O OLHO

O OLHO

Já é a sexta vez que eu vejo ele passando por aqui.

O mesmo homem. De cabelo preto, batido, com a voltinha da orelha muito bem feita. Eu fico imaginando o que...

Mas que diabos!? Você DE NOVO?

O homem do cabelo preto e batido passou novamente pela minha porta. Eu, espiando tudo pelo olho mágico, tenho vontade de gritar. Mas tenho medo.

O que eu gritaria? “Pare de passar na frente da minha casa?”

A rua é um lugar público. Desgraçado. Também não posso simplesmente abrir a porta e sair gritando igual um maluco, e se ele estiver armado? E se ele entrar na minha casa? Desgraçado.

Enquanto me pego pensando nas improváveis e prováveis consequências que esse homem pode trazer na minha vida, reparo que estou roendo minha unha novamente. Ou o resto dela.

Afago um grito quando vejo que não existe mais unha no meu dedão. Resta uma espécie de toco oco de queratina e sangue. Maldito desgraçado, olha o que está fazendo comigo.

Vou tentar dormir.

-

Acordo no meio da madrugada. Olho para a janela e tento espiar a lua, mas alguns galhos estão me impedindo de vê-la. Malditos galhos, olhe o que vocês estão fazendo comigo.

Er... Interessante. Consigo perceber que a lua está cheia hoje à noite. Do lado direito da minha cama, sobre um criado mudo, existe um porta-retratos. Nele, uma foto minha e da minha mãe me encara na escuridão esbranquiçada que apenas uma lua cheia pode proporcionar. Somos eu, eu e minha mãe no quarto.

Queria poder conversar com ela nesse momento. Contar sobre as pessoas que ando vendo. Tudo começou a algumas semanas; Achei ter ouvido a campainha e, quando fui olhar pelo olho mágico, vi um homem parado me encarando pelo pequeno portal.

Engraçado como a gente se assusta fácil pois, como vocês sabem, quem está do lado de fora não consegue ver quem está do lado de dentro (ou consegue?), mas mesmo assim foi o suficiente para me assustar. Ele ficou lá me observando por alguns minutos e depois foi embora. Sua expressão era serena, um tom de superioridade eu diria.

Esse seria um fato isolado se ele não tivesse feito isso no dia seguinte no mesmo horário.

E no outro também.

O desgraçado, o maldito desgraçado ficava lá encarando a porra do olho mágico como se pudesse ver o que tem aqui do lado de dentro. Depois de alguns minutos, como se tivesse perdido o interesse, ele ia embora.

Gostaria de conversar com minha mãe sobre isso, acho que ela me daria algum conselho. Ou pelo menos ficaria aqui comigo para ver isso também e provar que não estou louco.

Sorrio com o pensamento. E durmo.

-

Ele está aqui de novo.

Neste exato momento estou olhando dentro de sua pupila, pois ele chegou tão perto do olho mágico que estou apenas vendo seus olhos azuis.

Me vejo no reflexo de seu olhar, e odeio isso. Odeio pois sei que ele não pode me ver (será que não?), mas o desgraçado continua ali. Ele não pisca. Parece que estou olhando em um espelho negro. Sua íris é azul, e os cílios são longos. Eles se mexem algumas vezes, e essa é a única atividade que consigo notar naquele grande globo ocular que estou encarando a alguns segundos.

Hmm, não gosto disso. Eu deveria...

“HEY! SAIA DA PORRA DA FRENTE DA MINHA CASA SEU IDIOTA!” – sem perceber, já estou gritando.

A grande pupila negra se dilata por um instante e ele parece se afastar. Agora vejo um pedaço do seu nariz, a sobrancelha está arqueada, como se ele estivesse bravo.

Droga.

Aquele grande olho fica ali estaticamente me encarando. Em seu reflexo, eu. Eu encarando eu.

BUMP. Uma forte pancada.

Minhas mãos que estavam espalmadas e apoiadas na porta a sentem vibrar. O desgraçado acabou de chutar a minha porta. Maldito desgraçado, por que fez isso?

Volto minha atenção para o olho mágico, e agora o homem se afastou totalmente. Vejo seu rosto, seu cabelo batido, sua perfeita curva na orelha. Ele sorri, ergue o braço direito e começa a gritar e socar a minha porta com a violência de um cão de guarda.

pow, pow, pow, pow, pow, pow, pow.

O barulho é ensurdecedor, ele não para.

Eu coloco minhas mãos nos ouvidos e corro para minha cama. No caminho, a foto da minha mãe e eu me encara. Eu encarando eu.

Segundos antes de deitar na cama, ouço o homem que está lá fora gritar e explodir em gargalhadas.

Tento dormir.

-

Acordo. Mas dessa vez não é de madrugada, e sim de manhã. O sol brilha na minha janela. Curioso como as coisas são.

Olho para a foto da minha mãe novamente.

Será que hoje esse homem vai aparecer, mãe?

O rosto dela na fotografia não me responde. Apenas sorri, atrás dos seus óculos que refletem uma parte da luz do sol daquele dia. Na verdade, é o mesmo sol. O sol ilumina todos, independentemente do seu tempo e espaço.

Estou com medo mãe. Gostaria de conversar com você. Não nos falamos desde aquela nossa briga a algumas semanas atrás. Acho que vou te ligar hoje a tarde. Você precisa ver o...

Por falar nisso.

Ouço passos. Me levanto de supetão, corro pela minha casa e olho pelo olho mágico. Não tem nada, apenas a rua e as outras casas.

Oito segundos depois o olho volta. E agora sou eu encarando eu novamente. Aquela pupila negra que me julga, mas que ao mesmo tempo não poderia estar me vendo.

Vou gritar para ele ir socar a porta da casa do caralho.

Não precisa. O homem começa a socar a porta tão forte quanto ontem.

Não aguento isso. O que ele quer?

Começo a chorar e corro para a minha cama.

Do lado de fora, ouço novamente sua risada debochada. Mas dessa vez, consigo ouvir algumas palavras:

- Que bebê chorão. Dá para acreditar que esse desgraçado matou a própria mãe?

Bruno Basso
Enviado por Bruno Basso em 19/12/2017
Código do texto: T6202641
Classificação de conteúdo: seguro