serverino

O Sonho de Severino

Tive que sair, não sou agoniada, sou uma senhora determinada, ainda hoje tenho coragem. Agradeço todo dia, obrigada, Jesus, três vezes. Ainda bem que você veio. Só você pra me socorrer.

Não aguento mais Severino, Jaci. Gostava desse homem como ele era. Agora vive rodeado de gente estranha. Não pára mais em casa e vive em outro planeta. O miserável depois que aprendeu a ler e escrever não me respeita mais. Acredita que ontem, na frente de Maria, me deixou falando sozinha? Acredita? Minha cara quase caiu no chão. Esse homem era manso. Dava gosto. Sabe o que é isso? Influência. Tá querendo aparecer. Ser quem não é. Mas estou de olho nele. Ele vai ver. Vai se arrepender.

É influencia. Tá cheio de influência. O que eu faço agora? Ta lendo poesia, o sabidão. Não sabia nem fazer a letra do ó sentado. Agora escreve de flor, de capim, de nuvem, de olho. Uma bestajada só.

Os meninos tá tudo ai. O tênis de Zeca tá com um furo que dá dó do menino. Vai pra escola envergonhado. Zildinha? Não sai da casa daquele sem futuro do Maciel. Com um pai cego desse também. E o povo fala, né Jaci?

Outro dia, ele saiu, peguei o caderno e fui pra casa de Professora Dorinha. Eu disse pra ela: "Professora, me fale o que ele escreve". Disse que o sem-vergonha escreve bonito. Isso me deixou tão desnorteada. Todo mundo que mostrei gostou. Num posso nem ter raiva do miserável. Todo mundo do lado dele.

Viajou pra Vitória ontem. Disse que ia fazer um grupo de verso. Escuto essa frase e me lembro do fogão e da despensa que está parecendo um cemitério. Onde ele achou essa inteligência? Porque sempre foi burro. Nunca deu certo na vida. O apelido dele era Tolão. Só esses empreguinhos que ninguém quer. Tenho até vergonha de ser mulher dele. Na escola teve de sair na segunda série porque dobrava as letras. Ninguém dava valor. Nem sei como tive coragem de casar com ele. Um sem graça, é isso que ele é. Disse que agora acredita nele. Quem vai acreditar num preguiçoso, num lorotero como aquele?

Zumira de Dutra, veio aqui ontem, com a cara mais lavada. "Severino taí?". "É que agora também sou poeta...". Poeta de merda. Qualquer coisa agora é poeta. Como uma mulher vai na casa da outra perguntar do homem dela? Você acha que isso é mulher que presta? De família? Ele vai me perder se continuar com essa falta de respeito. Minha mãe falava, Jaci, que coração de gente é terra que ninguém passeia. E ele não conhece o meu.

Mas que saber? Eu que não ligo. Ah, se vou me importar. Deus sabe que não me importo. Melhor ele assim do que me enchendo a paciência. Sempre foi um imprestável mesmo. Nunca valeu nada. Quer saber? Continua besta. É Tolão ainda. Isso nunca vai mudar pra mim. Tolão!

Terça-feira chegou uma carta do jornal de Itapetinga, agradecendo pelos versos. Quem lê aquele jornal, Jaci? Quem Lê? Uma imundice, que só fala mal dos outros. Só lá mesmo pra receber as coisas daquele traste. Meu sangue subiu e no mesmo dia chamei pra uma conversa. Falei umas verdades pra ele.

Não adiantou nada. Juntou uns colegas e veio ler e estudar na minha sala. Umas moças de fora. Tive que fazer o almoço. Fiz bife no forno. Ficou duro, Jaci. Todo mundo com os garfos tentando cortar. Tudo metido. Ninguém pegou a carne na mão e só via a carne correndo pelo prato. Mas falei pra ele: "Não vou mais prestar esse papel não!"

Não tenho mais uma noite de sono, mulher. Fico deitada na madorninha e a imagem daquele cão rodeado de gente lambendo ele. Isso me enoja demais. O que faço? Você é minha amiga de muito tempo. Confio em você, Jaci! Desde menina! Me responde: O que faço com aquele trem?

Agora escondi todos os cadernos dele. Andou pela casa o dia todo procurando. De ruim, não me perguntou. Preferiu a tristeza em baixo da cajazeira. Ficou a tarde toda sentado e fumando. Pela lágrima de Maria, Aquilo não mexeu comigo. Vou te contar uma coisa, mas pelo amor de deus, não conte pra ninguém. Não está mais me procurando. Acredita? De tão envolvido que tá. Falou pra mim que agora é diferente. Que tem amigos. Pra mim é um monte de gente sem ter o que fazer. Quero ver se letra vai encher a barriga dos meninos. Só quero ver. Traste infeliz.

Você sabe que nunca acreditei nessas coisas. Fiz uma consulta lá na parte baixa. Isso é segredo, viu? Sabe o que Dona Lisinha disse? "Deixa seu homem sonhar". Perguntei pra ela de que lado ela tava. Falei na hora. Desgraçada. Ficou quieta. Bem que eu estava certa em não mexer com essas coisas.

Volto a te falar, Jaci. Prezo demais nossa amizade. Por isso chamei você aqui. Só tenho você a socorrer. Nossa amizade vale esse favor. Por favor, Jaci, me ensine a escrever!

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A beleza de Ni

Quando minha Tia Ni veio morar com a gente ninguém gostou. Ela velha

Mas se achava menina. Ficou louca quando criança. Minha vó falava que ela recebeu uma ventania na cara. Uma vez meu Tio Du disse que ela encontrou Tio Januário morto pendurado no pé de baraúna, quando voltava da escola. Ninguém sabe ao certo como ela ficou assim. Dizem que esse tio gostava muito dela.

Ficava sozinha num quarto escuro. Acordava no meio da noite e andava por toda casa. Ela estava sempre com um espelhinho e um batom na mão. Passava o batom, olhava e se admirava. Às vezes dava uma risada leve e falava “sou bonita demais né, Railda”. Minha vó dava risada. Porque todos sabiam que ela era muito feia. Dava pena dela. Ser louca e ainda feia. As duas tinha quase a mesma idade. Tia Ni era a mais nova. “Pára de ficar emperiquitando assim, Ni?” “Você fala assim porque não é moça nova como eu”. Parecia uma menina. Vaidosa e perfumada. A casa toda cheirava alfazema. Tomava seu banho num ritual demorado. Usava creme de babosa nos cabelos, e os vestidos revelava, de tao curto acima do joelho, a anágua de borda florida. “Railda, você queria ser bonita assim como eu?” “oh, cavala besta, onde tá a beleza ai?” “você sempre foi invejosa, Railda”.

Minha vó ria quando ela dizia essas coisas, mas outras vezes ficava com raiva. Tia Ni era um fardo. “Dá trabalho igual criança, Elza”. Falava pra outra irmã, que nos visitava de vez em quando mas não queria saber de Tia na casa dela. Muitas vezes parava na frente da televisão, e todo mundo gritava com ela. “Sai daí, Tia Ni”. Ela pirraçava. Dava vontade bater nela. “não tem muita mulher bonita nessa novela, né?”. Falava isso e se afastava olhando no espelho em tempo de tropeçar e cair. Gastava muito tempo embaixo das mangueiras. Punha o espelho no chão e se derretia olhando ora o céu, ora seu rosto. Pegava de solavanco o espelho e deitava de costa, olhando outros ângulos, explorando cada pedacinho de seu rosto. Seus olhos brilhavam. Vinha uma lágrima de alegria e gritava alto lá de fora. “Raiiiiiiiilda, meu nariz combina tanto com meu queixo, né? “Oh, cavala besta!” “ Porque não vem me ajudar” “Essa Ni é morta na preguiça”.

Qualquer a assunto que não fosse sua beleza era um tédio pra Tia Ni. Adorava ficar na janela se exibindo para as pessoas que passavam. Gostava de meu amigo Henrique de treze anos. “acho que ele gosta de mim, já passou três vezes me olhando”. Minha vó costurando balançava a cabeça sem levantar. A gente já entendia e todo mundo balançava a cabeça também. “Raida meus vestidos ta muito antigo, preciso de umas roupas novas”. “Só se comprar com a correa do saco”. Minha vó era muito direta com Tia Ni. Ela nem escutava. O que importava mesmo era seu espelho, seu batom e a alfazema que empestava a casa.

Naquele mesmo ano, num esbarrão em seu Raul, bem na calçada, seu espelho vermelho, de florzinhas dourada, espatifou no chão. Estilhaçou. Tia Ni ficou desolada, acabada. Minha vó comprou outro espelho do mesmo tamanho. Mas ela não gostava, dizia que naquele espelho ela ficava feia. Minha Vó segurava e dizia que estava igual. Assegurava que a imagem era verdadeira. Mas Tia Ni não acreditava. Passou a chorar pedindo seu espelho. “Por que você quebrou?” “agora sou feia”. Levou ela até a loja pra escolher outro, mas nada adiantava. Em todos os espelhos Tia Ni estava feia . “como posso viver sem ser bonita, Railda?”. Não andava mais pela casa. Ficou no canto da parede com os olhos tremendo e as mão na boca. Sem batom. “vem Ni, ver televisão”. “Embaixo da mangueira tá tão limpinho, Ni”. “Os meninos estão descendo da escola, Ni”.

Minha vó colou todos os pedacinhos do antigo espelho, mas não adiantava. Era triste as lágrimas da tia entrando nas fendas colada. E dizia que seu rosto estava em pedacinhos. Levamos em varias loja pra ela mesma escolher. Experimentou um monte. E chorando continuava feia. “Tá bonita, Ni, não mudou nada, né João. Eu balançava a cabeça que sim.

Numa dessas noites alcançou um galho que pendia perto de sua janela. Galho de Braúna. Amarrou um lençol em seu pescoço e pulou. Deixou um pequeno bilhete em garranchos. “vou encontrar Tio Januário. Vou pegar outro espelho com ele. Eu volto, viu!