O topo da Guaimbê (maio de 2018)

Carlos e Sandra compartilhavam algumas paixões: gostavam de filmes inteligentes da Netflix e, também, da sobra de carne de porco frita na geladeira, do dia anterior, o que gerava uma disputa. À noite na cama, um sorvete Napolitano devorado em colher compartilhada pelos dois. Acima de tudo, os cônjuges eram apaixonados um pelo outro.

Mas não havia nada que lhes despertasse mais curiosidade do que uma caminhada ecológica em alguma reserva de mata atlântica da grande região rural e periférica da cidade em cujo centro moravam. E foi essa paixão, e não a vida sedentária que compartilhavam, a responsável pela tragédia que acometeu o casal.

Acostumados a visualizar de longe uma rocha gigantesca da reserva florestal do Guaimbê, trataram de preparar-se para adentrar a reserva e subir até o topo da rocha. A empreitada não representava novidade, pois era rota fixa de namorados que vinham de todos os municípios da região para passar a noite na mata no topo da montanha.

Primeiro compraram um mapa da região e fizeram pesquisas na Internet. Depois puseram-se a procurar material de acampamento. Compraram uma barraca e dois sacos de dormir, mas também cantis de água, comida desidratada, e chocolates. Para acomodar todas as previsões adquiriram duas mochilas gigantescas.

O casal saiu de casa em uma manhã fria, mas agradabilíssima de junho, quando puderam assegurar-se de que naqueles dias não choveria. Em um sábado de manhã tomaram o ônibus que os levou até uma vila próxima à entrada do parque florestal. Às seis horas da manhã iniciaram a caminhada a partir da vila.

O entusiasmo e a paixão pela aventura concediam a força necessária para que os dois carregassem as pesadas mochilas. É claro que Carlos levava a mochila com a barraca dentro, mais pesada que a de mantimentos – essa ficava por conta de Sandra. Mesmo quando muito cedo de manhã, o sol já batia inclemente na cabeça dos dois aventureiros.

Logo na chegada, procuraram ser simpáticos com os moradores da vila: “Bom dia, compadre, é por aqui mesmo que a gente sobe a pedra de Guaimbê?” Ou então, “Bom dia, comadre, tem gente na montanha?” Os moradores da vila, acostumados com visitantes, respondiam com intimidade, sem temer os viajantes.

Passadas duas horas e meia de caminhada os dois começaram a se dar conta das diferentes espécies de árvores que tomavam conta de toda a paisagem. E a pedra que era o objetivo do casal se apresentou menos distante quando visualizaram na vegetação uma trilha lateral, uma picada, que iria conduzi-los através da lateral da montanha até o topo.

Ao meio-dia atingiram o sopé da montanha. Era impossível perderem-se, porque havia mesmo uma marca consistente deixada pelo andar dos visitantes através da mata, no chão. Era preciso somente prestar atenção no rastro deixado por esses aventureiros para não errar o caminho. Nessa altura, Carlos sugeriu que parassem e descansassem.

Os dois, jogados displicentemente sob uma rocha e arfando muito, tomaram um pouco da água e comeram um sanduíche cada um, guardando outros para a jornada de ida e de volta na reserva florestal. Carlos fez questão de verificar o bem-estar de Sandra e como resposta ouviu que tudo estava muito bem.

Ficaram em silêncio por uma meia-hora, ambos curiosos em cruzar com algum visitante que descesse da Guaimbê. No vilarejo, alguns homens afirmaram ter passado por eles um pequeno grupo, havia alguns dias. Mas outros juraram que não havia mais ninguém lá encima. O casal não sabia em quem acreditar.

Foi então que, sentado ali na rocha com Sandra, Carlos resolveu mostrar a surpresa que trouxe para a empreitada: uma garrafa de vodca. A princípio, Sandra ralhou com ele, não seria aquela hora o momento de embriagar-se. Mas acabou cedendo e tomou um copo grande da bebida de cara feia. E puseram-se a subir pela trilha na encosta da pedra.

Às três horas da tarde interromperam a caminhada mais uma vez para um pouco de água e.... um copo de vodca cada um. Repartiram e comeram apenas um dos sanduíches de forma a economizar para o restante da jornada. Quando o sol já se escondia, e as nuvens pareciam baixar sobre suas cabeças, chegaram finalmente ao cume da grande rocha.

Armaram a barraca na mata em uma clareira que foi aberta por outros exploradores naquela pequena amostra de mata atlântica no cume da Guaimbê. Depois, para iluminar tudo e aquecê-los na noite que tomava conta, acenderam uma fogueira. Amaram-se na barraca, que foi fechada para espantar mosquitos, e dormiram em seguida.

De manhã, por volta das sete horas, Sandra acordou espantada por não ver Carlos. Do lado de fora da barraca estava a garrafa vazia. Carlos se embebedou, talvez durante a noite, e saiu em missão de reconhecimento nas redondezas. Sandra lembrou-se de que a face oposta à trilha era um paredão gigantesco de rocha e seu coração congelou.

Gritou por ele, andou e atravessou toda a pequena floresta do topo da rocha, mas não obteve resposta do querido companheiro. Esperou duas horas para ver se retornava, ou se alguém mais pudesse subir a montanha e ajuda-la na busca de Carlos. Mas, nada mudou: ninguém apareceu ali e, como era provável, Carlos estava acidentado.

Como já corria o dia, Sandra teria mais chances de salvar Carlos se conseguisse mobilizar rapidamente o corpo de bombeiros para uma busca. Deixou para trás comida e água, para a possibilidade de que Carlos aparecesse, e pôs-se a descer através da trilha a montanha Guaimbê. Chegou ao vilarejo às cinco horas da tarde.

O resto é o resto, é fácil conceber. No dia seguinte de manhã, os bombeiros se puseram a escalar a rocha pelo paredão e encontraram o corpo sem vida de Carlos. Sandra, que até nutria alguma esperança de encontra-lo vivo, teve que se acostumar com a ideia de um futuro sem companhia. E a noite caiu novamente, sem Carlos com sorvete na colher.