SENZALA

A senzala estava cheia pela manhã. Haviam chegado novos pretos durante a noite. Estavam em número de seis no canto da casa velha com paredes de barro.

O frio havia sido intenso. Aqueles homens tinham por vestimenta apenas uns farrapos que lhe cobriam desde sob cintura até a altura dos joelhos.

As mãos machucadas retinham por conta do sangue que lhes gotejava, a areia do chão batido do casebre. Quando passadas por sobre o rosto, ali ficava areia colada ao sangue, no que ajudavam a esconder o desespero, a desesperança, o terror de cada um daqueles seis homens que deixavam de ser homens para se tornarem coisas de braços e pernas fortes para o trabalho sem fim e inumano que lhes seria exigido pelo restante da vida.

A porta foi aberta. Era hora apontada para mais um longo dia de trabalho. No inverno era melhor trabalhar, pois apesar do frio, seriam incomodados por menos moscas e mosquitos no campo. A chuva fina aliviava a investida dos insetos, mas parecia ampliar o impacto do frio sobre os corpos cansados e subjugados pela humilhação de se ter a liberdade despedaçada e espalhada seus restos por entre lembranças e desejos incompreendidos.

O feitor mulato invade o espaço. É seguido por dois outros pardos de caras amarradas, os quais ao sinal do mulato seguram pelos braços os pretos assustados, levantando-os e empurrando-os com violência para fora do abrigo.

Embora já estivessem todos manietados uns aos outros, ainda que como se não bastasse, uma corda grande, grossa e pesada envolveu a cada um pela cintura obrigando-lhes à formação de uma corrente humana de almas quebradas numa horrenda procissão de quase mortos-vivos que não sabiam o que esperar a mais pois que tudo lhes fugia à compreensão do que ocorrera desde o aprisionamento em sua terra, a separação de suas mulheres, pais e filhos, a interminável viagem num buraco escuro, fétido, nauseante, o sumiço de alguns outros durante o tempo que permaneceram naquele chão balouçante, o cheiro de mar e morte que lhes impregnava a pele e as sensações, o aporto num lugar barulhento, apinhado por gente muito branca e estúpida. Correntes lhes foram colocadas nos tornozelos, pulsos e pescoços. Era difícil, pesado e doloroso o caminhar. Algumas pancadas na cabeça, nas costas nuas e nádegas. A sede, a fome, o tempo lhes desgastaram o que ainda havia lhes restado de dignidade. Estendiam as mãos frente ao rosto e não se sabia se era para proteger das pancadas ou se suplicavam por um pouco de água, comida ou misericórdia?

Expostos sobre um tablado, foram tocados, girados e, finalmente, levados em lotes por outros homens brancos, cobertos por roupas grossas e quentes, com as cabeças protegidas por largos chapéus espalhafatosos e afeminados.

Os brancos em suas montarias puxavam os negros em fila amarrados uns aos outros e chibatados de quando em vez quando aparentavam resistir à marcha.

Caminhada de quase um dia inteiro, de sol que se levantou do mar a sol que se baixou por trás dos morros que circundavam o terreno ao qual chegaram.

Famintos, extenuados e machucadas terrivelmente a sola dos pés, tiveram as correntes dos pés, mãos e pescoços substituídos por uma corda apertada que lhes atou as mãos de forma a lhes represar o sangue e lhes infringir mais um suplício.

A noite fora longa, apavorante, fria e dolorosa.

Quando entraram no quarto já quase tomado pela escuridão, perceberam outros vultos deitados sobre o chão de terra batida. Empurrados para um canto nele se acocoraram e permaneceram assim até que quando o primeiro clarão timidamente adentrava o espaço, um homem nem branco nem preto lhes apareceu à frente e fez com que saíssem aos empurrões e tapas para um pátio onde já se encontravam outros pretos e pretas com enxadas e foices nas mãos já para mais um dia de ceifa e limpeza do campo.

Estavam todos se perfilando para a caminhada ao campo quando uma voz metálica e poderosa reverberou por sobre todos eles, fazendo-os largar por conta e vontade próprias as enxadas, as foices por sobre o chão. Os seis negros manietados livraram-se facilmente das cordas evadindo-se do local gritando felizes, rindo e se abraçando.

A voz imperiosa dizia: 'Corta! Corta! Ficou ótima a tomada! Parabéns a todos! Duas horas de almoço! Vamos lá, rapaziada! Bom apetite!'