A culpa é do Gabriel Garcia Marquez

- Quem estava no plantão? - Perguntou o detetive que já assumira a investigação.

- Preciso checar com o gerente. - Respondeu timidamente o policial.

- Então por que ainda não checou? - Almeida não tinha paciência com os novatos. Com um copo duplo de café e um brownie já estava com a adrenalina alterada. O café descia oprimindo a alma do detetive exigindo ação, coisa que o brownie não conseguia evitar.

- Chefe, é um tal de Cristóvão. - Voltou com a informação o novato. Agora ele olhava com uma submissão reverente para o austero e exigente detetive, como se estivesse diante de um deus.

- E cadê esse “tal” de Cristóvão? - O novato sabia que os dedos simulando aspas significavam perigo. Só agora percebeu que deveria ter trazido mais informações sobre o principal suspeito do roubo da grande loja de departamentos. Loja que sempre presenteava os familiares dos policiais.

- Desculpe-me, chefe. Vou interrogá-lo. - O novato tento consertar.

- Não, pode deixar, cadê o Junqueira? - Aquela pergunta já era esperada pelo novato, pois o Junqueira era o parceiro do Almeida por mais de sete anos. Na delegacia costumavam brincar dizendo que eles eram marido e mulher. E realmente, eles casavam bem na função de investigadores. Já tinham solucionados vários casos difíceis. E esse roubo da loja de departamentos aparecia como obrigação, como gratidão aos donos.

- O Junqueira está em Minas, chefe. Lembra daquela operação em conjunto com a polícia mineira? - O novato sabia que Almeida estava em Minas, mas ele precisava dizer alguma coisa para aliviar seu mal início dessa manhã.

- Que merda! E me deixam com um novato! Qual é o seu nome, garoto? - Pela primeira vez, o chefe olhou para o novato com cara de desprezo. O novato sabia que Almeida não era uma pessoa má, mas toda aquela dissimulação era necessária para a formação do bom policial. As ruas não são nossas casas, nossos lares. As ruas são o inferno. E é preciso ser duro com os novatos para que endureçam cedo o espírito e se tornem sagazes.

- Ângelo, chefe. - Respondeu imediatamente o garoto.

- Que merda de nome, não? Isso não impõe respeito, filho. - Parece que Almeida abranda um tratamento percebendo o semblante abatido do jovem. “Filho” invade o coração de Ângelo como um refrigério. Ele dá um sorriso tímido e diz: - Talvez, Tavares seja melhor, não?

- Sim, sem dúvida. Conheci alguns “Tavares” na polícia que eram homens de muita sagacidade. De agora em diante te chamarei “Tavares”, OK? Faça por merecer esse sobrenome, garoto! - Ângelo se sentia agora mais seguro e confiante.

- Agora faça o seguinte. Procure o gerente e o “tal” do Cristóvão. Peça ao gerente para arrumar um local na loja que possamos conversar. - Ângelo respondeu com um sim imediato e sumiu pelos corredores que levavam à gerência.

Enquanto esperava, Almeida pegava informações com a sua equipe que recolhia amostras de digitais e as demais evidências que poderiam servir de pistas. A loja teve que atrasar a sua abertura para os clientes não interferirem nas provas. Quando a equipe já havia recolhido o máximo de provas, Almeida liberou a abertura das portas. O chefe mantinha contato com o senhor Júlio, o mais jovem dono da loja e que tinha maior relação com os policiais. Júlio confiava em Almeida e deu ordens para que todos seguissem suas orientações. Assim que as portas foram abertas uma multidão já esperava lá fora para entrar. Nesse mesmo momento, Almeida viu o novato acenando para ele e o chamando. Almeida se aproxima do novato que está acompanhado de dois senhores, certamente o gerente e o “tal” do Cristóvão.

- Olá, detetive, meu nome é Emerson. Sou o gerente e o senhor Júlio me orientou a lhe prestar todas as informações necessárias sobre essa tragédia. - Almeida percebia que Emerson não era o gerente a toa, o sujeito dissimulava bem o amor que ele tinha pela loja. É claro que Almeida como todo detetive desconfiava de todos.

- Sim, prazer, senhor Emerson. E esse deve ser o senhor Cristóvão, não? - O detetive voltou-se para um sujeito baixinho e barrigudo. O seu tipo físico denunciava uma má contratação. Almeida pensou onde, Júlio, estava com a cabeça quando contratou um segurança para sua loja com aquele tipo físico. Cristóvão quando ouviu seu nome saindo da boca do detetive sentiu um arrepio de medo.

- Sim, doutor, eu sou o Cristóvão, às ordens. - Cristóvão ajeitava os óculos e não encarava o detetive. Almeida sempre atento aos sinais do corpo já desejava algemar o pobre do segurança.

- Não sou doutor, senhor Cristóvão, meu nome é Almeida. - Almeida sugeria enquanto vasculhava cada poro do sujeito.

- Ah, desculpe-me, senhor Almeida. Estou à disposição para esclarecer essa ocorrência. - Cristóvão escolhia bem as palavras, palavras do linguajar policialesco, coisa que ele via nas séries policiais da TV.

- Queira me acompanhar, detetive, até a sala da gerência. - Emerson conduziu o detetive, o novato e o “tal” do Cristóvão até a sala da gerência. Almeida decidiu começar a conversa com o segurança enquanto sua equipe já seguia em direção à delegacia com o material recolhido. Almeida pediu para que ficassem apenas ele, o novato e o segurança na sala.

- Senhor Cristóvão, essa é apenas uma conversa amigável para podermos apurar o que aconteceu, OK? Caso seja preciso recolheremos seu depoimento na delegacia, tudo bem?

- Sim, detetive Almeida, sem problema. Estou aqui para ajudar.

- Muito bom. - Aquela maneira de se expressar do segurança já estava dando nos nervos do Almeida. Sua experiência dizia que aquele sujeito escondia muita coisa. Mandou que Ângelo sentasse numa cadeira ao lado e acompanhasse a conversa. Coisa que Ângelo obedeceu imediatamente.

- Senhor Cristóvão, durante seu turno de trabalho tudo correu bem?

- Sim, tudo normal.

- Mas houve um roubo expressivo durante seu turno.

- Sim, eu sei, detetive. Mas posso lhe jurar que tudo correu como todas as noites.

- Bem, mas essa última noite não, né? Você costuma dar uma cochilada?

- Não, senhor. Sempre que estou de serviço perco o sono.

- Perde o sono? Algum tipo de distúrbio?

- Não, senhor, costumo dizer que é o hábito.

- E como você me explicaria o roubo na loja durante o seu turno e o senhor acordado?

Antes que Cristóvão respondesse, Almeida se virou para o novato num gesto que ele entendia bem, ou seja, ele deveria baixar a cabeça e colar o ouvido na boca do detetive, pois este lhe passaria alguma ordem.

- Ângelo, ligue para a Sônia, na delegacia, e manda ela verificar se esse sujeito é fichado. Se for, manda ela me mandar via zap, OK? - Ângelo não respondeu, apenas confirmou com um movimento de cabeça e sumiu da sala.

- Bem, o senhor sabe como esses ladrões são, né? Eles têm a pisada leve, os movimentos silenciosos…

- Sim, mas o senhor não costuma fazer uma ronda pela loja, até mesmo para dar uma esticada nas pernas, já que o senhor não consegue dormir?

- Costumo, sim, senhor. Mas essa noite não fiz.

- E por que justamente nessa noite do roubo o senhor não fez?

- Olha, detetive, eu sei que o senhor deve estar pensando, mas posso lhe jurar que não tenho nada a ver com esse roubo. Sou meio bobo, mas não sou ladrão.

- Senhor, Cristóvão, não lhe acusei de nada, mas você tem que entender que todos que estavam na cena do crime são suspeitos, não?

- Sem dúvida. Entendo sua situação.

- Então, tá. Me diga, por que essa noite específica, o senhor não fez a ronda?

Antes que o vigia respondesse, Ângelo retornou à sala da gerência silenciosamente. Sentou-se ao lado do detetive e com um movimento de cabeça disse que já providenciara tudo.

- Senhor detetive, eu preciso muito desse emprego. Sou aposentado pelo INSS e ganho menos que um salário mínimo. O seu Júlio é uma pessoa muito boa e me deu essa oportunidade para complementar meu orçamento tão precário. Posso lhe pedir uma coisa?

- Sim.

- Vou-lhe dizer o que aconteceu e isso pode ficar entre a gente?

- Por hora, sim. Como lhe disse, essa é apenas uma conversa e se for preciso de seu depoimento, o senhor será convocado para prestá-lo na delegacia, OK?

- Sei. Sabe, a Isaura, minha esposa, me aconselhou ficar quieto e esperar. Mas não poderia fazer isso por respeito ao seu Júlio, entende?

- Entendo, então me fale. Será nosso segredo nesse momento. Dou-lhe minha palavra.

- Sim, isso basta para mim, a palavra de um detetive. Senhor detetive, a culpa é do Gabriel Garcia Marquez.

- O quê? Tinha mais um segurança? Ou esse é o nome do meliante?

Antes que Cristóvão pudesse se explicar, o novato se projetou à frente e cochichou no ouvido do chefe.

- Não, chefe, esse é um escritor.

- Escritor? Senhor Cristóvão, o que esse escritor tem a ver com a ocorrência? Ele esteve aqui essa noite?

- Não, senhor. Até porque ele já morreu. O problema é a solidão, sabe? Esse trabalho de vigia te coloca por oito horas noturnas numa solidão profunda. E como já lhe disse, não consigo dormir quando estou de serviço e como companhia trago sempre um livro. Quando esqueço o livro faço ronda, quando trago o livro esqueço da ronda. E acredito que na hora do roubo estava imerso na solidão de Gabriel Garcia Marquez.

Ângelo novamente se antecipa como se fosse o assessor literário de Almeida.

- Ele se refere ao livro, chefe.

- Ah, sim.

Antes que Almeida continuasse seu celular vibrou. Era Sônia passando informações sobre o “tal” de Cristóvão via zap. Almeida com um gesto de mão pediu que o vigia esperasse. Acessou a mensagem e depois de lê-la se voltou ao vigia, perguntando com um olhar inquisidor.

- E por que o senhor foi demitido do curso de informática após terem sumidos alguns computadores durante seu turno de trabalho?

- Ah, sim, nessa ocasião a culpa foi das minhas putas tristes.

- Como assim? O senhor era um tipo de gigolô?

Novamente, Ângelo se antecipa e cochicha para o chefe, mas antes que o novato pudesse falar, Almeida dá-lhe um empurrão e emenda.

- Vai me dizer que é culpa do “tal” de Garcia?

- Sim, senhor. Naquela época andava decepcionado com o amor matrimonial e recorri a ele.

Almeida desiste de continuar a conversa. Libera o vigia e o aconselha não trazer livros para seu turno de trabalho e fazer as rondas. Prometeu que aquela conversa ficaria em segredo. Deu a mesma ordem ao novato, pois palavra é palavra. Quando saiu foi interpelado pelo gerente.

- Detetive, como foi, tudo bem?

- Sim, tudo bem.

Almeida dirigia-se para a saída da loja e ao seu lado como fiel escudeiro lhe acompanhava Ângelo. Almeida interrompe a caminhada e volta em direção ao gerente.

- Senhor Emerson!

- Pois não, detetive.

- Quem é o responsável pelas contratações dos vigias?

- Eu mesmo, senhor.

- OK, então me escute, quando tiver que contratar um pergunte se gosta de ler.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 03/06/2017
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