Ansiedade

- Olá, meu nome é Carlos. Bem, isso a senhora já sabia, não? Como eu marcaria a consulta sem me identificar, não é mesmo? Desculpe-me, mas sou assim. A senhora deve estar pensando: “Nossa, ele realmente é ansioso!”. Ah, como sou um idiota, não, doutora? A senhora certamente já está acostumada com sujeitos como eu.

Carlos sofre de ansiedade. Ele nunca está no aqui-e-agora, mas sempre no lá-distante. Ele fala e se corrige. Ele pergunta e se desculpa, já sabendo antes a resposta da pessoa. Ele sabe que sofre de um transtorno. Dorme pouco. Algumas vezes sofre ataques de pânico. Então costuma evitar lugares fechados e de saídas “impossíveis”. Para ele, saídas “impossíveis” significam a impossibilidade de saídas imediatas, como tentar sair de um avião em pleno voo. Então evitava os aviões, os navios; mesmo querendo conhecer Nova York ou fazer um cruzeiro. E isso era frustrante, pois Carlos tinha tempo e dinheiro para os dois, mas a maldita ansiedade o impedia. Não se pode ter tudo na vida, ela sempre nos dá um pouco do bem e um pouco do mal.

Carlos seguiu o conselho de seu psiquiatra e procurou uma terapia. É claro que o psiquiatra precisou convencê-lo com algo que o motivasse, ou seja, conhecer Nova York. Agora, Carlos estava no consultório da doutora Gisele. Gisele trabalhava com Terapia Cognitivo Comportamental. Terapia da moda. Carlos confiava nas sugestões do doutor Silva, seu psiquiatra. E Gisele foi recomendada por ser uma excelente profissional.

A sala de espera era bem confortável e a jovenzinha de voz rouca, secretária da doutora Gisele, era bem atenciosa. Ela deixava numa altura agradável a música de Ludovico Einaudi preencher todo aposento. As poltronas tinham o encosto regulável até 90 graus, ângulo que Carlos achava perfeito. Ideal para ler. Os quadros pendurados eram todos de paisagem, talvez para transmitir aos clientes um sentimento sereno. A ornamentação da sala de espera era como uma preparação espiritual dos clientes. Carlos acreditava que o tratamento já começava ali, na sala de espera. A música, os quadros, a secretária, os biscoitos, etc.

- Não, Carlos, pode ficar à vontade. É bom se expressar de maneira livre, pois assim é mais fácil nos conhecermos.

Gisele era uma bela mulher balzaquiana. Cabelos longos, pele clara e muito doce. Este último aspecto deixava Carlos suspenso e pensativo. Ele adorava as mulheres, não somente as belas. O que realmente lhe atraía numa mulher não era somente a beleza, mas a maneira carinhosa de se relacionar com as pessoas. Carlos não era religioso, mas adorava o mito bíblico da criação. Gostava de saber que a mulher era um presente divino ao mundo. Cabia aos homens cuidar delas e serem orientados por elas, naquilo que somente elas tinham: o carinho. Ele chegara a pesquisar a origem etimológica da palavra. Carinho significava em sua origem: alto-valor, precioso. E as mulheres sabem o que tem valor nesse mundo. Por isso elas são mães, professoras, donas-de-casa, médicas, terapeutas, etc. Uma coisa que deixava Carlos triste era uma mulher sem esse sentimento natural dado por Deus. E ele conhecia muitas mulheres que fugiam à sua natureza carinhosa. Assustava-se quando lia nos jornais notícias de mãe que abandonara o filho recém-nascido. Lia essas notícias como ofensas à criação, assim como lia com ódio notícias de estupros. Carlos entendia que o mundo necessitava do carinho feminino e do cuidado masculino.

- Obrigado, doutora. Acredito que com o tempo eu melhore. O Silva, meu psiquiatra, me falou muito bem da senhora. E até agora, ele não me decepcionou.

- Ora, mas ainda não é cedo para você chagar a conclusões, Carlos?

- Talvez, sim. Mas dificilmente, o Silva erra. E vendo sua sala de espera, seu consultório e seu jeito carinhoso, duvido muito que ele esteja equivocado sobre a senhora.

No consultório, Gisele não tinha uma mesa que separava o terapeuta do cliente. Em seu lugar havia uma bancada no canto da parede com algumas coisas que ela entendia necessárias para cada encontro. Ludovico Einaudi também tocava no consultório e os quadros seguiam a mesma temática de serenidade. A pintura das paredes levavam inexoravelmente os clientes à meditação. Havia um aroma especial que proporcionava um bem-estar ao cliente. Gisele sentava-se numa poltrona que parecia bastante confortável, mas depois ele reparou melhor na maleabilidade da poltrona. Seus movimentos possíveis eram diversos. Talvez para que a doutora tivesse alcance de toda sala. A sala de espera e o consultório eram bem equipados com tecnologias diversas, mas Gisele quando sentava na poltrona carregava apenas um lápis e um bloquinho. O paciente podia escolher entre o chão cheio de almofadas coloridas ou um sofá de dois lugares bem aconchegante. Como Carlos gostava dos 90 graus optou recostar-se na parede sentado sobre uma almofada e uma outra que segurava sobre a barriga. Gestos que Gisele no futuro confidenciaria a ele serem de ansiedade. A ansiedade frequenta os intestinos.

- Fico muito feliz com as palavras do Eugênio. Estudamos juntos na PUC.

- Ah, sim, ele me disse.

- OK, Carlos. De agora em diante me chame de Gisele, por favor.

- Tudo bem. Eu mesmo já estava ficando cansado desse “doutora” e “senhora”. Uma moça tão nova…

Ele a apreciava. Imaginava Gisele com os cabelos soltos sentada num café, lendo uma revista. Imaginava como deveria ser sua gargalhada. Pensava: “Será que ela tinha o riso fácil para piadas? Ou era mais séria, mais focada?” Carlos achava que ela no trabalho fazia o tipo mais focada, mas certamente em suas horas de lazer fazia o tipo “Julia Roberts”, boca grande gargalhando e linda.

- Não sou tão nova, Carlos.

- Bem, se a referência for eu, sem dúvida é bem nova, pois já me aproximo dos cinquenta.

Ela sorriu levemente abrindo o bloquinho dando a entender que deveriam voltar ao objetivo do encontro, ou seja, Carlos e sua ansiedade ou Carlos e seus sonhos.

- Carlos, que tal você me falar um pouco de você?

- Sim, claro.

Carlos se ajeitou na parede e fez um gesto que se levantaria, mas permaneceu no chão. Ela o ofereceu o sofá.

- Obrigado, Gisele, não aguentava mais ficar com as pernas dobradas.

Carlos se acomodou no sofá, esfregou as pernas como se tentasse afastar uma câimbra. Quando enfim se ajeitou, percebeu que Gisele fazia algumas anotações em seu bloquinho. Resolveu então começar a falar para ter de novo sua atenção.

- Ah, assim está melhor, obrigado, Gisele. Nossa, como é difícil falar de si mesmo, não?

- Sem dúvida, Carlos. Mas o mais importante você já fez, ou seja, você procurou ajuda. A maioria das pessoas com diversos transtornos não pede ajuda.

- Sim, é verdade. Li um artigo sobre isso certa vez.

- Que bom. Então, vamos lá?

- Sim, me desculpe. Gisele, temos quanto tempo ainda?

- A sessão dura 50 minutos e já passou 20. Mas não se preocupe com o tempo, quando estiver na hora irei lhe informar. Gostaria que agora você se concentrasse em si mesmo e me revelasse algo sobre você.

- Sim, tudo bem.

Carlos pegou uma almofada no chão e a colocou sobre a sua barriga. A ansiedade gritava pelas paredes intestinais.

- Bem. Meu nome é Carlos Sampaio. Tenho 47 anos. Não fumo e não bebo. Gosto muito de ler, sou apaixonado pela literatura russa. Suporto bastante a ansiedade com Dostoievski, você conhece? OK, desculpe-me. Para ser sincero, as vezes bebo vodka para sentir como os russos, entende? Adoro música. Meu gênero preferido são as músicas que me colocam a meditar, sabe? Adoro essa música que toca aqui, Einaudi. Algo que me parece originário de minha ansiedade é eu não conseguir ler apenas um livro. Leio dois, três, quatro, etc. Ao mesmo tempo. Ah, também arrisco escrever. Me identifico com os contos, talvez por serem breves. E com esse meu espírito ansioso, escrever um romance seria uma tortura.

- Por que seria uma tortura?

- Ah, minha cara, não posso me envolver em projetos a longo prazo. Por isso, as vezes, opto por novelas, entende? Escrevo um capítulo por dia, aí a coisa vai. Já pensei em escrever um romance assim, sabe?, um capítulo por dia.

- E o trabalho?

- Graças a Deus estou aposentado. Mas quando trabalhava seguia uma escala e não era um horário fixo, repetitivo. E isso se encaixava bem, pois não tenho disciplina com horários. A possibilidade de criar meu próprio horário de trabalho era bastante agradável para minha situação.

- E por que você já está aposentado?

- Bem, uma junta médica decidiu me aposentar devido meu transtorno. E vou-lhe ser sincero, Gisele, foi uma das melhores coisas que aconteceu em minha vida.

- Sei, mas você não sente saudade do trabalho, dos amigos?

- Do trabalho, não. De alguns amigos, sim. Mas nada supera a minha liberdade, entende? E outra coisa, um cara que gosta de literatura russa não tem muitos amigos nessa terra, né? Com quem você acha que eu me relacionaria intimamente numa terra de leitores de autoajuda?

Carlos sentia que deveria maneirar, não queria passar a ideia de que era soberbo. Também percebeu que Gisele já não anotava mais nada em seu bloquinho, parece que ela estava interessada no que ele dizia. Carlos se sentia a vontade revelando coisas íntimas àquela mulher desconhecida, mas que ia lhe ficando íntima após cada coisa que lhe revelava. Ele sabia que intimidade era isso: poder conversar coisas íntimas com alguém. Naquele momento de breve reflexão percebeu a importância do papel da terapeuta. Era como um sacerdote que ouvia as confissões de um pecador qualquer. Pecados que eram retirados dos ombros do pecador e eram colocados sobre os ombros do sacerdote. Ele olhava aquela bela mulher sobrecarregada com as mazelas existenciais de seus clientes. Os clientes iam sendo aliviados a cada encontro e ela, ao contrário, sendo oprimida. Os clientes mais aliviados conseguiam ir a festas, beber, gargalhar, dançar. E ela? Ela tinha tempo para si mesma? E se tivesse algum tempo teria sanidade suficiente para aproveitar o dia? Subitamente, Carlos foi possuído por imensa compaixão. Gisele deixou de ser apenas humana e ele a contemplou como uma santa. Uma santa que é abandonada pelo fiel após alcançar a dádiva.

- Gisele, me desculpe, não quero passar a ideia de que eu seja grosso ou intolerante. Cada um lê o que quiser.

- Não, Carlos, não precisa se desculpar. É bom que você fale livremente sem a preocupação com qualquer tipo de barreira social. Somente assim posso saber as coisas que te afligem. Peço, sinceramente, que não dissimule. A dissimulação atrapalha a evolução da terapia. Se o que você está dizendo é realmente o que sente, então diga.

Em 50 minutos Carlos se apaixonou. Toda aquela mulher: sua voz, inteligência, perspicácia, carinho, cheiro, olhar; tudo nela o deixava admirado. Carlos já não pensava em Nova York, em cruzeiros marítimos, etc. Aos poucos, Carlos ia sofrendo uma mudança estrutural em seu ser. Ele começava a desejar o resto de sua vida, de seus sonhos ao lado daquela bela mulher ainda desconhecida.

- Bem, Carlos, chegou a hora. Nos veremos então na próxima semana?

- Sim, com certeza.

Ela sorriu e o acompanhou até a sala de espera. Pediu à secretária que marcasse um novo encontro para a próxima semana e que o acompanhasse até a saída. A jovenzinha de voz rouca fez o registro e acompanhou um Carlos ainda absorto em seus pensamentos. O “clic” da fechadura tirou Carlos do transe e ouviu a vozinha da secretária: “Até semana que vem, seu Carlos!” E Carlos respondeu com um sorriso e um piscar de olhos. A porta se fechou e ele seguiu em direção ao elevador. A vozinha da secretária a repetir em sua cabeça: “Semana que vem” o acompanhou até em casa.

- Semana que vem é tão longe...

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 01/06/2017
Código do texto: T6015945
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