O Dia da Liberdade

Nem sempre a cidade de Normen era tão triste, tão quieta, tão cinza. Nem todos os dias as pessoas precisavam esconder seus gostos, alterar suas vozes, seu modo de andar. Nem sempre os meninos precisavam gostar de “coisas de meninos” e as meninas fazerem “coisas de mulher”. Havia um dia a cada 50 anos que todos poderiam ser o que realmente eram, sem ter vergonha de seu modo e sem ser reprimido por suas atitudes, desde que estas não prejudicassem ninguém.

Este dia chamava-se “LIBERTY”, e acontecia por explicações que a maioria não entendia, mas sabia-se que tinha ligação com tradições da única religião do País. Um dia inteiro para ser LIVRE.

No Norte de Normen onde os costumes eram ainda mais rígidos, morava Infinitum, um menino de 13 anos que respeitava todos os costumes, agia conforme todos os padrões impostos, e de longe, bem de longe, parecia feliz. Ninguém poderia imaginar que dentro daquele menino, tão tímido ,tão frágil, haviam tantos SONHOS, que naquele rosto, que não transparecia coragem, existia a valentia de pensar em um dia poder gostar de tudo que ele não pode.

E foi numa ida ao treino de futebol, que perto de uma banca de jornal, Infinitum ouviu dois senhores conversando, e o que lhe chamou atenção foi o eco de uma palavra que ele nunca havia ouvido, uma palavra nova, de som forte e nuances puras: Liberdade. Neste momento ele parou perto dos senhores, e como quem não queria nada, passou a ouvi-los falando em tom de voz médio sobre o (conhecido por poucos) “LIBERTY”, o dia de ser quem se é de verdade.

Pelo que ouvira, faltavam dois dias para este grande evento, que ele, aos seus ínfimos 13 anos, nunca tinha ouvido falar. Quando chegou em casa, sentia o anseio de perguntar aos seus pais sobre a conversa dos dois senhores, mas antes que pudesse criar coragem, foi surpreendido com a imagem de seus pais na sala de casa, com olhares frios, como se temessem algo ou tivessem cometido algum crime. Eles o chamaram e disseram que precisavam conversar com ele. O tom daquele cômodo já mostrava-se pesado, como se sua mãe e seu pai fossem lhe contar o segredo do pecado. Coincidentemente, o tal assunto era sobre o LIBERTY.Já que faltavam apenas dois dias, os pais precisavam contar o que era isto, como foi este dia para eles quando eram jovens e também o viveram. O garoto ouviu tudo como se fosse algo nada familiar, desistiu de contar sobre a conversa dos senhores e ao máximo escondeu todo o entusiasmo com o que ouvia. Infinitum,já fazia muitos planos, as roupas que ia usar, as brincadeiras que ia aproveitar, e principalmente, na realização de seu maior sonho, ir no Bosque das Flores Raras, local que normalmente, apenas as mulheres e meninas frequentavam.

Estes dois dias restantes demoraram a passar, como se cada minuto tivesse mil segundos e cada hora, minutos incontáveis. Enfim, ao chegar o grande dia, ele acordou como nunca, sem a preguiça que lhe fazia querer dormir mais e sem a indisposição cotidiana. O ar parecia diferente, o sol que entrava pela janela, também. Ele correu para seu guarda roupa e puxou lá do fundo um short amarelo e uma blusa vermelha, roupas que ficavam escondidas, de cores que só meninas podiam usar, mas que finalmente, Infinitum poderia experimentar. Ele tomou café, pegou a boneca de sua irmã para fazer-lhe companhia, e foi para o Bosque da Flores Raras.

Ao chegar lá surpreendeu-se, pelo visto todos do país foram muito bem informados por seus pais sobre o LIBERTY e ao contrário do que esperava, viu muitos meninos por lá, com roupas diferentes do padrão “Azul e Preto” dos homens. Pareciam todos tão felizes, como se fossem espelhos do que ele mesmo sentia. Ele brincou de corda, bambolê e muitas coisas diferentes que as meninas o convidaram a brincar, assim como muitas delas estavam jogando bola e brincando de luta. Ao mesmo tempo que sentia-se feliz, deprimia-se a cada centímetro que o Sol descia no céu, sinalizando o fim daquele dia único.

Após brincar, conversar e conhecer cada centímetro daquele parque nunca visto, ele sentou num banco de madeira para descansar. Enquanto via as outras crianças brincarem e ouvia os diversos barulhos da felicidade nem viu que ao seu lado havia sentado um outro menino, este que ele não conhecia. Eles conversaram, afinal neste dia isto não era proibido, e aos poucos ele foi vendo que ele e este menino tinham muito em comum, como principal característica, a capacidade de SONHAR...Ele ouvia como música tudo que este menino sonhava em fazer, e o quanto ele sentia-se alegre por poder ser quem ele era...pareciam palavras tiradas de sua própria boca. Infinitum aos poucos sentia-se mais estranho, olhando aquele menino com se este fosse a única pessoa no mundo, como se os olhos dele fossem os mais bonitos e suas ideias as mais incríveis. Viu em seu coração despertar algum sentimento, sentimento este totalmente proibido em um dia comum, proibido de sentir ao menos, por outro menino.

O dia ia acabando, e quando os dois, ali sentados naquele banco viram, já era hora de ir embora e com muita tristeza assim fizeram. Ao acordar no outro dia, a tristeza parecia maior que nunca. Ele via que após experimentar a liberdade, voltar aos padrões estabelecidos a todos era terrível, porém algo que não podia ser diferente, ele tinha, mesmo contra seu gosto, voltar a ser como todos eram, sem sonhos, sem cores e sem amores...Vivendo com aquele vazio, e com os olhos daquele menino que lembraria por todos os dias de sua vida.

50 anos depois, ele era um senhor como aqueles que vira conversando na banca, há muitos anos. Tinha uma mulher, dois filhos. Seus sonhos envelheceram junto a seu corpo, já estavam pálidos como sua pele. Todo dia por estes 50 anos passados ele remoía o descontentamento de sentir-se preso, não era feliz com a família que criou. Infelizmente não havia muita coisa a fazer, sequer lembrar ainda, sim! ...Lembrar daquele menino...Daquele bosque...Daqueles sentimentos.

Como haviam passado 50 anos, era a vez de Infinitum contar aos seus filhos sobre o LIBERTY, o dia da liberdade, que agora, com tão poucos sonhos não lhe despertava tanto anseio. Foi neste dia, seu segundo dia da liberdade, que seus sonhos morreram, com todas as vezes sem dormir, todos seus momentos... Junto com seu suícido;algo inaceitável em dias comuns. A esta altura, seu grande grito de liberdade era ter a liberdade de abrir mão da própria vida.

Para os que acreditam em céu, inferno e justiça divina, Infinitum viveu tudo o que

não pode e foi muito feliz em algum lugar, algum plano...

Para os que não acreditam, ele simplesmente morreu.

G Trindade
Enviado por G Trindade em 08/05/2017
Código do texto: T5993561
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