FAVELA

“Ó, vós que entrais [no inferno], abandonai toda a esperança…” Dante Alighieri

As cadeiras rangem. O professor tenta explicar algo aos alunos. O ruído do giz e o barulho do ventilador transformam a sala de aula em uma colmeia: barulhos que atrapalham não apenas a fala, mas também o pensamento. Inquietos, os alunos pedem ao professor que desligue-o. Afinal, eles não conseguem conversar. No entanto, não vamos nos ater a isso; pois há, neste momento, uma conversa entre dois alunos:

— Então, parça. Você viu aquela fita lá?

— Qual fita, parça?

— Aquela que dois parceiros morreram…

— Como?

— Ah, os cara tá falando que foi bandido. Mas você tá ligado que não é…

— É…tô ligado.

Nesse momento, eles ouvem o sinal. É um sinal interessante. Lembra opressão de uma época esquecida, mas prestes a voltar.

Todos saem correndo como se a escola fosse uma cadeia. Há o barulho dos pés, gritos, xingamentos. Quando os dois alunos da conversa chegam ao portão de saída, seus olhos se cruzam como um profeta que descobre o futuro de um mendigo na rua, mas que, infelizmente, não pode avisá-lo. É um olhar que diz: “cuidado!” Quando seu colega se despede, ele vê a Favela.

A Favela se estende como um oceano — calmo na superfície, caótico no profundo. Os raios lunares tentam penetrá-la. No entanto, eles são como um negro que tenta ascender socialmente: há barreiras e mais barreiras! Há o som dos carros e das motos, os gritos, a correria. Tudo em conjunto como uma sinfonia orquestrada por selvagens. Entretanto, mesmo assim, ele invade a Favela com (todos) os órgãos nas mãos.

As casas são a mistura de sofisticação dada pelo capitalismo e uma ridicularização — também dada por ele. São revestidas de blocos laranjas comprados depois de incontáveis horas de tortura que os proprietários se submeteram. Na rua, há buracos, lixos e, acreditem, pessoas! Tudo esquecido pelo tempo. Ao atravessá-la, ele sente medo. Pois, rotineiramente, muitos morrem — e ninguém encontra o motivo. (Às vezes, nem os corpos.) Os becos estão sempre cheios de depressivos buscando desesperadamente destruir o desespero escondido. Ao passar próximo deles, ele sente que há um monstro querendo capturá-lo. É uma sensação estranha.

De repente, um grito atravessa o céu. Olha ao redor, mas nada encontra. Quando olha para um beco, há uma cena que ficará em sua memória. Uma mulher sendo estuprada. Ele tenta enxergar melhor, mas não consegue. No entanto, os gritos da mulher lhe invadem. Ele tenta ajudá-la. Todavia, seu corpo está paralisado. Ele apenas escuta os gritos que congelam sua alma. Nesse átimo, ele pensa: “Por que os moradores nada fazem?” Eis a pergunta. Há uma resposta: normalidade. Oh, sim! Essa situação se tornou normal na Favela.

Depois de horas paralisado, ele corre em direção de casa. O coração em seu peito bate tão rápido que os moradores escutam: Bum!-Bum!-Bum!-Bum! Ao chegar ao cruzamento de uma avenida, ele avista um carro de polícia com a placa virada. Os policiais estão fora do carro. Usam máscaras. Ele consegue reconhecê-los devido ao uniforme cinza que usam. Entretanto, ao olhar bem, ele nota que há um menino entre eles. Os policiais espancam-no como se ele fosse rato; como se ele fosse uma estátua malfeita que, infelizmente, não pode ir para a exposição e que, agora, deve ser destruída; como se ele fosse nada. Sim, é essa palavra: nada. Os socos e chutes que os policiais disferem no corpo do garoto produz a mais terrível das sinfonias: a sinfonia da injustiça; a sinfonia do desespero; a sinfonia da desigualdade. Eis o resultado: o sangue escorre como a chuva que molha as árvores — inundando o rosto do garoto. Porém, piora. Ao forçar a visão, ele vê que, na realidade, o garoto é seu colega de escola. Ao notar isso, ele corre e grita para ajudá-lo. No entanto, essa decisão é catastrófica, porque os policiais o veem e, jogando seu colega no chão como os judeus jogados pelos nazistas, eles correm para pegá-lo.

Ele corre como se o próprio diabo o perseguisse. E, sem olhar para trás, grita, grita, grita. No entanto, a indiferença característica dos moradores lhe invade como um vômito reverso. Ou seja, ele sente toda a podridão dos efeitos da desigualdade invadindo sua garganta. Sente o sabor da morte: o medo.

“Peguem-no! Peguem-no! Peguem-no!” — grita um dos policiais. E a ordem acentua o desespero. Ele força os pés. Escuta as batidas de seu coração: Bum!-Bum!-Bum!-Bum! “Ninguém…não há ninguém. Onde estão todos? Quem pode me ajudar? Socorro! Socorro! Socorro!” Depois de alguns minutos, desviando-se de incontáveis disparos, ele vê um morador olhando-o da janela. Sua esperança cresce. Todavia, rapidamente, ela se esvai: o morador fecha a janela e…entra.

Segundos, minutos, horas? Quanto tempo se passou? O desespero é tamanho que sua percepção é distorcida, seu senso de realidade se deturpa, sua consciência se esvai. Entretanto, a natureza antitética deste mundo aparece: à frente, ele olha sua casa. “Oh, finalmente!” E o sentimento de salvação fica maior quando sua mãe aparece na porta. “Mãe, me ajuda…me ajuda!” A mãe passa alguns minutos olhando para ele, como se um manto escuro cobrisse seu campo de visão.

Entretanto, em vez de recuarem, os policiais avançam. Por essa razão, ele corre mais; corre em busca da vida que ele nunca teve. A poucos metros de sua casa, algo lhe atravessa o peito. Floresce dentro de seu corpo uma sensação de vazio — uma rosa destruída pela fogueira, um bezerrinho que vê sua mãe sendo levada para o abate, um pai que vê sua filha morta num beco. “Filho! Filho! Filho!” “Mãe? Por que o grito? Pare de gritar…você pode acordar os moradores.” Tum!… A queda de um anjo que viveu no céu? Não, não senhor: a queda de um anjo que (sempre) viveu no inferno.

O sangue escorre pelo seu corpo como uma cachoeira pintada pelo apocalipse. Ele tenta se levantar, mas não consegue: a dor, os buracos na calçada que bloqueiam sua percepção, a morte de seu amigo, as lembranças de infância — os jogos de futebol, as bolinhas de gude revestidas pelo barro do campinho que havia próximo a sua casa, policia-e-ladrão, pega-pega, as brincadeiras com os colegas da escola, o momento em que ele escreveu, pela primeira vez, seu nome, o primeiro beijo. Todas as lembranças invadem sua mente. Ele ouve alguns ruídos. Talvez seja o barulho do carro de polícia. Talvez seja o barulho de sua mãe chorando. Nada disso importa. Porque, agora, há escuridão, escuridão, escuridão…

dux Cheshire
Enviado por dux Cheshire em 27/02/2018
Reeditado em 27/02/2018
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