Terra de ninguém (dezembro de 2017)

Era uma criatura que despertava simpatia por onde andasse. Um homem em seus vinte e alguns anos de idade de barba espessa e olhar confiante. Embora um tanto maquinal em seus abraços, à maneira de um político angariando votos para a campanha, ele distribuía de forma determinada seus abraços.

Aquele era o dia mais importante para o ano de trabalho na repartição pública. Chegava o dia da festa anual – um churrasco no clube alugado pela empresa. Talvez para causar impressão aos chefes, Homero foi o primeiro a chegar, recebendo com cumprimentos a todos na entrada do clube. As mulheres, geralmente, o consideravam galanteador.

As mulheres gostavam dele, mas é uma incógnita se ele de fato gostava delas. Jurou-me uma vez o Juracy que o havia visto de mãos dadas com um homem. Nunca gostei de fofocas, e assim as escolhas amorosas de Homero nunca me afetariam – para o bem ou para o mal.

O fato de Homero ser gay não me incomoda de qualquer maneira. De fato, eu que tenho uma índole de sonhador, muito antes da fofoca de Juracy fantasiava a história incógnita de Homero. Nesses meus sonhos, o que de fato mais importava era a procedência, a história, que trazia naquele instante a meus olhos o amigo.

Não vou negar que já me senti incomodado com a forma mecânica com que Homero costumava me abraçar. Da primeira vez, senti-me ofendido. Com o tempo, e talvez depois da fofoca de Juracy, eu relaxei. Não deixei nunca de observá-lo, mas sem dúvida, como assegurei, sua vida amorosa não era o foco de minhas observações.

Homero era, sem dúvida, um sedutor. Daí a fama de sedutor das mulheres da repartição. Pois ele seduziu a mim mesmo. Ele instigou-me a descobrir mais e mais sobre sua existência. Digo existência na compreensão de sua história. Aquela que o fez mesmo antes de ter nascido e chegado ali.

Homero tinha o sabor de grandes histórias. Sua compleição física fazia com que me questionasse se não foram portugueses com a sua aparência que um dia singraram os mares até as índias, conquistando a Ásia, a África e a América também. Estava ali, em seu rosto, este passado imaginado por mim e para mim glorioso.

Não sei especificar o que exatamente o fazia tão especial, mas talvez fosse o nariz. De fato, não, não era um detalhe apenas, mas a composição. Homero era a encarnação de um jovem aventureiro que carregava no gene, na carne, um pouco de três continentes. Tudo em si carregava a marca genética de um português de três continentes.

Homero me fascinava e eu me continha para que não percebesse toda a atenção que lhe devotava. Sua barba formava um “u” cortado ao meio pelo bigode grande. Seu cabelo da face muito espesso. Já o cabelo (corte social), em minha imaginação era encimado por um chapéu que pertenceria a muitas gerações de história anteriores a ele.

Minha curiosidade era grande, e eu me perguntava se sabia de sua história. Conhecera algum dia algum pirata seu antepassado? Ou a prole de seus tataravôs labutaram para a coroa portuguesa? Era extasiante imaginar sua história mais uma vez, enquanto tomava uma batida de vodca com limão e não retirava por nem um minuto meus olhos dele.

E lá estava Homero, na saída do estacionamento e entrada do clube, ciceroneando todos os colegas de repartição. Até que chegou o momento de entrar, uma vez que os convidados pararam de chegar em seus carros. Duas colegas de repartição tomaram-no nos braços, uma de cada lado, e conduziram-no ao bar para uma bebida.

Naquele começo de tarde, no momento em que Homero entrou, já havia virado umas três vodcas com limão e compreendia que, se não tomasse cuidado, mantendo-me sóbrio, ele poderia me pegar de olho nele. Parti para uma conversa sem pés nem cabeça com a esposa de Juracy. Ela queria me convencer que uma revolução estava a caminho.

A esposa de Juracy merece uma menção: ela tida por muita gente como lunática. Mas alguns a achavam interessante. De forma geral, ela teimava em afirmar que teríamos uma revolução militar e que tudo aconteceria em breve. Este seu “em breve” ela já o sustentava há uns três anos e nada. Ela dizia: “esse ano vocês verão, será horrível”!

Seu marido mostrava-se envergonhado por conta dos dons divinatórios. Mas, nossa turma sempre muito afável, acolhíamos os dois sem muitos julgamentos. Pensei para mim, “nós, os colegas, não a julgamos, mas não poupou a ferina língua para sentenciar a homossexualidade de Homero...”

Se Homero soubesse o quanto gostava dele, e o quanto seria capaz de defende-lo contra homens do tipo de Juracy... Homero para mim já passara de um mero colega de trabalho para um objeto de fixação. Cada pose, cada gesto sedutor que fazia, eu como se tivesse duas anteninhas na cabeça captava o gestual prontamente assim que Homero o fazia.

Já havia dito, mas é bom sustentar que Homero é um sedutor. Indistintamente, seduzia os colegas e as colegas de trabalho, de forma a que (com a exceção de Juracy), todos sentiam-se muito bem em sua presença. Aqueles colegas que já estavam de foguinho o abraçavam e cantavam alguma canção antiga. As mulheres queriam dançar com ele.

Meu português velho, filho do Brasil como eu, mas filho de tantas outras épocas que não conseguiria sequer contar se o desejasse ali estava, à minha frente. Ergui meu copo oferecendo a Homero um brinde. Ele retribuiu fazendo o mesmo. Novamente, tive a sensação de estar em frente a uma máquina, tão maquinais os seus gestos comigo.

Foi então que puseram uma música dos anos 90, com batida forte para dançar. A Rosa lançou-se bêbada em torno do pescoço de Homero e o puxou para a pista de dança. Ficava claro que, devido à maneira de sempre encantar a todos, indistintamente, Homero tornara-se o que chamo de terra de ninguém. Mas, meu Vasco da Gama.