Via crúcis para o perdão (Partes 1 a 3)

Parte 1 – O encontro com o Senhor da Morte

Pedro caminhava cabisbaixo pelas ruas desertas da cidade. Já passava da meia noite e ele estava dividido entre a depressão e a revolta contra tudo e contra todos, inclusive contra si mesmo. A noite era fria, mas a lua brilhava cheia no céu e acompanhada das estrelas. Pena que ele não soube interpretar esse sinal de esperança que lhe a Vida lhe dera.

Enquanto caminhava, seus problemas borbulhavam em sua mente: perdera o emprego há meses, a esposa o abandonara levando consigo o filho pequeno, desligara-se da instituição religiosa que frequentava, a família parecia ter se esquecido dele, mais um aluguel estava por vencer e o vício do álcool agravara-se nos últimos tempos. Em virtude de tudo isso, pensara diversas vezes em matar-se.

De repente, Pedro percebeu que estava em frente a um cemitério e viu que os portões estavam abertos. Nada mais propício para seus macabros planos suicidas. Já que desejava a morte, estava no lugar ideal. Resolveu entrar. Porém, seu estado emocional não permitiu que ele notasse o guardião postado na entrada do campo santo. Apesar de ser médium de visão, estava tão negativado que sequer percebera o cumprimento que lhe estava sendo dirigido.

Pedro caminhava a esmo por entre os túmulos até que chegou a um espaço mais aberto. Parou, ergueu os olhos aos céus e começou a praguejar contra o Criador, culpando-O por todas as suas desgraças. Perdido em seus ofensivos e mórbidos devaneios, Pedro sentiu um vento gélido empurrar-lhe pelas costas e fazer-lhe cair de joelhos no chão. Revoltado, cravou os dedos das mãos no solo, como que a querer perfurar a terra para nela penetrar e nunca mais voltar. Nessa hora gritou insanamente como se uma labareda lhe rasgasse a alma, crestando-lhe o que restava de humanidade. Por fim, começou a chorar.

O guardião, que a tudo acompanhava, resolveu interferir e fez com que Pedro caísse em sono profundo. Após alguns instantes, o espírito perturbado de Pedro desprendeu-se do corpo físico e deparou-se com o sisudo guardião, que lhe disse em tom sério:

– Por que tanto clamas pela Morte querendo provocá-la para si mesmo?

– Quem é você que me interpela assim? Por acaso já morri e estou a pagar meus pecados? – Perguntou Pedro, ainda assustado.

– Pediste pela Morte, não foi?! Estou aqui para levar-te ao Senhor que a rege. A propósito, sou o guardião deste lugar e tu ainda não morreste. – Dito isso, sumiram terra adentro.

Através da volitação chegaram a um amplo salão circundado por plantas das mais variadas espécies e por símbolos que lembravam o momento da passagem entre os planos físico e espiritual. Havia também, num recanto do salão, uma pequena fonte por onde escorria uma água extremamente cristalina.

Aguardaram um breve momento e viram adentrar ao salão um homem muito velho com ar circunspecto. Assim que o velho entrou, o guardião ajoelhou-se, encostou a fronte no chão e o saudou:

– Atotô, meu pai! Salve suas forças!

– Salve suas forças, meu filho! Levante-se! Agradeço por trazer-me aquele que clamava pela Morte.

Pedro, num misto de medo e admiração, ficou sem saber o que deveria fazer ou dizer. Emudeceu por completo. Jamais poderia imaginar que estaria, em algum momento, diante de tal entidade. O Velho o acordou de sua letargia:

– Eu sou aquele que rege a passagem entre os planos físico e espiritual. Sou eu o responsável por designar quem irá cortar o cordão que liga o corpo material ao que vocês chamam de perispírito. Em outras palavras, sou eu quem executa o momento exato do que vocês chamam de Morte. Mas não sou eu quem decide quando e como as pessoas devem morrer. Eu apenas obedeço às ordens que recebo do Criador e as repasso àqueles que se subordinam a mim. Portanto, não cabe a você nem a ninguém decidir quando e como a passagem deve ser feita, nem sobre si mesmo. Isso já está acertado desde quando os espíritos são preparados para a experiência terrena como encarnados. Então me responda: por que você queria despojar-se do mais precioso dom que lhe foi dado?

Atônito e desconcertado pela explanação daquele ser, Pedro só conseguiu balbuciar:

– Minha vida tem sido uma perda atrás da outra e não vejo motivos para estar vivo diante de tantas decepções e privações. Não entendo a razão de uma mudança tão brusca se...

– Melhor calar-se! – interrompeu o Velho – Não comece a elencar as tuas razões sem fundamento. Em breve você saberá o porquê de tudo isso. Por enquanto é preciso que você viva e que saiba agradecer por tudo o que acontece em sua vida. Mesmo o que nos parece ruim vem com o objetivo de nos ensinar algo. Agora eu vejo que seu espírito está adoecido e vou aplicar-lhe um tratamento que irá apenas amenizar suas dores, pois ainda há muito que aprender. O momento de sua passagem ainda não chegou.

Quando terminou de dizer tais palavras, o Senhor da Morte estendeu ao guardião uma cuia branca e pediu que ele fizesse um preparado com algumas ervas que lhe foram apontadas. O guardião não demorou muito, no entanto, até que ele trouxesse o tal do preparado, os momentos foram de silêncio absoluto. O Senhor da Morte permanecia de olhos fixos em Pedro que, sem coragem, mantinha-se cabisbaixo. Assim que o guardião trouxe o que pedira, o Velho começou a banhar o corpo de Pedro despejando a água com ervas aos poucos e espalhando com as próprias mãos. O espírito enfraquecido de Pedro foi lentamente se reequilibrando. Em determinado momento ousou levantar a cabeça e abrir os olhos. Pôde ver algumas feridas pelo corpo do Velho, mas achou por bem não perguntar nada. Ao fim do procedimento, o Senhor da Morte disse:

– Esta foi a primeira etapa. Terás outras ainda hoje. O que fiz a você agora foi só um preparo para a etapa seguinte. Se você quiser mesmo recuperar-se por completo, será preciso entender e aceitar que não existem vítimas nos planos da Criação e que há uma grande força no íntimo de cada ser. Força que nos leva adiante, se positivada, ou nos puxa para baixo, se negativada. Adeus e até o momento real de termos de nos encontrar de novo. Não se preocupe que o guardião irá acompanhar-lhe em todas as suas etapas! Vá em paz!

Parte 2 – Pipocas que curam

Pedro não teve tempo nem para agradecer. O guardião segurou-lhe pelo braço e em instantes já estavam na parte de cima da terra. Ainda estavam no cemitério, mas agora noutro campo e também cercado por plantas. Viram surgir um ser coberto com uma roupa de palha, inclusive o rosto. O guardião ajoelhou-se e repetiu a mesma saudação que fizera ao Senhor da Morte. Pedro, por instinto, seguiu o gesto de quem o guiava. O Senhor das Palhas aproximou-se e fez um gesto de agradecimento ao guardião, que retribuiu e afastou-se um pouco.

– O que procuras em meus domínios, filho! – Disse para Pedro.

– Não sei, Senhor! Eu fui encaminhado para cá pelo Senhor da Morte. Talvez eu precise de cura para os males que me afligem.

– Boa resposta! Posso aliviar e mesmo acabar com tuas dores, posso mesmo curar todas as tuas feridas. Tudo, porém, com a devida permissão do Pai Maior. Além disso, é preciso que entendas e aprendas que a força maior da cura está dentro de ti. De nada adianta receberes o que me pedes se no teu interior continuares com os mesmos pensamentos negativos e a praticares as mesmas atitudes mesquinhas e egoístas.

– O Senhor está dizendo que eu sou o culpado por meu próprio sofrimento? Na verdade houve tantos que demandaram contra mim; outros tantos me atraiçoaram e outros mais queriam apenas aproveitar-se do que eu podia oferecer-lhes.

Assim retrucou Pedro, já incomodado com tanto sermão que estava a ouvir. Quando terminou de falar, sentiu uma dor aguda e lancinante percorrer-lhe todas as terminações nervosas de seu frágil corpo. O resultado foi cair ao chão e contorcer-se por inteiro.

– Não aprendeste nada ainda! Não te foi dito há pouco que não há vítimas nos planos do Criador? Não te foi dito que todas as situações nos servem de aprendizado? Então, chega de lamentações e pare de autopiedade. Tu colhes aquilo que plantas e tua colheita está ainda no começo. Receberás a cura de que necessitas, mais por determinação do Alto do que por minha própria vontade. Aceita-te exatamente como és e luta para evoluir. Trata de melhorar-te a cada dia.

Enquanto Pedro retorcia-se de dor no chão, o Senhor das Palhas, das doenças e da cura pediu ao guardião que levasse aquele corpo debilitado para dentro de um círculo traçado no chão sobre o qual luziam velas bicolores pretas e brancas. No centro do círculo, amparado pelo guardião, Pedro tinha o corpo banhado com pipocas, que eram jogadas por dois pretos velhos a quem o Senhor das Palhas pedira ajuda.

Enquanto lhe jogavam as pipocas, aqueles dois seres entoavam cânticos que a mente doentia de Pedro não podia compreender. Quando acabaram as pipocas, os pretos velhos começaram a benzer-lhe com ramos de ervas existentes ali e continuaram a entoar rezas incompreensíveis para Pedro. Durante todo o processo, o Senhor das Palhas estivera fazendo uma dança ritualística no exterior do círculo. A princípio da esquerda para a direita, como a retirar toda a carga negativa em Pedro e depois no sentido inverso como a reenergizá-lo.

Decorridos cerca de dois quartos de hora, em tempo terreno, o procedimento foi dado por encerrado. Os pretos velhos entregaram ao Senhor das Palhas as ervas usadas durante o benzimento. Estas já estavam completamente secas. O guardião retirou Pedro de dentro do círculo e as ervas foram jogadas em seu lugar. Assim que as velas terminassem de queimar, tudo estaria resolvido. Pedro estava refeito e envergonhado. Talvez começasse ali a compreender a sua real situação.

– Pronto, estás curado! – disse-lhe o Senhor das Palhas. – Todavia eu insisto que se não houver mudança verdadeira de teu padrão de pensamentos e de ações, de nada adiantará. A minha parte foi feita! Agora cabe a ti a decisão final. Além do mais, pelo que é permitido saber, tuas contas devem ser acertadas com a Lei e com a Justiça Divinas. Passaste pela segunda etapa de tua via-crúcis. Vá em paz e pela Luz! – Sem mais palavras despediu-se do guardião.

Parte 3 – A floresta interior

Pedro ficara assustado com as palavras finais “tuas contas devem ser acertadas com a Lei e com a Justiça Divinas”. O isso significava? Será que lhe viriam ainda mais e mais tormentos? Será que já não lhe bastavam o tanto que sofrera na terra? E ia assim perdido em seus pensamentos. O guardião que o acompanhava, sabia o que estava em seu íntimo e lia seus pensamentos e mesmo assim preferia não interferir. Afinal de contas não lhe cabia opinar e nem agir sem ser solicitado. Notava, porém, que uma chama de esperança começava a acender-se nas profundezas daquele ser.

Chegaram a uma clareira no meio de uma densa floresta e foram recepcionados por índios e índias munidos de arcos, flechas e bodoques. Tal cena deixou Pedro assustado, mas o guardião o tranquilizou dizendo que não estavam ali para guerrear. Em poucos segundos chegaram dois caboclos de aspecto imponente. Um deles trazia um arco e apenas uma flecha e um cocar majestoso. O outro, com ar bem mais sério, era acompanhado por um pássaro e trazia, cruzada no peito, uma bolsa que parecia conter ervas.

– Okê aro, Senhor das Matas! Ewé O! Ewé O, Senhor das Ervas! Salve vossas forças! – saudou-os o guardião. – Trouxe-lhes um filho que anda em busca de si mesmo e necessita conhecer-se primeiro.

– Salve suas forças, guardião! Sabemos do que se trata. – disse o índio de uma flecha só.

– Deixe-o conosco por um tempo que conversaremos com ele. – emendou o índio do pássaro.

Pedro viu-se sozinho diante dos dois, mas seu medo o fazia ficar de cabeça baixa. Não queria arranjar mais motivos para ser castigado.

– Erga tua cabeça, filho! – disse o Senhor das Matas. – Só deves baixá-la em sinal de respeito, nunca por medo, seja de quem for. Levanta a cabeça e olha-me nos olhos. Apenas assim começarás a conhecer-te. Afinal de contas, os olhos são espelhos da alma, não são!? Não é isso que dizem lá na terra de onde vens? O que queres de verdade?

– Eu preciso de paz para a alma e de sustento para o corpo, Senhor! – respondeu Pedro, continuando – A minha vida na terra despencou morro abaixo e eu não estou sabendo lidar com as dificuldades.

– E quem é o responsável por tua queda, filho?

– Aqueles que querem me ver pelas costas ou morto, inimigos que fiz durante tantos anos.

– E por que eles desejariam tua queda? Só há dois motivos pelos quais alguém poderia querer tirar o teu brilho: ou porque brilhas mais que eles ou porque tu apagaste o brilho deles um dia. Ambos estão errados. Tanto a inveja quanto a vingança são crimes gravíssimos que ferem a Lei Maior. Por qual destes motivos teus inimigos gostariam de ver-te apagado?

Pedro, com os olhos fixos nos do índio, não conseguiu fugir de si mesmo e viu que fora ele próprio o responsável por muitas das mazelas que o atingiam. Não conseguiu falar nada e caiu em choro convulsivo. Estava com tanta vergonha que sequer conseguia levantar-se. Enxergara-se de forma tão nítida que agora sentia ainda mais raiva de si mesmo. Quando esperava ouvir palavras que lhe expusessem ainda mais as chagas que abrira, ouviu o contrário:

– Podes chorar, filho! Choras, pois as lágrimas, se caem com sincero arrependimento, lavam a alma! Não sintas raiva nem vergonha de ti. Basta que te reconheças humano e passível de falhas. Por outro lado, se reconheces teus erros, é preciso que estejas disposto a corrigi-los. Para isso tens de ter coragem. Tua cabeça, tua mente, lateja pela dor da culpa e teu coração bate descompassado pelo arrependimento. O meu amigo aqui, o Senhor das Ervas, não é de falar muito, mas irá preparar-lhe um remédio para aliviar as tuas dores até que chegues a tua próxima etapa da jornada. Para que o remédio surta o efeito desejado é preciso que tenhas fé. Tu tens fé, filho?

– Tenho, Senhor! Tenho! – disse ainda em lágrimas o exausto Pedro que finalmente começara a despertar para a verdadeira realidade.

Feito o remédio, o próprio Senhor das Ervas aplicou-o em Pedro. Vagarosamente e sob os cânticos dos demais índios que ali estavam, as mãos curadoras iam passando a mistura de água e plantas na cabeça e no coração de Pedro.

– Pronto, filho! Estás preparado para a próxima etapa de tua jornada. Não te esqueças de manter a fé em alta, haja o que houver. Não te esqueças de que ninguém caminhará por ti, contigo talvez, por ti nunca. Por último, não te esqueças de agradecer por tudo o que conquistaste e por tudo o que ainda conquistarás. Se no teu caminho seguires estes conselhos, as pedras se tornarão mais fáceis de serem removidas ou contornadas. Segue em paz! – disse o índio de uma flecha só e abraçou Pedro, que se sentiu reconfortado.

O guardião aproximou-se, despediu-se dos seres das matas, segurou Pedro pelo braço e volitaram até a etapa seguinte. Sentia o guardião que seu protegido começava a aceitar que ninguém é vítima e estava disposto a superar os obstáculos para a mudança. No entanto, sabia também que a parte mais difícil ainda estava por vir. Temia ele por Pedro, mas nada podia fazer. Dos dois caminhos para o aprendizado, Pedro escolhera o mais árduo: aquele conduz pela dor e não pelo amor.

Cícero Carlos Lopes

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 18/10/2017
Código do texto: T6146067
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