A vida adoidada (julho de 2018)

Roberto vivia a vida adoidada. A primeira coisa de manhã era virar dois copos de whisky ainda no quarto de dormir. Depois, preparava um copo de Martini para acompanhar o café da manhã. Antes de sair de casa para o trabalho escovava bem os dentes e fazia gargarejo com produtos de higiene bucal para esconder seu forte etilismo.

Era vendedor em uma agência de carros usados. Estava de pé no trabalho às nove horas da manhã. Escondia uma garrafa de whisky na gaveta de sua sala e acabava fazendo uso dela durante todo o dia até as seis horas da tarde. Solteirão convicto, não era gay nem tampouco garanhão solitário. Alguém poderia dizer acertadamente que era misógino.

Amante da tecnologia tinha computador no Fiesta preto quase novo, na casa, e dois smartphones. Uma extensão a esse gosto digital era o vício em maquinas de cassino: sozinho no mundo, não havia a quem explicar-se e, por isso, de segunda a sábado depois do trabalho – após muitos tragos de bebida – visitava um cassino clandestino.

No cassino, mais doses de bebida. Para a noite, Roberto preferia beber inúmeras doses de vodca com laranja enquanto gastava muito nas máquinas de caça-níqueis. Não se aventurava no jogo de roleta, não gostava, talvez por intuição do mal potencial imenso que lhe faria aos bolsos. O pôquer estava fora de seu alcance.

Ainda que não apostasse alto era um desastre no jogo, por que gastava nas maquininhas todo o dinheiro que possuía até o fechamento do estabelecimento. Mas como seria de se imaginar, existia ali um gerente disposto a emprestar dinheiro a pessoas como ele, que apostavam tudo na sorte. Alguém cuja derrota não o faria desistir da sorte no jogo.

Passados alguns meses de caça-níqueis, Roberto devia uma quantia aproximada a cinco mil reais. E os donos do cassino, mesmo sem que ele tivesse pago nem mesmo uma parte do que devia, lhe ofereciam mais e mais crédito. Em duas noites acabou ganhando o equivalente a quinze mil reais, e fez questão de pagar imediatamente o que devia.

Mas nas noites subsequentes a sorte foi por água abaixo e, ao perder dez mil reais, precisou contrair uma pequena dívida novamente, no total de oito mil reais. A perda do dinheiro que tinha era tão fácil quanto adquirir um novo empréstimo no cassino para manter a sorte trabalhando a seu favor.

Que a sorte trabalhava a seu favor, disso não tinha dúvida o ébrio Roberto. Mas os fatos desmentiam o que via. Aquilo que porventura ganhava, e isso raramente, pagava o empréstimo. Mas acabava perdendo o restante na noite seguinte. E o gerente do cassino lhe abria a carteira. Outro empréstimo era contratado.

Uma noite, ao retornar a sua casa alcoolizado, foi parado por policiais em uma blitz. E para que? Teve a carteira apreendida, foi obrigado a pagar multa, e ficou proibido de dirigir durante um tempo. Mas uma cabeça desviada como a dele não compreendeu que aquele era um sinal de como conduzia mal sua vida.

A quantia de dinheiro para pagar a multa do carro teve de vir de um empréstimo de banco. Penalizado, passou então a recorrer a corridas de Uber para ir ao trabalho e retornar dele. E ele também pagava corridas para ir e retornar do cassino – que funcionava a toda força escondido dentro de um motel.

Um ator experiente, continuava bebendo muito o dia inteiro sem que ninguém notasse. Eis que em uma madrugada de cassino conheceu uma companheira de bebida: Márcia ostentava muitas joias nos pulsos e braços. E sua mão esquerda raramente estava vazia, sem uma dose de rum. Ele esqueceu sua misoginia habitual e os dois se aproximaram.

A partir daí, mesmo falando com um falar embargado, bêbado, os dois se entendiam. E perdiam somas de dinheiro que os dois não possuíam, porque o dinheiro deles já estava previamente comprometido com o pagamento dos empréstimos do gerente. O lugar fechava às três da manhã, hora que saíam juntos no Corolla velho azulado de Márcia.

A companheira de bebida de Roberto fazia questão de deixa-lo em casa, sendo que só depois de assegurar-se de que ele estava bem dirigia para casa. Mas, veio uma noite que, devido à embriaguez e não sabendo bem o que estavam fazendo, acabaram os dois em um quarto do motel. Nem se tocaram porque, exaustos, foi chegar e dormir.

Esse dia não foi ao trabalho pela manhã, e teve que inventar uma mentira para o supervisor, o que foi recebido razoavelmente. Roberto, apesar de tudo, era o vendedor que mais vendia, e uma falta ao serviço para levar a mãe ao médico era um transtorno perfeitamente concebível.

Mas outro dia como esse aconteceu: Roberto e Márcia dessa vez haviam dormido dentro do carro em um acostamento da estrada nos arredores do motel. O supervisor de Roberto pareceu aceitar as desculpas do gerente mas ficou claro que surgia uma pulga atrás da orelha. O supervisor não ficou plenamente convencido da desculpa de Roberto.

Pois aconteceu uma terceira vez, igual às duas primeiras, e dessa vez o supervisor foi severo com Roberto. Se ele tivesse o azar de a própria casa cair em sua cabeça e precisasse faltar outra manhã de trabalho, estaria na rua. Roberto assustou-se com a incapacidade do chefe de ser solidário e logo prometeu que não aconteceria novamente.

Quis jogar a culpa da grande bagunça de sua vida em Márcia. Lembrou-se de que jamais confiara plenamente em uma mulher. Mas já não conseguia viver sem a coroa. Ligou esse dia para ela e relatou as dificuldades no trabalho. E aproveitou para combinarem de se encontrar de noite no cassino novamente.

Devendo uma quantia de quinze mil reais ao gerente e sem sorte nenhuma no jogo, dormiu bêbado com Márcia no carro em um estacionamento de supermercado. Nesse dia, como advertido, foi demitido da agência de automóveis. A solução encontrada? Mudou-se para o apartamento da camarada. Mas dizem que a amizade não durou muito.