A MORTE TE MANDA UM BEIJO

Três horas da madrugada, hospital em silêncio; Ana finalmente descansava; ficava vez mais difícil; cinco anos, só sofrimentos, e a dor cada vez mais resistente à morfina, o câncer não dava trégua. Todos os sonhos se foram depois da notícia da metástase. Marcino olhava a esposa que, mesmo dopada, ainda transparecia desesperança. Viver tinha se tornado um inferno.

Outros leitos, outras dores; era ali o reino da descrença e das revoltas contidas. Pessoas de todas as idades, cores e religiões; amofinadas, sedadas pela perplexidade da doença. Havia um pouco de fé, mas era muda, sufocada. O Cheiro do ambiente denunciava a triste realidade daquela ala do hospital, um corredor para a morte. O profissionalismo nos atendimentos tentava dar um sentido de ordem àquele caos existencial, um pouco de esperança; Mas tudo confirmava o quadro de resignação forçada. Onde estava Deus que não permitia alívio àquela gente?

Marcino olhava fixamente o grafite da parede, imagem do paraíso, e a estátua de gesso de São Miguel Arcanjo, em cima de um suporte; Sem mais a força e a esperança do início do tratamento, cansado, seus olhos, agora traidores, sabotavam seu desejo de estar presente, acordado, ao lado da esposa amada toda aquela noite. Seu dia tinha sido pesado, teve que cobrir o horário de um colega, era sua noite de dormir no hospital e estava sem dinheiro para jantar, tinha vindo direto do trabalho, ainda com a farda da empresa, era motorista de ônibus. Encontrava-se sozinho na enfermaria, misteriosamente não havia outros acompanhantes; Enfermeiros e médicos tinham terminado o expediente, era só ele, os sofredores, a parede pintada e o Arcanjo Miguel.

Ideias Messiânicas passaram a penetrar em sua mente: E se ele fosse um instrumento de Deus para trazer alívio àquelas pessoas? Deveria certamente ter um significado por trás de toda aquela dor, Deus o tinha escolhido, e ele precisava cumprir sua missão. Uma parte dele teimava em não atender ao chamado, mas Deus falava mais alto, era clara a direção divina. Marcino abaixou a cabeça e fez uma sincera oração, enquanto rezava, um vento forte soprou no quarto, e se ele não tivesse se apressado, a imagem de são Miguel Arcanjo teria sido quebrada pela ação do vento perturbador; e ali estava a resposta. Nenhuma dúvida restou mais, sua fé estava firmada em um milagre, ele era agora um agente de Deus na terra.

Cuidadosamente pega na mão de sua esposa, faz promessas e juras de amor eterno,lhe dá um beijo de despedida e a livra das dores, sufocando-a com o travesseiro. De leito em leito repete o mesmo gesto, e em menos de uma hora, ele tinha libertado todos naquela enfermaria. Marcino tinha se tornado um anjo da morte. Sua missão seria trazer alívio para todos os sofredores.

Tendo voltado para casa, cansado, se prepara para se deitar, depois da oração habitual, dorme. Imagens invadem seu sono: Montanhas, cavernas, era uma época muito antiga, estava no Brasil, em um tempo anterior a tudo que ele conhecia; anoitecia e todos entram na grande caverna, no centro uma fogueira acesa, e o grupos se divide; uns foram cozinhar, brincar, e outros criar utensílios e desenhos nas paredes, fazer Arte pré-histórica.

Todavia, todos conversam entre si. Marcino se sentiu atraído pelo “grupo dos artistas”, que faziam desenhos geométricos, figuras humanas estilizadas e de animais, além de representações de corpos celestes: Sol, estrelas, cometas e etc. Pedaços de óxido de ferro e dióxido de Manganês eram triturados, assim como argila branca, depois de peneirados, se obtinham os tons de vermelho, do ferro, marrom do manganês e o branco da argila; utilizada também como fixador, assim como a água. Tintas preparadas, uma vareta vira pincel, e o trabalho começa com atenção e palpites de muitos, era uma arte coletiva, um momento de socialização e de transmissão de saberes técnicos e simbólicos referentes à cultura do grupo; Marcino observava encantado tudo aquilo, tendo tão pouco, aquelas pessoas pareciam felizes, marcavam nas paredes-memórias, vitórias, cerimônias, momentos de alegria, o sexo, os amigos, a fauna, o céu e só; como se não fosse importante registrar fatos tristes, as perdas.

Acordou sobressaltado com policiais batendo sua porta: Uma voz vinda de um megafone avisava que ele estava cercado; minutos depois, rajadas de metralhadoras rompiam as paredes de seu lar formando estranhos desenhos. Marcino sentiu o momento em que fora atingido, o ardor, o coração descompassado, a fraqueza, o medo, a dor, o alívio. Caiu vendo os policiais entrando em sua casa, sentia suas forças saindo, era um convite forçado, imperativo, à volta ao sono, sua mente lembrava de toda a sua vida, pensando nela, faleceu.

Quinze horas, tarde tranquila, hospital central. Uma mão suave toca o pulso de Marcino, era a enfermeira que o tinha socorrido. Tudo tinha sido um terrível pesadelo. Primitivas memórias e temores pintados no inconsciente. A notícia de desemprego simultânea à separação de Ana, depois de cinco anos de casados, tinha sido demais para ele, desmaiou e fora levado para o hospital onde ficou inconsciente por mais ou menos uma hora. Depois do soro e da medicação foi liberado. Reflexivo, volta para casa: Era também para isso que existia a Arte: Recontar a realidade, pintar novas representações, novos quadros, criar estratégias, significar a vida, vencer a desesperança: O beijo da morte.

Embora em dor sentida,

Rasgue o futuro em risos

Mesmo com alma despedaçada

Rompa a aurora tão esperada.

Dê à alma delicada

Mente transmudada

Sob a luz da estrada

Conquiste o céu

Afronte vendavais

Doe-se nu aos campos

Entrenublados.

Deixe soprar

Ao prazer dos ventos

A vela da ventura

E navegue sem pudor

Impunemente

Os mares dessa loucura.

Ivan Rodrigues dos Santos

REFERÊNCIA:

Prous, André; Arte Pré-histórica do Brasil

Poema Viva a vida, do mesmo autor.