Contos do interior: A cidade

Quando cresceu o seu maior medo era olhar aquele céu e pensar que fosse o único a enxergá-lo. Se outros o viam com os seus olhos, nunca a chegou saber.

Caminha seguindo o contorno das ruas, sem compromisso, assim como as ruas que não possuíam planejamento algum, se expendiam para além lá e ninguém arriscou uma vez sequer dizer porque cresciam assim. Irresponsáveis ou confiantes. As ruas seguiam seu caminho tal como o rio, não o mesmo caminho das águas, despencando ladeira abaixo trazida pela gravidade, eram vias e sua composição era sólida, rasgavam a cidade e por inúmeras vezes não respeitavam as leis que regem as águas dos rios. Em alguns pontos subiam um morro, obviamente para quem se propusera a chegar lá em cima, mas essa não é uma história de vontades, mas de possibilidades, e como quem pode estar disposto a subir, há quem precise descer colocando em cheque assim a natureza daquela direção, Essa rua desce ou soube? Os dois, mas ora um, ora outro.

Quando chove surgem novos rios, estão brotando do alto dos morros e esses seguem a lei, obedecem como costume e determinam que ali a água só vai em uma única direção. A água que rola carrega consigo a terra, tingindo a sua coloração inicial que não existe, tinge o choco de ser sem cor, levando vida a cada gota que nasce no céu. Quando descompensada a chuva é de lama e por vezes, tragicamente, de casas.

A chuva banha o asfalto, nec plus ultra do progresso, limpa o caminho por onde chegam as mercadorias e os corações cheios de saudade. É por ali que escoam os necessitados. A partir do centro seguem em três direções, o asfalto só persiste enquanto tapete de caminhões. Em cada caminho outras tantas ramificações, não muitas, dada natureza de sua simplicidade, o suficiente para ser espichada e descomprometida.

Todos o resto de chão é vestido pela harmonia dos hexágonos. Simétricos, florescem na Paixão de Cristo. Que diga-se de passagem, é a mais moderada das paixões, pois mesmo resultando em uma morte e o luto da cidade quase toda não assassina o desejo do considerado proibido e termina em ressurreição por mais que a ciência nada fale, mas que a fé, único pilar seu, siga carregando, e por mais que todos saibam seu desfecho, acreditam naquela tristeza todos os anos, o que me leva a crer que a fé é a essência de toda e qualquer encenação. As outras paixões dali são menos roxas, mas igualmente homicidas qualificadas, sepultam toda a ideia que vá contra a moral, a luz do dia, a noite é só mistério.

Todas as ruas caminham para um potencial lugar nenhum, as três principais vão romper o limite do município um sem número de vezes, e colocar em prova o único poder do homem de limitar, como sua vida curta é, o que lhe supera em imortalidade, Os limites geográficos foram apropriado para se dizer assim referência última de algo que não tem fim, do contínuo que perpassa todo ego de grandeza e o supera ao contemplar seu rosto sem vida uma hora ou outra, num velório seco e de lágrimas.

A rua leva o garoto, e o mesmo é levado a crer na sua autonomia sobre a rua. Os seus passos seguem certos, o canhoto e o destro, o canhoto e o destro, o canhoto e o destro, às vezes cessam, mas o que continua é o caminho. Ele vai de encontro a casa, o espaço de sua criação. Ali, as ruas escondem as casas e as casas as pessoas e as pessoas os seus segredos.