Desculpe-me, você irá morrer

Lembro-me vagamente do que aconteceu naquele dia. Era domingo, eu sei pois sempre jogávamos futebol aos domingos. Todos os meus colegas iam. Inclusive nossos pais para nos ver jogar, no clubinho da escola. Também lembro que estava quente. Depois disso, não me recordo de mais nada.

Bem, na verdade, tem mais uma coisa.

Uma bola voando em minha direção.

Agora sim. Não me lembro de mais nada.

Acordei no hospital. Sentia-me enjoado e cansado. Meus pais, sentados ao meu lado, estavam chorando. Disseram-me que eu havia dormido por muito tempo e que logo o meu médico viria falar comigo. Eu esperei. E, nesse meio tempo, fiquei imaginando o quão forte aquela bola tinha me atingido ao ponto de me ter feito desmaiar. Ou teria desmaiado antes? Não me lembrava da bola ter atingido o meu rosto, ou teria? Minha memória estava um pouco embaralhada, mas tinha crença de que tudo seria explicado.

O médico entrou no quarto, me observou, fez algumas perguntas de rotina e, em seguida, sentou-se ao meu lado em uma cadeira que ele havia puxado para ficar mais próximo. Geralmente as crianças da minha idade (eu tinha sete) tem medo de hospitais e médicos, mas eu não. Eu gostava dos médicos. Pensava em me tornar um quando estivesse mais velho.

– David, você sabia que eu sou um caçador de dragões? – disse-me o médico seriamente, mas não sem gentileza na voz.

– Sério?! – estava encantado, eu adorava histórias de cavaleiros e dragões.

– Sim, eu sou. Na verdade, todos os médicos são. Somos conhecidos como os cavaleiros brancos e nossos inimigos são os dragões.

Eu estava tão impressionado e extasiado que mal tinha percebido que minha mãe tinha saído do quarto, acompanhada de meu pai.

– Nós, os cavaleiros brancos, lutamos incessantemente contra esses dragões que vocês, normalmente, chamam de doenças – fiquei boquiaberto com esta revelação. – E o nosso trabalho é defender as pessoas desses dragões – ele fez um estranho momento de silêncio e continuou. – Mas, às vezes, nós não conseguimos vencê-los... – ele olhou para mim com olhos cheios de compaixão. – Um desses dragões chama-se câncer.

Nesse momento, meus pais entraram na sala novamente e ficaram abraçados ao lado do médico, ainda com lágrimas nos olhos.

– Esse dragão é muito poderoso – continuou o médico. – Algumas vezes, nós conseguimos vencê-lo, mas, outras vezes...

– Então... esse dragão me atacou? Por isso eu desmaiei? – interrompi, assustado.

– Sim – respondeu o médico – e receio que não há nada que possa ser feito. Desculpe-me David, mas eu não consegui vencê-lo dessa vez.

Foi então que eu entendi o que estava acontecendo. Câncer, o dragão, havia me atacado e o médico tentou me proteger, mas já não havia nada a ser feito. Meus olhos arregalaram-se, meu coração acelerou e os bips da máquina ao lado começaram a apitar mais rápido e mais alto.

–Não! Não! Não! Não! Por favor, mamãe, não deixe que o dragão mau me leve! – gritei. – Por favor! Não deixa que ele me leve, MAMÃÃÃÃE!!!

Minha mãe caiu no chão, em desespero, chorando tanto quanto eu. Meu pai, sentou-se ao seu lado para ajudá-la, mas ele mesmo também chorava.

– Mãe! Pai! Por favor, por favor!!! Não quero que ele me leve, EU NÃO QUERO QUE ELE ME LEVE!!! NÃO ME DEIXEM IR EMBORA!!! PAAAAAAI!!! MÃÃÃÃE!!!! EU NÃO QUERO... – foi então que senti uma dor aguda em meu braço. O médico havia injetado algo em mim. Minhas pálpebras ficaram pesadas e tudo ficou escuro.

Na escuridão eu sentei, mesmo sem ver ou sentir onde estava sentando. Abracei as minhas pernas, mesmo sem vê-las. Chorei e chorei, mesmo sabendo que ninguém ia ouvir ali. Tudo era escuro, e na escuridão não havia nada, a não ser eu e o dragão.

Até que, em meio as lágrimas, vislumbrei uma estranha luz que saia de uma porta que antes não estava lá. E da luz saiu um homem que também era pura luz. Aproximou-se de mim.

– David, por que está chorando? – perguntou o homem.

– Eu vou morrer – disse-lhe. – Um dragão mau vem me pegar.

– Um dragão?

– Sim – choraminguei.

– David – sentou-se ao meu lado e pude sentir um calor reconfortante emanando dele. – Você não vai morrer, não verdadeiramente.

– Não? – perguntei enquanto limpava as lágrimas de meus olhos – O que vai acontecer comigo?

– Você vai voltar para Casa.

– A minha casa? – perguntei feliz.

– Sim David, mas não a Casa onde você mora atualmente, mas a sua verdadeira Casa.

– Não estou entendendo...

Ele apenas sorriu. Levantou-se e, em seguida, ajudou-me a ficar em pé.

– Ele irá lhe explicar melhor – e apontou para a porta, onde havia um outro alguém lá. Por um momento eu não havia discernido quem era, mas logo entendi e reconheci. Fiquei tão feliz que corri em sua direção com os braços abertos.

Quando acordei sentia-me melhor e mais esclarecido. Não posso dizer o mesmo de meus pais que estavam, ainda, muito tristes. Eles não sabiam, talvez nem o médico soubesse ao certo, mas eu iria morrer em três dias. Não morrer, mas voltar para Casa. Aproveitei esses três dias para tentar acalmar os meus pais, e dar a eles forças para continuar a vida deles sem mim. Tenho que admitir que não foi nada fácil. Mas eu fiz o meu melhor. No terceiro dia, o dia que me levariam para Casa, eu pedi ao meu médico, que quase não saia de meu quarto, (“Para observá-lo”, disse-me uma vez) para trazer os meus pais que estavam na lanchonete, que queria-lhes dizer algo. Ele então, foi buscar os meus pais.

Havia papel, lápis, caneta e vários giz de cor no meu quarto. Peguei uma folha e escrevi o seguinte:

“Para mamãe e papai

De

David Leão

Queridos papai e mamãe, eu sei que é muito difícil para vocês entenderem que eu tenho que voltar para Casa. Mas eu queria que vocês não ficassem tristes, pois eu sei que estarei em boas mãos. Há muitas pessoas comigo nesse momento, esperando-me acabar a carta para que eu possa ir. Eles são muito gentis e muito legais! Vovô Arlindo também está aqui e ele me disse que irá cuidar de mim e pediu para que ficassem tranquilos!

Eu gostaria de dizer isso para vocês, mas achei melhor escrever em uma carta, porque quando vocês chegarem aqui, eu já terei ido embora. Quero que me vejam como se estivesse dormindo.

Eles estão dizendo que tenho que ir, papai e mamãe. Eu vou dormir agora.

Amo vocês!!!

Vamos nos ver logo!

Até mais.”

Anderson C Alves
Enviado por Anderson C Alves em 02/04/2017
Código do texto: T5959653
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