OSWALDO VIANA DE SANTANA

Oswaldo era amigo para toda as horas. Nos conhecemos na segunda série, me ajudou numa briga que eu estava perdendo, e desde então não nos desgrudamos, depois descobrimos que morávamos perto, apenas uma viela nos separava. Depois o destino agiu novamente e nos colocou na mesma classe durante o colegial. Ele era genial, inteligente, perspicaz e eu, mais dedicado, o que compensava muitas de minhas deficiências. Osvaldo tinha algo de vivo que era espantoso, uma vivacidade, uma alegria que despertava amor e também despeito de muitos outros colegas, o que fazia nossa amizade ser fonte inesgotável de falatórios. Resistimos juntos durante toda nossa juventude, que no geral foi bastante encantada e divertida. Formávamos uma dupla interessante tanto nos estudos quanto nas farras que fazíamos nos bailes de garagem ou mais tarde, nos bares da vila Madalena.

Como era comunicativo e despojado ajeitava as festas e as mulheres, aliás nunca vi alguém que amasse tanto as mulheres, e tinha a família remediada, de modo que sempre tinha os bolsos cheios, até nisso ele me ajudava. Os dois nos formamos em direito, ele numa faculdade de nome eu, numa mais modesta. Ele dizia com frequência que precisar ir embora, quando eu perguntava porque, respondia que precisava fazer algumas mudanças que não caberia nessa cidade onde cresceu e todos o conhece. Eu não entendia, mas aceitava, porque vindo dele, sempre coerente, deveria ter algum sentido.

Logo depois já na esperança de mudar de cidade, pois o emprego esperado no Estado do Rio Grande do Sul estava quase certo, resolvemos fazer esse pacto. “Aconteça o que acontecer, se houver qualquer desencontro voltaremos a nos ver exatamente nesse lugar, daqui a 20 anos, `as 11 horas da manhã para um café. Exatamente daqui a vinte anos. Será um setembro claro como esse” Ele achou boba inicialmente a proposta, depois emendou que nunca nos separaríamos, pois não saberia se virar sem nossas conversas. A sua fala mexeu com meus sentimentos, fiquei emocionado. Depois acatou o convite.

Naquele dia ele estava com pressa, ainda iria naquela tarde pegar o resultado da entrevista. Mal conversamos, desci o viaduto Dona Paulina e ele atravessou a praça em direção a estação da Se. E descendo a rua fiquei imaginando o disparate da minha ideia, coisa romântica que nunca aconteceria na vida real. Por outro lado, conclui que não era de tudo insensata a proposta, visto que a vida muitas vezes se torna imprevisível.

Mais tarde, voltando pra casa, entrei num sebo, estava na seção de direito escolhendo uns livros, quando ele me ligou muito alegre, o emprego dos sonhos deu certo, mas teria que partir dali a três dias. Um tremor me balançou a vida, sabia que ficaria solitário sem meu amigo. Fizemos uma bela festa em sua casa, muitos convidados, ex namoradas, colegas de diversas fases de nossas vidas, pessoas que nunca mais tinha visto. Foi como nos velhos tempos, mas com um amargor dessas ocasiões de despedida.

E como pensava aconteceu, no começo nos escrevíamos toda semana, era divertido, ele falava das dificuldades de adaptação, das disputas no escritório, das mulheres que se encantavam com ele e do problema de deixá-las. E eu, da minha ida, que honestamente nem longe era a vida que pensava em nossos sonhos de adolescentes. Entretanto, morando em outro Estado aos poucos fomos nos esquecendo. Na última carta ele disse que se firmou como advogado. Não havia dúvida que encontraria o sucesso, era brilhante e dedicado e dono de um carisma invejável. Ele podia fazer qualquer coisa na vida, ser qualquer coisa que quisesse.

Depois me mudei de bairro e não sei mais o que houve. Eu segui minha vida de funcionário público, com seus tédios e desapontamentos diários. Aos poucos o direito, apesar de ser formado se tornou apenas um diploma na gaveta, casei e descasei, perdi meus pais num acidente de carro. E no meio de toda essa tormenta, seu rosto se tornou quase como uma névoa que pertencia apenas ao passado. Ainda tinha um retrato da gente na gaveta da escrivaninha. Ele jovem, me abraçava cheio de juventude. Essa foto foi tirada na formatura do segundo grau. Um dia especial, terminamos aquela noite com belas moças em nossos quartos, tomamos vinho e cerveja e falávamos do futuro como um lugar brilhante e colorido. Essa foto era como um gatilho para os sentimentos daqueles dias.

Nem preciso falar que não consegui fazer novos amigos como Oswaldo. Tem os rapazes da repartição ou alguns camaradas que foram aparecendo, são mais colegas que amigos. Conforme ficamos velhos não confiamos da mesma maneira. E a angustia e a consciência do tempo e da mortalidade vai nos tirando a vontade de ir além nas relações e mesmo se quisesse não teria com quem travar uma amizade profunda, visto que na idade que estou , aparentemente todos sofremos da mesma doença: a doença do medo. Sem falar nas frustrações de muitas coisas que não deram certo, inclusive o casamento de muitos anos.

Um dia acordei e me dei conta que tinha passado os 20 anos. Eu estava mais velho, cabelos brancos já despontavam pela cabeça, e minha pele já perdia o viço da juventude. Dali a uma semana aconteceria o encontro com Oswaldo. A lembrança daquele dia veio a minha cabeça, Padaria Santa Teresa, Praça da Sé. Ele não iria com certeza, quem se apegaria a uma promessa tola e romântica como essa? Somente eu, um solitário que não tem quase nada de emocionante para se ocupar. Então na quinta feira, 15 de setembro de 2017 rumei em direção ao centro. A padaria estava lá, diferente, reformada, não reconheci nenhum funcionário, salvo Maria, com o rosto cansado e envelhecido, mas com a boa vontade daqueles anos. Ela não lembraria de mim.

Sentei na parte da frente, pedi uma cerveja, já estava no horário, uma ansiedade me beliscava o estomago. E nada de Osvaldo, fiquei assim bem uns vinte minutos, inquieto. Então uma senhora bem cuidada, de traços elegantes e finos, perfumada, se aproximou de mim para olhar melhor os salgados que estavam expostos da vitrine, pediu uma coxa creme e um café. Enquanto adoçava o café me perguntou as horas e começamos a conversar, disse que trabalhava numa empresa de importação, e acabara de sair de uma audiência no fórum, disse que estava estressada com o juiz, então eu lhe disse que era advogado, apesar de nunca ter trabalhado na área. Eu disse que sabia mais ou menos como funcionava a justiça. Falamos de nossas carreiras, a minha de funcionário público, que era mais tédio que um ofício. O papo ficou agradável, falamos de meus fracassos amorosos, e do imenso desmazelo do mundo atual, ela concordava com minhas opiniões, e eu com as dela, uma mulher de papo tão interessante que por mais de uma hora esqueci do bolo que levei de Osvaldo. Uma mulher atraente, sem dúvida, criamos uma intimidade instantânea, fácil como se já a conhece, sua fisionomia lembrava alguém, talvez alguma moça do colégio ou da faculdade. Mas nem tive espaço pra puxar algo como um encontro. Era casada e não parecia do tipo que tinha casos. Nos despedimos, foi graciosa e gentil, e na porta da padaria abriu a bolsa e meu deu seu cartão. Fui lhe dar um beijo de despedida quase que lhe dei um beijo na boca. Fiquei atrapalhado. Ela deveras me encantou.

No caminho pra casa a imagem de Osvaldo me veio à mente, lastimei que ele não apareceu. Mas não tive raiva, seria fabuloso se ele aparecesse. É muita coisa pra se cobrar depois de tantos anos. O tempo minimiza as amizades, esse é um fato certo. E eu tinha que ficar com isso.

Minha casa estava uma bagunça desde que Andreia foi embora. Fui à cozinha, tomei água, voltei à sala e decidi tomar um banho, comecei a esvaziar os bolsos, carteira, celular, notas de compras, tirei tudo e joguei na mesa, inclusive o cartão da mulher que conheci, quando olhei o nome estampado no cartão, fiquei perplexo: Osvaldo Viana de Santana