O balaço (julho de 2017)

Minha mãe é impura, seu sangue que molha as calças é impuro. Nada posso fazer para que essa situação mude de espectro. A comida que toca com os dedos é infectada, a roupa de cama que põe em seu leito à noite é fedorenta. O pequeno cão que a acompanha pela casa é doente. E tudo isso é culpa minha.

No mesmo momento em que eu escrevo isso me escondo no fundo de minha cela, dividida com quatro, em um pequeno espaço onde posso apoiar o caderno em um colchonete e escrever. Cumpro pena de vinte e sete anos no presídio e já estou aqui faz três anos. Não perdi a eloquência que tenho desde criança e escrevo quando permitem.

Estudei até o médio, intencionando seguir carreira no Banco do Brasil, mas o crime me cooptou antes de terminar o terceiro ano de contabilidade. No dia de hoje, muito quente mesmo para o verão no Sudeste desse grande Brasil, cumpro minha pena escrevendo sobre alguém a quem amo muito, minha pobre mãe.

Houve um dia um balaço, que com um breve estampido saiu de minha arma e perfurou o peito de um padeiro. Era meu segundo assalto armado, mas não tive a sorte do primeiro. O homem também tinha um berro (arma) e fui reagir para me salvar. O balaço atravessou o peito do indivíduo, que perdendo forças deitou-se de costas no chão.

Sabe Deus o porquê, mas ao invés de desaparecer da cena fiquei ali, junto ao meu cadáver, à espera da justa. Acho que não foi idiotice, mas uma surpresa imensa que me deixava embasbacado. Era meu primeiro cadáver e eu ficava ali, à espera de alguém que pudesse me redimir do pecado aplicando-me a pena.

Tive uma criação muito religiosa, igreja evangélica. “Não matarás” disse o homem santo. E eu havia matado. Por conta disso, sabia eu imediatamente, toda minha família teria de pagar pelo erro. O que me veio à mente foi mamãe, boquiaberta, negando que seu único filho seria assassino. Sempre acreditou nos resultados de minha educação.

Porque o balaço entrou no corpo daquele moço que eu nunca havia visto na minha vida minha mãe tornou-se lazarenta. Pelo milagre de Jesus apenas sua alma poderia ser salva, redimida do assassinato praticado pelo filho único dela. Nunca mais minha mãe caminharia pelos caminhos naturais, e a culpa era toda minha.

Eu havia combinado com o Crioulo e o Zé da Bandana para me encontrar na esquina da padaria ao meio-dia e meio em ponto, que era para a gente surpreender a vítima à hora do almoço. A gente limpava o caixa e sumia dali correndo pela viela, atrás. Um carro, que a gente havia rapinado durante a noite, ia servir de apoio à operação.

Tudo feito, eu entrei primeiro na padaria; o Crioulo e o Zé da Bandana vindo logo depois. Mas foi o meu instinto de assassinato que falou mais alto, quando senti que o moço lá ia sacar a arma. Atirei o balaço, os dois marginais sumiram e eu nada vi. Fiquei em pé, com uma pequena multidão se formando, e sirenes de polícia soando ao longe.

E as mãos de minha mãe cheiram a vinagre, enquanto seus pés cheiram a estrume. O ar que respira vem pesado e sonoro, abrindo caminho para o som dos cancros que tomaram conta de seu pulmão amaldiçoado. Sua urina é como o ácido que corrói tudo pelo caminho e é fétido e gelado como um ninho de cobras.

Eu amaldiçoei minha mãe, quisera Deus a tivesse matado. Pois confidenciou-me um anjo, meio demônio, que vive no céu dos amaldiçoados: “jamais haverá abrigo em seus braços para o filho do homem”. Disse-me o anjo que nem mesmo uma criança pequena faminta se aproximará do seio seco de minha mãe.

Pudesse eu voltar atrás teria corrido da padaria. Não ficaria como uma estátua, plantado ao lado de um cadáver, à espera da apreciação de qualquer gente! Aquela aglomeração, tivesse ela dissipado, e não chegado lá nenhum polícia! Tivesse eu desaparecido do lugar como fizeram o Crioulo e o Zé da Bandana! Fizesse eu o certo pelo errado!

Tivesse eu me evadido, talvez hoje minha mão não fosse maldita e dessa terra não seria minha mãe banida, por ter um dia dado de mamar ao Cão! Rogo todo o meio-dia com os pés sobre um balde invertido, para com ele os olhos alcançarem a luz do sol, pedindo para que possa o anjo-demônio do céu dos amaldiçoados não judiar mais da minha mãe!

Um dia, quiçá, Deus me ouvirá! Enquanto isso, me encolho contra a parede apoiado ao colchonete, nessa sela lotada de marginais, e escrevo no caderno. Nele não há apenas lamentos, nem tudo é lugar exclusivo de pedidos ao Deus do Universo, também há o registro de acontecimentos muito comuns.

No meu caderno registro o que ocorreu há alguns meses na cela do corredor dos perigosos: dizem que um homem não identificado golpeou com um machado os pés de outro homem. Era coisa de dívida de dinheiro ou, na minha opinião, era caso de perversidade mesmo. Foi para fazer o mal sendo muito mau.

Pois, conforme registrei no caderninho, o homem gritava de dor e, hoje para caminhar, se arrasta pelo chão com os tocos das pernas, sem os pés, uma vez que não há aqui para ele o benefício de uma cadeira-de-rodas. Não acho que o preso aleijado é boa gente, mas às vezes falam aqui de direitos humanos. No entanto, ninguém acredita nisso, não.

Enquanto o sol vai descendo no céu, minhas costas vão ardendo contra a parede ensolarada do lado de fora. Nesse instante, sei que minha mãe toma café com leite talhado, depois se banha na água gelada que se projeta do chuveiro queimado, e a pele arde por causa das picadas dos mosquitos borrachudos.

Se eu tivesse tido a sorte de matar-e-correr, ou não houvesse acontecido o balaço, haveria minha mãe de ter tido outra sorte? Diz o pastor que quem deu leite de mulher ao Cão não alcança perdão. Teria eu outra sorte se fugisse, ou sou eu uma prova viva do mal que tomou conta do amor inocente de uma mãe? Haverá o perdão?