O Monge

São homens apartados de nós por paisagens distantes onde neva.

São servos nos dias dos campos cultivados.

São devotos amedrontados nas noites da busca compulsiva pela luz.

São os filhos da certeza de que o destino é traçado, mas o futuro é incerto.

Mil anos nos separam.

A oração e o medo os unem, e nós a eles.

A fé os resigna, assim como a nós.

O próprio Deus os consola.

E a nós também.

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Se a minha apressada tradução não estiver errada, o quadro sinóptico do comentário era mais ou menos esse aí.

Mello me disse que eu não teria mais um puto para as despesas, que estava cagando para as minhas conclusões literárias de palavras bonitas daquele livreto, que era melhor eu mandar nem que fosse uma merda de fotografia pelo Whatsapp.

Um scholar como ele não costuma usar esses termos. Por isso, fiz tudo o que ele mandou e me enfiei no primeiro trem para Lisboa ainda pensando que porra era aquela em que estava me metendo.

Livrei-me da mala no compartimento de bagagens junto à porta daquele vagão da segunda classe em Coimbra-B. Fiquei com a maleta. Não sosseguei até me certificar do assento correto e me sentir seguro junto à janela salpicada pelos primeiros pingos após uma feliz interrupção de quatro horas da tempestade que castigava a cidade nos últimos três dias.

Hesitei o olhar para o corre-corre das plataformas. A chuva de vento lateral apertava. O trem se pôs em movimento com um suave sacolejo.

Uma discreta curva à direita e já se avista a várzea inundada do Mondego.

Mirei os dois focos de luz sobre uma área em meu colo, perfazendo uma ribalta. Agora estamos sobre a ponte; as águas correm furiosas a jusante.

A maleta repousava bem segura entre as minhas pernas. Sondei o ambiente e arrisquei retirar dela apenas o livro. Privilege du Roi. Francês século XVI, isso eu podia afirmar com certeza. Se havia algum ex-líbris comprometedor, foi arrancado antes de eu ter posto os olhos nele, o que era bom naquelas circunstâncias. Péssima foi a falta da página de rosto, que poderia ter me rendido uma autoria conhecida e pelo menos dois mil euros extras.

Sorte uma vez: está seco.

Perspectiva de mais vinte mil, não pelo livreto, mas pelo pergaminho que era a razão de ser daquela loucura.

Aquilo parecia ter tudo para dar certo.

Poderia pedir mais pelo transporte de uma iluminura da Idade das Trevas?

Idade das Trevas, teu rabo, Mello iria me esfregar na cara o envelope com a fração que me cabia do dinheiro dos investidores.

Contemplei o livro uma última vez e depois o devolvi à maleta. Apaguei a luz. Na pior das hipóteses, podia sorrir comigo mesmo.

Logo no começo do empreendimento, Mello tinha me perguntado do que se tratava. Eu disse que ainda não sabia de tudo, e que precisava de mais tempo, talvez mais dinheiro. Mais dinheiro nem pensar. Dê o fora daí o mais rápido possível.

Preciso terminar a tradução preliminar, uma semana. Nem fodendo, disse ele. Manda a fotografia. Já falei que ainda não está comigo. Quando? Uma semana. Puta que pariu e me desligou o telefone na cara.

Uma semana depois, quando enviei a foto, ele me mandou o dinheiro das passagens e insistiu para que eu comprasse também o assento vizinho ao meu. Comprou? Não. Preferi uma maleta nova. Mas você nunca me escuta e desligou o telefone na minha cara outra vez.

Sorte duas vezes: vou viajar sozinho, a menos que alguém se junte a mim em Alfarelos.

Em menos de três horas estarei em Lisboa. Mais onze horas e chegarei a São Paulo. Destrancarei minha vaga na USP. Vida nova.

Vou dizer o que sei, mas não para ele. Ainda não.

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Não era uma gesta.

Não era uma história de reis, altos clérigos ou nobres.

Era a história de uma iluminura e seu autor, apenas isso.

E a própria iluminura, é claro.

Onde?

Imagine que eram terras endurecidas pelo gelo dos tempos maus e de nuvens baixas com chuva fina dos tempos bons; onde os ventos sopravam por entre as rochas das montanhas, por entre arbustos e faias, porque os bosques de carvalho há muito se haviam ido como lenha, pontes e navios.

Imagine também as estradinhas serpenteando as encostas, onde os animais dos carros pisoteavam a lama, encalhavam ou escorregavam de volta ao sopé num esforço inútil de levar as coisas e as pessoas para um lugar incerto, porque a certeza vem dos pedágios e dos salteadores.

Ali era exatamente assim.

No Mare Nostrum, haviam florescido as civilizações do comércio, do pão e dos grãos, das oliveiras e das vinhas, tanto pelo clima e pelo terreno quanto pela ausência dos padres.

Ali, além dos passos alpinos e pirenaicos, seguindo ao norte, em outros tempos sob os godo e sua descendência, eram as caças, as criações, os porcos e os miúdos, os vales próximos de gente desconhecida.

A paisagem rochosa e os campos de vegetação rasteira eram permeados por alguns bosques de propriedade bem estabelecida onde ninguém, nem mesmo aqueles com as maiores necessidades, poderia entrar sem sofrer as devidas punições.

Ali era exatamente assim.

Foi ali que tudo aconteceu.

Quem?

Agora pense nas pessoas.

Algumas poucas viviam em pequenas vilas de casas miseráveis, a dividir seu espaço com os animais e as parcas colheitas, ao sopé de uma fortaleza de pedra, sob a proteção do senhorio.

A maioria morava no campo, em terras que não lhe pertencia. Essas terras lançavam amarras firmes ao homem e insistiam em lembrá-lo do fado inexorável de sua condição.

Nas cidades, eram as catedrais que se impunham altas e mais leves com sua arquitetura ogival e seus arcobotantes, com os nichos de relicários, o deambulatório e o batistério já solidamente acolhido em seu corpo.

Nesse tempo, que duraria muito, fazia-se presente a mão espiritual e secular da igreja.

Mas o que permeava tudo era o caráter efêmero da vida quando aos trinta anos sobrevinha a queda dos dentes e aos quarenta a morte.

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Contra todas essas leis, tão naturais quanto de Deus, o monge contava com quase oitenta anos.

É a época em que esta história chega ao seu desfecho.

Chamavam-no de Abelardo.

Tinha vivido desde a infância naquela abadia. Não em qualquer abadia apenas com votos e laços de fidelidade e obediência hierárquica, mas na própria Cluny.

Nos anos de Yves de Vergy, o monge, na casa dos sessenta anos, estava decidido. Abandonaria a biblioteca, o herbário, o claustro e, com pesar, o scriptorium, lugar que lhe era o mais caro e onde havia exercido o seu talento como copista nas ultimas décadas.

Também deixaria a cozinha e o refeitório. Embora, há muito já não lhe dissessem nada, ao contrário dos demais confrades que caíam como moscas obesas frente às tentações pecaminosas da gula, esses lugares lhe haviam trazido anos de vivência nos doces e iguarias próprios de Cluny.

Chegara o momento de cruzar os portões para não retornar.

Sobre o lombo de um jumento, Abelardo desceu ao mundo dos mortais, por entre os miseráveis que lhe pediam por favores e restos de comida, mas não permaneceu ali nas terras próximas. Seguiu para o norte em direção aos campos de Chalon, onde Aécio havia sido o último baluarte da civilização ocidental contra as hordas do Flagelo de Deus.

Através de estradas tortuosas e lamacentas, cruzou as águas do Saône em direção ao leste e chegou ao destino que há muito projetava para os seus dias de velhice: Besançon.

Trazia consigo víveres para algumas semana; carne de porco salgada e sebo, biscoitos, grãos duros e frutas secas; carregava um crucifixo de madeira simples e uma iluminura inacabada de São Francisco. Terminá-la seria um ato de contrição no devido momento.

A iluminura custara seis meses a Abelardo e retratava o santo com a mão direita elevada em posição que representa quem fala, nesse caso, o santo aos pássaros.

Fora uma concessão benevolente do abade.

Benevolente por duas razões. A primeira, porque a jornada, embora árdua na sua realização, havia sido ainda mais árdua no planejamento. Multiplique isso por cem, quando da conversa última do monge com o abade.

Por várias vezes a excomunhão oscilou sobre a cabeça do monge e viria célere de Roma, apenas assim quisesse o abade, não porque isso fosse comum nesses casos, mas porque era muito fácil a intercessão do Papa, a cuja pessoa Cluny devia obediência, sem submeter-se à mediação da hierarquia eclesiástica.

Também contava muito a utilíssima função que o monge ali havia exercido. Nesses anos de declínio, Cluny não se lhe permitiria tal luxo.

A segunda referia-se justamente àquela iluminura, pois que aquele santo da pobreza mendicante e da nova piedade, aos olhos de Cluny, roçava os limites da heresia.

Mas o velho monge, embora alquebrado pela idade e pelos poucos anos que ainda lhe sobravam, enfrentou as dificuldades do alto de sua estatura moral com firme resignação e obediência, atitudes muito desejosas em um monge que preze ter a sua história bem contada.

Salvou-lhe a alma a sua grande contribuição às obras de Deus naquele scriptorium.

Abelardo finalmente poderia ir.

A viagem de mais de dois meses quase o matou.

O clima rude, o enfrentou com orações e roupas quentes; os salteadores, com o hábito da ordem, pois que Cluny, embora em dias de decadência, ainda impunha respeito. Negava, até o último instante, o uso desse artifício. Nem mesmo sabia dizer por que havia trazido consigo o hábito, posto que estivesse à procura de romper com aquela tradição monástica opulenta e decadente.

Os tempos de Odilo e Hugo se haviam ido para sempre.

Foram-se, também e aos pouco, os votos de disciplina e pobreza. Dos outros, não os dele.

Cluny transformara-se numa instituição poderosa, mas que sujara as mãos nas imundícies da riqueza e do século.

O monge estava mais de acordo com os preceitos da Grande Cartuxa que lhe permitiria uma vida asceta e solitária entre os frades.

Não podendo simplesmente trocar um hábito por outro, escolheu a vida eremita bem ao gosto dos primeiros monges do Oriente, do Egito e de Bizâncio.

Cluny ficara para trás.

Dali para frente, as cavernas seriam o seu novo e definitivo lar.

Escolheu uma em particular, de teto baixo, mas seca e protegida dos ventos que vinham do oeste.

Quase um ano se passou para que as melhorias tornassem aquele canto habitável, mesmo para os padrões de um monge.

Fez uso de suas habilidades desenvolvidas pouco a pouco em Cluny.

Não fora jogado à vida eremita sem preparo, apenas com a força da piedade e da fé que moveram outros mártires ascetas em outras épocas.

Longe disso.

Como berço do conhecimento daqueles tempos, as abadias em geral não só preparavam as almas dos monges, mas também seus corpos e intelectos para que expiassem os pecados do mundo e glorificassem o Senhor pelo maior tempo possível.

Na face da Terra, seres mais capazes não havia.

Com as necessidades bem humanas que o ambiente lhe impunha, talvez o monge estivesse decidido a negar Cluny, mas não os seus conhecimentos.

O resultado disso é que bem foram consumidas três semanas para a pequena mesa e a cadeira, outras tantas para a porta, nenhuma para a cama que a natureza já esculpira nas saliências das pedras ao fundo da caverna.

As pedras também lhe forneceram os instrumentos para comer e beber.

O velho hábito deu-lhe uma camisa grossa e a novidade das calças.

Novidade era porque não se lembrava de quando primeiro as tinha usado. Decerto, antes dos doze anos, idade em que fora deixado aos cuidados dos monges de Cluny.

Mas quando as vestiu, lembrou-se bem.

Foi atirado de volta aos anos de meninice, da labuta nos campos de trigo do senhorio, junto do pai e dos irmãos pequenos.

A lida pesada, a carregar os feixes para a debulha das espigas, a palha cortante, as viagens intermináveis ao moinho com os passinhos curtos de garoto, quatrocentos para ir e outros tantos para voltar, todos penosamente contados; a separação do sacrifício da honra servil, de quase a metade de tudo o que produziam; absolutamente tudo se materializou como por encanto.

Lembrou-se bem.

Ali fora lançado pelas calças novas.

O pai, olhar de inquisidor, mais que amiúde à época, atentava a tudo e a todos, porque temia os castigos que por diversas vezes o senhorio impunha em retaliação às más conferências.

E os castigos passavam de geração para geração.

Apanhava o pai, que batia no filho e esse no irmão mais novo numa seqüência de lições que deveriam ser bem aprendidas.

O pai resignava-se. Com trinta e poucos anos, não tinha mais o vigor da juventude, os desejos de contestação das injustiças, da fome e das privações. Seus meninos haviam crescido. Dos dez, quatro vingaram graças à boa vontade de Deus.

Ademais, não existe aprendizado melhor que os vergões dos açoites, tão mais doloridos quanto mais injustos.

Tudo isso veio à cabeça do velho monge assim que amarrou as calças. Veio-lhe também o episódio das feridas nas pernas, das geladuras, justamente por causa das calças muito curtas.

Contando com onze anos, usava as mesmas calças desde os sete. As pernas desprotegidas foram tomadas por úlceras dolorosas. Permaneceu de cama, sem andar, por dois meses.

Isso foi um pouco antes de Cluny.

Teria sido levado pelo pai à abadia devido a um par de calças por demais curtas?

Não podia dizer.

Mas se lembrava da viagem desde a Troyes do Templo, trazido pelo pai em lombo de dois rocins emprestados, sem nome, sem palavras e sem satisfações.

Contudo, doía-lhe mais a não lembrança da mãe. Nem sim, nem não. Uma apatia, maior do que em outras ocasiões, abateu-se sobre ela. Seu olhar perdido em algum ponto que fazia uma interseção às visões da despedida, mas não se encontrava ali, nem acima, nem abaixo, talvez em outro mundo que fosse melhor.

O menino, enfim, deixaria para sempre a miséria dos laboratores, porque naquele tempo eram mais suaves os caminhos da oração e das penitências.

Faria parte do exército de Deus, encarregado da salvação das almas, das orações, dos libri vitae.

Sim, com fé em Deus, Cluny seria melhor.

Tudo isso, o monge podia apenas conjecturar, e mesmo assim, passados os anos de juventude e da vida adulta, quando até então via aquela atitude como o desprezo e a negação do amor de mãe.

Teria preferido um “vá com Deus” ou até um “enfim, uma boca a menos”, mas aquela indiferença prostrada, de vencida, marcara a ferro sua alma com o signo da incompreensão.

Desse modo, a busca pelo amor perdido na infância facilitou-lhe as manifestações mais ardentes de piedade e ânsia pelo amor de Deus, o amor que lhe substituiria a mãe e que, de todo modo, seria o único a que poderia ter acesso na nova vida monástica.

Com essa pureza de princípios e manifestações de fé incondicional, pouco a pouco o jovem monge tornou-se apreciado pelos irmãos e pelos sucessivos abades.

Sim, sucessivos, pois na sua longeva existência dentro da abadia, o monge teve a oportunidade de ser orientado por não menos do que sete deles, porém nenhum que tenha chegado aos pés dos Santos Abades de Cluny, de cento e cinquenta ou duzentos anos antes.

Do que deixara para trás, arrependia-se de não ter completado a orientação do jovem Raimundo que viera das terras onde se falava a langue d’oc e era especialmente talentoso na arte da pintura e da cópia.

Na verdade, completara, mas com um horrendo desfecho.

Raimundo nascera em Montauban. Era de família nobre e fora recomendado por uma generosa doação de terras ancestrais a Cluny. Naquelas paisagens, estabeleceu-se um priorado, um dos mais de trezentos estabelecimentos ligados à abadia mãe.

Desde o início, percebeu-se que Raimundo fora trazido a contragosto.

Nos serviços das matinas, dormia durante as orações. Nas vésperas, eram os afazeres de até então que lhe consumiam as energias e assim dormia mais um pouco. Não era incomum surpreendê-lo entre lamúrias e pragas.

Também não tinha as qualidades para o herbário ou a cozinha e muito menos para as funções no açougue, mesmo que o serviço pesado fosse feito pelos leigos da vila. Não possuía estômago para os abates e descarnes.

A tolerância do abade era imensa e na medida exata das doações das terras de Montauban. Porém, mesmo aquelas eram finitas, como também o haveria de ser a paciência do abade.

Raimundo tratava-se de um caso perdido, um imprestável.

Certa manhã, após os ofícios matinais, Abelardo estava curvado sobre uma das mesas do scriptorium às voltas com um trabalho minucioso sobre a cópia de um pergaminho latino. Era início de capítulo. Estava no final da página e havia deixado um espaço para a letra capitular, que tinha resolvido ser magnífica, com diversas cores, mas sobressaindo o vermelho. Até já havia separado a argila e a púrpura.

Raimundo adentrou a sala, em companhia do abade e do bibliotecário.

Em silêncio, postou-se ao lado do monge observando o seu trabalho.

Por um momento, que não durou mais do que uma olhadela inquiridora, o monge interrompeu o seu ofício.

Naquele instante, soube que o problema da abadia agora era seu.

Raimundo, percebendo a situação, sorriu amigavelmente, pediu licença e sentou-se à mesa ao lado do monge. Pegou a pena, apontou para o texto inacabado e fez menção de que queria continuar o trabalho. O monge não objetou, mas permaneceu próximo o suficiente para uma pronta interrupção, caso o resultado não lhe agradasse.

Como um milagre, já que naquele local outra coisa não podia ser, Raimundo rascunhou a letra S com o carvão e a pintou tão rapidamente com a pena que o monge não teria conseguido interrompê-lo, mesmo se quisesse. Continuou com as tintas. A forma estranha da letra somente durou o tempo da secagem e a palavra Sanctum, como uma maravilha ofuscante para as outras dezenas que lhe faziam companhia, sobressaiu-se parecendo ter sido pronunciada pelos anjos.

Lividus e ruber.

O abade ficou assombrado. Benzeu-se e também o ornamento. Agradecia a Deus pela iluminação daquela alma em princípio inútil e, por via das dúvidas, protegia-se do que mais parecia ser uma peça de bruxaria.

Por sua vez, o monge apossou-se da página para melhor examiná-la. Deixou escapar um quase imperceptível sorriso de satisfação.

Raimundo morreria exatamente três anos depois, devastado por alucinações, tremores e convulsões.

Legou maravilhas artísticas em incrível profusão para a sua tenra idade, para a glória de Deus e de Cluny. Parecia à espera da morte precoce.

O velho monge, que após uma curta convivência de não mais do que algumas semanas já muito o amava, martirizava-se em culpas imaginárias.

Julgava não tê-lo alertado o suficiente para os cuidados contra o envenenamento pelos maus usos das tintas e dos pincéis.

Justamente esse pretenso descuido na formação de seu pupilo levou o monge aos intermináveis anos de desilusão e dúvida. Acreditava piamente que o havia matado. Saiu amadurecido pelo sofrimento e pela certeza de que Cluny já não lhe pertencia, nem ao seu coração, nem à sua mente.

Os anos de júbilo ficaram para trás.

De Raimundo, além das lembranças, restara a bela iluminura de São Francisco, na verdade produzida pelo pupilo e seu velho mestre.

Todas essas divagações foram trazidas pelo hábito transformado dos tempos de Cluny. Tão rápida fora a transformação do hábito quanto o refluxo desses pensamentos.

Deveria voltar aos afazeres mundanos na caverna.

Naquela bela manhã de primavera, o monge levantou-se ainda no escuro, com a caverna iluminada apenas pelo pequeno fogareiro que ficava numa parede lateral próxima à porta. As paredes daquele lado exibiam uma fuligem gordurosa, pois o fogareiro jamais havia sido deslocado daquela posição em todos aqueles anos. Lavou o rosto com a água armazenada de véspera na bacia.

Antes do desjejum, ajoelhou-se no montículo de palha e iniciou os cânticos e as orações da laudes, mas naquele dia percebeu algo diferente nessas tarefas triviais a que estava tão acostumado.

Chegou a perder ora o ritmo, ora a entonação, e mesmo as palavras pareciam lhe fugir ou soavam tão embaralhadas que o obrigavam a reiniciar bem do começo.

Fato raro, essas idas e vindas consumiram-lhe quase uma hora completa, de modo que ao término desse ofício, os raios do sol haviam surgido com todo o seu esplendor. Percebeu que já não estava na costumeira laudes, mas bem adiantado na primeira.

Nesse momento, uma vertigem intensa quase o derrubou. Recobrou-se muito rapidamente. Achou que era fraqueza e tratou de comer um pedaço de pão com um pouco de queijo velho que lhe fora ofertado pelos peregrinos ainda ao final do outono daquele ano.

Uma pequena digressão.

A visita dos peregrinos quase mereceria um capítulo a parte.

O monge os recebia de bom grado, mas não chegava a entabular um colóquio sequer. Limitava-se a ouvir os pedidos de piedade que deveria encaminhar a Deus e oferecia o exemplo de suas ações, de sua vida pia e santa.

Ao final do encontro, os salmos repetidos à exaustão preenchiam as almas daqueles pecadores que, então, se sentiam recompensados. E o velho monge recolhia as oferendas sempre com a dúvida que por demais o torturava.

“Meu Deus, não me bastaria menos dessas doações?”

Na terceira, deixou a gruta e pôs-se a cuidar do pomar que custara a formar nos últimos anos.

Interrompeu o trabalho na sexta para a refeição e continuou com as coisas de coser e outras manufaturas e reparos, ferramentas e utensílios. Após a nona, pôs-se a uma caminhada de meditações até a ceia vespertina. Nas completas, repetiu os salmos e cânticos.

Dessa vez, sentiu-se particularmente bem.

Recolheu-se às sete.

Mais um dia.

Qual deles?

Não se podia dizer ao certo.

Tantos desses se passaram exatamente da mesma forma, as mesmas horas, as orações e as tarefas. Os anos transcorreram, com os seus dias curtos e longos, com o tempo das frutas, as doações dos peregrinos e a imensa dádiva de Deus.

Mas viera a vertigem para não mais abandonar o velho monge.

Esse detalhe funcionou como um calendário. Lembrava-se de um episódio que ocorrera no ano em que as horas tornaram-se mais lentas, pelos reinícios forçados, pelas palavras pouco compreensíveis.

Agora contava o tempo através da piora dos sintomas. Tal fato acontecera após o dia em que batera a cabeça na cama de pedra. Ou naquele ano em que passara a andar com o auxílio do cajado.

E foi assim que, no inverno em que a laudes chegara a completar duas horas inteiras, o monge estava à mesa, ao fundo da caverna iluminada apenas por um toco de vela, quando foi retirado de seus pensamentos por dois suaves toques em suas costas.

Voltou-se surpreso para o homem magro e barbudo que se encontrava bem no meio da caverna.

O monge o observava mexer os lábios, mas não ouvia sua voz.

Diante dessa visão, teve a certeza de que estava diante de Cristo.

Pôs-se de joelhos em júbilo e começou a rezar o Pater. Interrompeu o Credo ao perceber a presença do segundo homem de olhar maligno que gesticulava e ralhava, porém sem emitir sons.

O zumbido na mente tornou-se insuportável fazendo com que o velho revirasse a cabeça em busca do inseto imaginário.

O segundo homem apontava para as pequenas porções de grãos e carne salgada, também para a lã e as compotas de frutas.

O primeiro começou a revirar os objetos que custara meses de trabalho árduo e orações de gratidão e louvor do velho monge. Colocou as tintas, os pincéis e as velas dentro de sacos de couro.

Quando chegaram ao esplendor da iluminura de São Francisco, ainda imponente com o fundo dourado das velhas riquezas de Cluny, os ladrões urraram como animais.

O velho monge estremeceu. Permaneceu inerte, sem saber o que fazer.

Achou por bem fazer das mãos uma concha para o ouvido, por pior que fosse o que tivesse que ouvir.

Nada.

Olhou para os homens prestes a juntar a iluminura às suas próprias veste. Juntou as mãos frente ao próprio rosto iluminado de paz, num convite ao conforto e ao arrependimento. Vamos rezar. Jamais se sentira tão pleno em seu ofício. Naquele e em qualquer tempo, haveria sempre colheita farta para quem semeasse a salvação.

De joelhos, chegou a convidá-los a sentar, mas recebeu um golpe de porrete no braço como resposta.

Como havia sido boa a vida!

A dor física que arrebentou o membro lancinou profunda no pescoço e mesmo no cérebro, o fez perder o senso da realidade e liberar os esfíncteres, pôs o monge como um feto, na sua dor e vergonha submissa que jamais havia enfrentado, nem nas posses senhoriais, nem em Cluny.

Antes da queda, ainda recebeu dois outros golpes na cabeça que passou a esguichar sangue.

A dor deu lugar à angústia de já não poder exprimir o perdão e a piedade para com aqueles seres demoníacos, pois que não se pode exprimir nada de bom com a boca ensanguentada sem os dentes e o olhar desfigurado pelas fraturas do rosto e a confusão da alma.

Nos poucos segundos de consciência, por entre risos de escárnio dos covardes, o monge achou por bem agradecer a Deus pela vida longa.

Também pediu pela alma de seus pequenos irmãos que não vingaram, para que deixassem o limbo em direção ao paraíso.

Lembrou-se da mãe e também pediu por ela.

Por fim, teve as lembranças do filho que a vida e a igreja lhe haviam negado, porém que lhe eram mais vívidas do que as pancadas desferidas sem misericórdia.

Pois não é pai aquele que orienta e educa?

Assim, encontrou conforto nas reminiscências de Raimundo.

O último golpe esmagou a cabeça e finalmente lhe trouxe a paz que tanto havia procurado.

Ao abrir os olhos que nada viam, o velho monge procurou com os ouvidos que nada ouviam as causas daquele gozo interior que o inundava.

Decerto porque estava vivo.

O abade, com a imensa sabedoria de todos os abades, interrompeu os salmos vespertinos e pronunciou solene do alto do púlpito em direção às cadeiras:

At ipse dixit illi: “Fili, tu semper mecum es, et omnia mea tua sunt; epulari autem et gaudere oportebat, quia frater tuus hic mortuus erat et revixit, perierat et inventus est *.

Lágrimas verteram dos olhos miúdos e o choro de soluços espasmódicos brotou da boca torta e inexpressiva do velho monge.

Mirava, sem ver, os irmãos do coro.

Com o olhar de feições débeis, tateava pela ajuda dos noviços, seja para se levantar, seja para elevar as mãos aos céus.

O fio de voz balbuciante acompanhava as vibrações oriundas do coro.

Graças ao providencial socorro dos bons peregrinos e aos milagres de São Francisco, por vias tortas, Cluny seria o seu último abrigo.

Estavam completas as penitências.

Não eram os sentidos meras fontes de pecaminosas sensações?

Pois estava puro e quite com Deus.

Em verdade, no que tangia às percepções, pouco restava no que se fiar.

As trombetas anunciariam a sua ascensão como bem havia nascido.

Mas não para logo, pois viveria mais dois abades, até os cento e três anos.

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Já era noite quando o trem chegou à Estação do Oriente.

Estou a cinco minutos de carro do aeroporto. Meu voo para São Paulo sai às onze e meia. Ainda tenho quatro horas.

Saindo do vagão, ainda admirando a arquitetura coqueiral da estação, vejo dois homens sentados num banco. Pareciam pai e filho. O velho retrai as calças e coça a perna. Traja meias elásticas. O jovem não tira os olhos de mim. Ambos se levantam como se tivessem combinado e se aproximam.

Eu hesito, mas acabo por colocar a mala no chão. Finjo que faço uma ligação com o celular.

Na outra mão, a maleta firme com um casaco leve sobreposto sobre ela.

Os homens me abordam.

Para onde vou, pergunta o jovem com um sotaque francês do sul, e eu lhe peço um minuto, como se interrompesse a conversa telefônica.

O velho me toma o celular educadamente e o fecha. Depois me devolve. Parece um esgar de sofrimento físico, mas é uma salva de tiques que se deflagra na face do jovem e ele esfrega os braços de frio.

Eu instintivamente lhe ofereço o meu casaco.

O velho, num francês perfeito, me diz que, por essa atitude, eu não seria preso. Devolve o meu casaco e, suavemente, apanha a maleta de minha mão. Pede perdão. Diz que, mesmo em outra língua, ele sabe que eu o compreendo.

Aquieta-te, meu filho, diz o velho ao jovem, porque a divina providência nos trouxe até aqui.

O jovem anui olhando para a maleta.

Confia, diz o velho, pois ela está aqui, e ergue a maleta em triunfo.

Cada um deles me põe no bolso o cartão de visitas.

Dieu vous bénisse, recitam os dois.

Seguem o caminho por entre a confusão de passageiros e bagagens.

Abélard de Troyes lê-se num cartão.

Raymond de Montauban lê-se no outro.

Interpol em ambos.

Mello não vai gostar das notícias.

* “Explicou-lhe o pai: ‘Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; convinha, porém, fazermos festa, pois que este teu irmão estava morto e reviveu, tinha-se perdido e foi achado’ ”.

Lucas 15, 31-32 (Parábola do filho pródigo).

Juiz Holden
Enviado por Juiz Holden em 18/02/2017
Reeditado em 20/08/2019
Código do texto: T5916568
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