A goteira (abril de 2017)

Deitado na cama vejo no rádio relógio de números vermelhos que são três horas da manhã. A ventania do lado de fora faz tremer o vidro da janela enquanto ouço ao longe o latir dos cachorros do vizinho da esquina. É uma noite fria e a chuva que se pronuncia através da ventania não vai demorar para cair.

Meus olhos estão irritados como se neles houvesse areia. Mas não consigo dormir. O quarto na penumbra não contribui para o meu sono, talvez por conta do barulho intermitente da água que goteja na pia da cozinha a uns trinta e cinco metros de minha cama. O ruído se permite encher de significado, intervalado com o latir dos cachorros.

E que significado teria a goteira da pia da cozinha para mim? “Talvez queira me dizer algo”, penso. E, de fato, sim. A goteira quer me lembrar do dia de ontem que se foi cheio de significados para mim, embora pouco tenha para poder referir-me a ele. Foi o dia do enterro de meu irmão do coração.

O dia anterior começara muito antes das oito horas, quando me levanto todo dia para o trabalho. Eram seis horas da manhã quando Jandira ligou. Ela disse pouco. Apenas, “Laurinho morreu, Marcos. O enterro será no cemitério Jardim das Acácias, às dez horas da manhã”. E seguiu-se um silêncio de um minuto entre nós até que se despedisse.

Pus o telefone no gancho e dobrei o corpo convulsivamente, permitindo que o choro jorrasse de mim. Um sentimento de desamparo começou a me invadir nesse momento e me acompanhou durante todo o dia. Lembro-me de fazer uma xícara de café solúvel e depois de tomar um banho para preparar-me para o funeral.

Laurinho tinha já seus trinta anos, como eu. Crescemos juntos, eu o filho da empregada da casa dele, e ele o burguesinho família com quem inventava brincadeiras desde quando éramos ainda muito pequenos. Aquela casa dele, no bairro distinto das Palmeiras, nos viu crescer juntos até o dia em que as demandas da vida nos separaram.

Vivemos também a adolescência juntos, compartilhamos nossos gostos e nossos segredos naquela casa grande com piscina. Não cultivamos o hábito de compartilhar namoradas, o que seria até imaginável que fizéssemos, em razão de nossa profunda amizade. Mas o fato de termos a companhia um do outro era o bastante.

Tínhamos códigos que só nós dois sabíamos e, apesar de termos artimanhas para comunicarmo-nos em segredo, a maior parte de nossa comunicação era insinuada, e habitava as palavras que não eram ditas. Um dia, quando fizemos dezoito anos, recebi o primeiro grande impacto (tácito) que tive de Lauro. Ele trouxe para casa uma moça.

Laurinho namorava. A adolescência que nos uniu agora já não existia mais. Ele buscava caminhos na vida, e isso queria dizer também encontrar uma namorada. Jandira era uma mulher simples, mas muito bem-educada. Havia crescido parte da infância na Europa, onde os pais trabalharam como copeiros para um casal de milionários.

Os pais de Lauro ficaram encantados com a escolha do filho, enquanto eu fiquei desnorteado, porquanto não me houvera falado de seus planos de vida. Depois disso, achei por melhor sair da casa e do anexo do quarto de empregada onde dormia com mamãe. Não foi necessário explicar muito, apenas demonstrar a intenção de partir dali.

Mamãe não chorou, não disse nada, mas presenteou-me com um casaco de frio que comprara para a ocasião de minha partida e que, segundo ela, era para proteger-me do inverno inclemente. Eu saía por bem, todos ficavam felizes por minha partida, eu havia passado no vestibular e iria estudar História na universidade federal.

Lauro, assim como eu, ia para a universidade estudar Direito. Mas suas condições lhe permitiam estudar em uma universidade particular muito bem-conceituada. Jandira, a namorada, era dois anos mais velha que ele e estudava também Direito na mesma instituição. Mas não se conheceram lá, isso foi só uma feliz coincidência.

Aconteceu assim: um dia em que eu estava adoentado, com muita febre, Lauro resolveu ir sozinho ao baile anual do clube dos pais dele. Sempre íamos juntos, mas esse dia foi para mim uma triste exceção. Nesse dia, Lauro foi apresentado a Jandira e, como me contou bem mais tarde a própria Jandira, “os dois corações dispararam a bater juntos”.

Depois de Jandira, nosso relacionamento esfriou. No dia em que saí da casa, ainda encaixotando minhas coisas no quarto, dei-lhe um abraço e tentei dar nele um beijo no rosto, mas ele virou a face para mim como gesto de que não gostava nada desse nosso adeus. Nesse dia, demonstrou raiva de mim e, de fato, não nos falamos desde então.

Lauro desejava Jandira, mas queria manter-me a mim da mesma maneira que quando éramos estudantes adolescentes e compartilhávamos nossas emoções. Para mim, isso já não era possível. Ele havia feito a feliz escolha de unir-se a uma mulher muito agradável, educada e bonita. E ainda havia o curso de Direito adiante.

Essas cenas atravessaram meus olhos dez anos em trinta segundos, enquanto me encontrava ali na cama às três horas e meia da manhã escutando a goteira da pia da cozinha pingar. Lauro morreu e os meus olhos, como disse, arranhavam como se tivesse ali areia. Já não havia neles lágrimas de reserva para chorar.

O telefonema de Jandira primeiro, que me arrebatou para longe de meu mundinho, com seu silêncio que muito dizia; depois o velório seguido do enterro durante o qual, a despeito de ser acolhido por toda a família, choviam sobre mim olhares de incompreensão. E houve ainda o retorno para casa solitário.

Algo se desenhava às três e meia da manhã seguinte, ao som que encharcava minha alma desde a pia da cozinha: Laurinho se matou sem dizer o porquê. Mas as consciências que costumeiramente o cercavam demonstravam que havia na verdade algo que apontava para uma vida sem sentido, e que buscara no silêncio a mim.