O chamado (agosto de 2017)

Ouvi o grito de dor do lado de fora. Já era tarde na madrugada, mas não me confundiria um grito tão genuíno de dor no meio da noite. Primeiro porque em meu bairro, pouco movimentado, um grito daquela natureza não era normal. Depois, passados quinze anos na profissão de médico, a gente se acostuma com esse tipo de grito de socorro.

Pois então, já estava convencido do grito de dor na vizinhança. Estava sozinho em casa e pela hora não haveria porquê para chamar alguém. Aventurei-me porta-a-fora eu mesmo, em busca de alguém com dor que precisasse de mim. Depois passeei pela rua deserta até a esquina, onde avistei um homem velho debruçado em uma lata de lixo.

“O Senhor está bem”? Perguntei-lhe. “Esse braço, Senhor, está quebrado”. Respondeu-me ele. “O Senhor não precisa se preocupar, eu sou médico”. Respondi. Ele aí calou-se e ofereceu o ombro do braço que não estava comprometido. Seguimos caminhando os dois, ombro a ombro, até a minha casa.

Estava bem claro que o homem era um morador de rua, estava imundo e cheirava mal. Estava curioso para saber como tudo acontecera. Ele adiantou que um homem mau lhe havia espancado, mesmo com seus pedidos para que pelo amor de Deus não o fizesse. O homem sangrava no braço, abaixo do ombro esquerdo. Havia fratura exposta.

Tinha aproximadamente sessenta anos de idade, e bafejava cachaça. O ferimento necessitava de cuidados e por isso procedi aos primeiros socorros. Chamei o homem até o tanque no jardim do fundo de casa e lavei seu braço com água e sabão. Ele gritou do mesmo jeito que gritara na rua quando me acordara. Sentia dor.

Acariciei seus cabelos ensebados e prometi que dali por diante ia cuidar de seu ferimento. Trouxe-o para dentro e, improvisando um torniquete, imobilizei o braço fraturado. E fiz sinal para que se sentasse na cadeira da cozinha, o que fez imediatamente. Com interesse seguia meus passos e meus movimentos.

O homem não retirava os olhos de mim. Intuía que daria comida a ele e estava mais que certo. Onde o encontrei, prostrado diante de uma lata de lixo, procurava comida. Retirei da geladeira uma sacola de pães de forma, presunto, queijo, maionese e mostarda. Antes que começasse a preparar os sanduíches me disse, “Que Deus lhe abençoe”!

O primeiro sanduíche desapareceu assim que lhe entreguei. Suas unhas estavam cor de asfalto, negras. Havia lavado suas mãos, mas muito pouco pôde ser feito às unhas. Essas, necessitariam do cuidado de tesoura e aparador de unhas. Não me preocupei com a sujeira e preparei um segundo sanduíche, que desapareceu como o primeiro.

Preparava um terceiro sanduíche quando me interrompeu, pedindo com dificuldade por água. Eu sentia que era difícil para ele respirar. Dei-lhe o copo d’água na mão direita, uma vez que toda a extremidade do braço esquerdo estava imobilizava. Mas via que a sede e a fome eram maiores que qualquer dor que pudesse lhe afligir naquele momento.

Procurei saber mais do homem: eu sabia o quanto era difícil arrancar de um morador-de-rua quaisquer palavras sobre seu passado, sobre seus parentes, sobre a família. Entretanto, para surpresa minha, não pôs obstáculos às minhas perguntas. Não titubeou para falar sobre sua vida, depois que terminou de comer o quarto sanduíche.

Tinha mulher e cinco filhos. Morava com o cunhado e sua irmã, que tinham mais cinco filhos também. Um dia, quando retornava para sua casa em um subúrbio distante, cheirando a cachaça, trancaram a porta para que não entrasse. Todos os parentes já o haviam advertido que não o aceitariam bêbado em casa.

Descobri que Seu Miguel era seu nome. Trabalhava de ajudante de pedreiro nas obras que descolava como trabalhador temporário. Acordava antes das quatro da manhã para chegar até o trabalho e raramente retornava para casa antes das dez horas da noite; tendo passado por um bar onde consumia cachaça para esquecer do dinheiro que era pouco.

Depois que lhe vetaram a entrada em casa, amaldiçoou a todos em voz alta, acordando toda a vizinhança. Jogaram água fria do telhado e ele ficou ensopado. Gritou que jamais voltaria ali novamente, e a partir daquele dia começou a viver na rua. Na primeira noite dormiu nas vizinhanças, no próprio bairro. Mas uma semana depois já estava longe.

Seu caminhar pela cidade seguia a oferta de comida que encontrava nas latas de lixo. Também dependia da esmola das pessoas, e por isso dormia nas redondezas de supermercados e de paradas de carros nos semáforos. Em geral, lhe bastavam as latas de lixo e a comida que os moradores das casas com piscina por onde passava ofereciam.

O dinheiro que recebia ia embora nas garrafas de cachaça que adquiria. Mas foi caminhando em busca de comida nos lixos das casas de gente rica que chegou até mim. Nesse dia de hoje, quando nos conhecemos, apenas escapara de uma sova que levara do síndico de um condomínio de luxo que não o queria por perto. Uma maldade.

Quando, sem querer, identificou para mim o autor do malefício, veio-lhe a ideia de que não me vingasse do homem. Pediu que eu jurasse que não faria nada contra o tal síndico, uma vez que estava certo de que ele mandaria alguém para matá-lo. Eu jurei não fazer nada, mas mentia na verdade. Tomaria provavelmente alguma atitude, sim.

Tendo sido alimentado, e como já se passavam das cinco da manhã, eram horas de chamar uma ambulância para o pobre homem. Sabia que, se me tivesse adiantado para chamar a ambulância, ele provavelmente se negaria a seguir com os enfermeiros. Deixei para cumprir por último a tarefa de levá-lo para o hospital, onde teria maiores cuidados.

Miguel agradeceu pela ambulância, pois parecia compreender a necessidade de cuidar do ferimento. Quando o carro chegou, permiti que estacionasse na entrada e, apoiando o homem no braço que não doía, ajudei a acomodá-lo. Depois que o carro partiu, só pensei em dormir. Estava cansado. Mas o dia começava e com ele um dia de trabalho.