir meu blefe.

E assim a tarde continuou. Debruçamo-nos sobre coisas mais amenas. Valmir nos falava das poesias que estava lendo. Ulisses, da maravilha que era o nosso povo, nossa literatura. E o barroco mineiro, então? Ulisses amava o barroco mineiro. Eu falava do cansaço do trabalho, do Corinthians que, para minha desolação, tinha perdido mais uma. Às oito da noite Valmir saiu, tinha de pegar um ônibus para Salvador na manhã seguinte, logo cedo. Odisseu foi-se embora logo depois: tinha que pegar sua irmã na casa da avó.

E eu fiquei ali, trocando uma idéia com o garçom. Grande garçom, o Plata. Sabe sempre o que a gente quer. E naquela hora eu queria fechar a conta e ir para casa vomitar. Foi o que fiz, despedindo-me alegremente de Plata e lhe deixando qualquer gorjeta.

** No Banquinho da Praça, A Revolução Toma Sorvete de Morango **

Na manhã seguinte, meu telefone começou a urrar como uma cadela no cio. Era Ulisses.

-- Pô, Ulisses! Isso é hora de ligar, rapaz? Coisa de moleque!

-- Preciso falar com você, passei a noite em claro. Estou aqui na praça em frente à sua casa. Desça aí. O dia está lindo e ensolarado. Vamos tomar um sorvete aqui na sorveteria do Carlão.

Amigo é pra essas coisas, já dizia o samba. E nessas horas eu tinha vontade de concordar com Valmir sobre a natureza do samba. Desci. Ali estava Ulisses, que já tinha pego dois sorvetes. O seu de morango, o meu de chocolate. Sentamo-nos num banquinho. Era ainda muito cedo, as crianças não haviam chegado para infestar a calma da praça com sua alegria inocente e violenta. Estávamos só nós dois.

-- O que houve, solerte?

Pra que é que eu fui perguntar. Agora já não éramos só nós dois naquela praça, naquele banquinho. Éramos uma multidão: eu, Ulisses e a legião de suas neuroses.

Abro aqui um parêntese para dar ao leitor uma noção do quanto Odisseu é neurótico: (

Tivesse ele o furor revolucionário de um Guilherme Boulos, capitanearia num rompante revolucionário sua multidão de neuroses através do MNST (Movimento dos Neuróticos Sem Terapeuta) e sairia por aí invadindo tudo que é consultório psicanalítico desse Brasil.

Fecho aqui o parêntese: ).

Ulisses começou a desfiar seu rosário:

-- Cara. Como você sabe, ontem estava puto da vida com o Valmir. Cheguei em casa e não conseguia dormir. Ficava ali pensando, pensando, pensando. Queria matá-lo!

-- Calma, rapaz. O Valmir é gente fina. Dê-lhe um tempo que, já, já ele esquece esse negócio de Alemanha. Vá por mim, conheço a peça.

-- Então, retomou Odisseu, você sabe que eu tenho estudado muito o Brasil. Acontece que ontem, insone, resolvi pegar um livro que eu tinha comprado há tempos especialmente por causa do título. Retrato do Brasil, conhece?

-- Do Paulo Prado?

-- Sim, esse mesmo.

Eu conhecia. E conhecendo, sabia que o efeito que ele poderia causar no coraçãozinho do Odisseu podia ser devastador.

-- Então, resolvi começar a lê-lo. E li-o todo, de cabo a rabo, durante essa noite. Pô, o subtítulo do livro é “Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira”. Agora já não sei mais. Não sei mais o que pensar sobre isso. Não vejo mais claramente a solução pros problemas do país como eu via até ontem. Estou perdido, cara. Liquidado. Tantos anos de estudo. Tantas linhas escritas tecendo glórias a tudo o que eu vi, da menor à mais sublime das nossas manifestações culturais. E agora, cara?

-- Relaxa Ulisses, o Brasil não está parado esperando que você apresente a sua solução para os problemas dele.

-- Mas precisamos fazer algo, porra! Você não quer construir um país mais digno e corrigir todas aquelas barbaridades que fazem parte da nossa história?

-- Precisamos? Ora, Odisseu. Precisamos é ir pro bar do Fabão. Bora, tomar uma?