Um amor de família (março de 2017)

Quando não estava assistindo televisão, estava fazendo palavras-cruzadas. E quando não fazia nem um nem outro, ficava pendurado na Internet. Procurava sobretudo páginas sobre saúde na terceira-idade. A mulher passava, olhava, e seguia pela casa dedicando seu tempo aos afazeres domésticos.

De fato, Ida não via com bons olhos a escolha dos passatempos de Rafael, mas melhor não fazer nada, para não ser autoritária com o marido. Na verdade, como uma alma libertária, detestava manifestações inúteis de autoridade. Em mais de trinta e cinco anos de casamento ela jamais voltou-se contra o marido, e o mesmo fez ele em relação a Ida.

Rafael se havia aposentado havia pelo menos três anos, por tempo de serviço. Aposentou-se pela repartição pública onde empregou sua força de trabalho por aproximadamente quarenta e cinco anos de sua vida. Assim que acordou no primeiro dia de sua aposentadoria, sem nada o que fazer, sentiu um enorme choque e medo.

O medo maior do senhor de idade de cabelos ligeiramente grisalhos (ainda era um homem bonito) estava no medo de que se esquecessem dele. Sentiu isto naquele primeiro dia sem trabalho no momento em que, levantando-se da cama, pôs os pés no chão. Uma fantasia sinistra atravessou-lhe a mente: amigos passavam por ele sem vê-lo.

Naqueles dias foi o bastante abordar a esposa que também se levantava da cama e abraçá-la com força. Como resposta à reação da mulher, estupefata com os olhos esbugalhados que exigiam uma explicação de Rafael, ele sentiu necessário afirmar, mirando-lhe os olhos: “Ida, eu estou ficando louco. ”

E foi naquele dia, há três anos, que lhe contou o que acontecera ao tentar levantar-se. Fez menção ao “filme” que enuviou sua visão e projetou a indiferença dos amigos passando por ele na rua. Acreditava que não teria mais razão para existir, pois não conhecia nada de útil que pudesse fazer para justificar o findar de outro dia em sua vida.

Ida procurou então acalmar Rafael fazendo-o ver que neste campo da vida era perita. Nunca trabalhara fora, em todo o tempo que estiveram juntos, mas passou vinte anos de sua vida cuidando dos filhos, o que para ela era trabalho dos duros. Quando os dois filhos saíram de casa, havia quinze anos, também atravessara por uma crise horrenda.

Quando os filhos foram morar fora, Ida sentiu que toda sua vida se esvaziava de sentido. Julgou que nada mais que fizesse teria utilidade, e que mesmo o marido não daria mais valor a seu trabalho solitário. O que lhe restou depois da partida dos filhos então, foi uma casa para arrumar e um marido para cuidar.

Com o correr do tempo, segundo assegurou-lhe, Ida foi construindo sua razão naquele espaço em que vivia aperfeiçoando seu trabalho em função dela e do marido – que era a única pessoa que lhe restou ao toque das mãos. Galgou degrau por degrau para fora da crise da idade através de anos, aprendendo a superá-la. E Rafael teria de fazer o mesmo.

Voltando-nos ao momento atual do casal, voltamos de novo para Ida, passando por Rafael pela sala de televisão a caminho de seus afazeres da casa. Depois de alguma limpeza, começaria a preparar o almoço. Todavia, ainda que contente ao ver o marido envolvido em atividades, se ocupando, algo havia ainda que lhe preocupava...

Ida preocupa-se com a saúde do marido Rafael. “Ah... se ao menos ele aproveitasse a manhã para um passeio pela vizinhança...! ” Pensou. Talvez lhe falasse sobre isso durante o almoço. Quem sabe ele lhe ouviria? “Tomar o sol da manhã ajuda à absorção de vitamina D pelo organismo...” Ida aproveitava o sol da manhã diariamente.

Os afazeres dos quais se ocupava pela manhã incluíam um delicioso banho de sol diário, feito no jardim da entrada da casa, em meio a roseiras e touceiras de diversas outras plantas. A primeira coisa que fazia depois de preparar o café da manhã era regar o gramado e as plantas do jardim; assim aproveitando para banhar-se com os raios de sol.

Rafael tem suas excentricidades – que envolvem aquela overdose diária de televisão, a Internet e palavras-cruzadas – mas Ida também tem as suas. Entre as esquisitices da mulher está o desfilar pela casa desde bem cedo carregando um meio-quilo de cremes faciais de beleza e um turbante de toalha umedecida na cabeça.

Rafael acha tudo esquisito, e por isso abaixa a cabeça toda vez que sua mulher passa por ele. Sente que deveria fazer alguma coisa em relação àquilo, mas seu espírito libertário o impede. Talvez algum dia, em uma conversa com Ida, conseguisse encaixar o assunto dos cremes de beleza. Mas nisso não haveria nada de fundamental para o caso de amor.

Um certo dia, no aniversário de Rafael, Ida lhe presenteara com uma linda camisa polo amarela que lhe caiu muito bem. A camisa o rejuvenescia. Interessada em saber a opinião do marido, acompanhou-o até o espelho e esperou para ouvir o que achava do presente. Ele agradeceu com um beijo na boca.

No dia de aniversário de Ida foi a vez do marido presenteá-la com duas passagens aéreas para Buenos Aires. Quatro noites na cidade portenha foi o tempo necessário para adicionar combustível ao relacionamento do casal de senhor e senhora de terceira-idade. A viagem foi para os dois uma renovação dos votos de fidelidade.

Para resumir nossa história: nem mesmo na viagem Ida livrou-se do hábito de cobrir a face diariamente com uma grande quantidade cremes de beleza. Ou Rafael livrou-se do hábito de fazer páginas e páginas de palavras-cruzadas durante a manhã antes do almoço. Entretanto, nada ouviram como reclamação de seus cônjuges.

A verdade é que o que havia de fundamental no amor dos dois estava no voto de silêncio de cada um. Poupavam um ao outro de suas intolerâncias, rabugices, no exercício do silêncio. Duas almas libertárias se encontraram – cuja química resultante do encontro foi favorável para que o casamento se perpetuasse por um longo tempo.