A Primeira Morte De Nuno Reis

A Primeira Morte de Nuno Reis

Já passava das seis quando Nuno Reis, que trabalhava como segurança em um grande shoping center, chegou em casa, exibindo, no corpo, na face e até na voz e no espírito, marcas infligidas por um longo e pesado dia de exaustivo labor, no qual, graças à sua singular perspicácia, lhe fora possível tornar frustradas duas tentativas de assalto ao mencionado estabelecimento comercial. Contudo, ao por os pés no sagrado solo do lar, notou, em tudo à sua volta, um ar que lhe parecia diferente.

Jazia a residência tomada por espessas e cortantes ondas de tristeza. Uma tristeza cuja razão Nuno não compreendia.

Procurou pela esposa, no entanto, não a encontrou. Também não avistou seus três filhos, que, àquelas horas, costumavam acordar e arrumar-se para irem à escola.

Vasculhou, cuidadosa e atentamente, cada cômodo da casa. Não viu ninguém.

Assustou-se. Atarantou-se.

Foi quando, junto ao batente do lado de fora da porta da sala, avistou, colado com fita adesiva, um pequeno bilhete endereçado por sua esposa, Lúcia, à irmã, Lourdes, no qual a primeira desculpava-se com a segunda por não poder visitar-lhe a casa naquele dia e dava por justificativa o fato de ter ido ao hospital São Vito “fazer uma visita” a Nuno, que acabara de acidentar-se.

Após ler o bilhete, Nuno não se conteve. Baratinado e com a cabeça confusa, dirigiu-se correndo ao São Vito.

No trajeto, deu de cara com o Alberto, seu amigo de infância. Acenou-lhe. Estava com pressa. Mas, para sua surpresa, ele não lhe respondeu o aceno, como fazia desde os anos em que os dois disputavam a atenção dos brotinhos da turma do Terceiro Colegial do velho Centro Educacional Tarsila do Amaral, durante as aulas de Educação Física do professor João Dias, pai de Lúcia, sua esposa, e de Lourdes, mulher de Alberto.

Achou estranho que ninguém no hospital lhe notasse a presença. Entrou. Percorreu todas as alas do São Vito até chegar à sala que precedia a UTI, onde encontrou sua esposa e seus filhos a chorar copiosamente.

Chamou-os. Ninguém o ouviu.

Aproximou-se então de sua esposa e, bem de leve, afagou-lhe os cabelos, conforme sempre fazia logo que chegava em casa depois do trabalho.

Como resposta, obteve de Lúcia, com voz contida, fraca e quase sussurrante, dirigida a seus filhos, a seguinte observação:

“Parece que acabo de sentir o seu pai a afagar-me os cabelos como costumava fazer todos os dias, logo que chegava em casa. Ainda não consigo acreditar que é ele, o meu Nuno, quem está aqui, prestes a ser operado.”

Os filhos a consolavam, enquanto Nuno, valendo-se do fato de não ter sido notado quando entrou no hospital, enquanto caminhava por suas instalações e no momento em que afagara os cabelos de Lúcia e contando com a possibilidade de a ocorrência repetir-se, desta vez, a seu favor, seguia correndo rumo à sala de cirurgia. Seu objetivo era compreender as razões sobre as quais se assentavam as palavras que ouvira de sua esposa.

Uma vez no citado local, apoderara-se de Nuno um atroz espanto, que lhe estacara o passo, emudecera a voz e imobilizara a face. Vira-se Nuno ali, deitado, em plena mesa de cirurgia, todo entubado, em coma induzido, enquanto um médico cerrava-lhe o osso da fronte.

Sem forças para gritar ou esboçar qualquer reação, Nuno contemplou a cena de sua própria cirurgia como se assistisse a um filme.

Por sua cabeça, apenas um pensamento passava, em contínuas voltas e reminiscências. Questionava-se ele acerca da possibilidade de um homem, em pleno uso de faculdades que lhe atestam a inabalável perfeição do juízo, ausentar-se de si mesmo.

Aos olhos de Nuno, experiências de quase morte, manifestações de desdobramentos espirituais e coisas do gênero, não passavam de invenções criadas por espertalhões, com a única finalidade de iludir ignorantes e tirar dinheiro de parvos. No entanto, de repente, tudo mudara.

Agora, era ele quem passava por uma experiência dessas. Está certo que não via luzes ou túneis, mas, era esta a única explicação que se aplicava a seus problemas. O de estar e ver-se em dois lugares ao mesmo tempo e o de não ser sua presença vista ou notada por olhos humanos. Afinal, sonho não podia ser. Nuno estava bem acordado. Também não podia ser um caso de loucura ou demência, já que, se havia uma qualidade inegável no caráter de Nuno, além da honestidade, esta era, justamente, a lucidez.

As horas se passavam, lentas, como as de um torturado. A operação parecia interminável.

Nuno caminhava, de um lado para outro do São Vito. A imagem de Lúcia e de seus filhos a chorar por sua causa não lhe saía da mente.

Precisava viver. Não lhe restava outra alternativa a não ser tornar à vida.

Ao desolador panorama desenhado no horizonte pelo pranto de seus familiares veio somar-se posteriormente a esperança semeada pelas orações dos amigos Lourdes e Alberto.

Nuno se dividia. Ora se desmanchava em lágrimas junto da esposa e dos filhos, ora orava fervorosamente ao lado dos amigos.

Sabia o que sentiam. Ouvia-lhes os pensamentos. Tentava acalmá-los. Todavia, não conseguia. Isto o entristecia. Nunca se havia sentido tão fraco, tão impotente ante as circunstâncias que se apresentavam diante dele.

Era, o que se pode chamar de “um morto entre vivos”. Um morto que nada podia em prol de vivos que nada compreendiam.

São quatorze horas e vinte minutos. Um tímido, porém, crescente burburinho toma os corredores do hospital. Um médico anuncia a Lúcia e aos demais o fim da cirurgia de Nuno.

Todos celebram. Somente o próprio Nuno não toma parte na celebração.

Ainda lhe é incógnito o destino. Não sabe se regressará de vez ao mundo dos vivos ou partirá definitivamente para o lado de lá da vida.

Gasta os instantes que lhe são dados com hesitações, ponderações, indagações e meditações sobre a vida e sua transitoriedade, até que, passados quarenta e cinco minutos, desde o anúncio do término de sua cirurgia, Nuno é arrebatado por uma força a que não logra resistir. A força o atrai ao local em que seu corpo jaz repousado.

Nuno sente um forte empurrão na altura do peito. Perde imediatamente a consciência. Agita-se. Pergunta onde está.

Cessa o coma. Constatam os médicos que Nuno reagiu inesperadamente bem à cirurgia.

Contam-lhe os familiares o acidente. Nuno ri.

Todos se alegram. É o princípio de sua recuperação.

Ao segurança, hora regressado da esfera dos mortos, nada resta na lembrança acerca da experiência por que passara há poucos instantes. Para Nuno, que, finda uma licença de um mês, voltará ao trabalho, tudo transpira a mais absoluta normalidade.

Hebane Lucácius