Morrer sem advérbio*

Antes, bem antes de saber da visita concedida, bem antes do visto, se receberia o visto — (tudo é subtraído da sociedade, cada saída da prisão, a cela, as barras de ferro e as paredes de tijolos) — na solidão privativa com pia, um vaso, sol aos domingos, escuridão, tarde, muito tarde muito cedo, tanto faz hora e vez.

Pétro deitado numa imagem deitada descansa. Do rosto veio-lhe na cabeça o rosto, ela o fez lembrar do mundo, o redondo do rosto nos olhos redondos na íris redonda do rosto — naquele cubículo esferas vieram trazer-lhe o futebol.

O sol o visto o mundo o jogo os vinte anos. Existem os anos restantes, os vividos e os abandonados, são alguns abandonáveis, existem anos fictícios, anos verdes e anos amarelos, anos de vivência e anos de trabalhos, existem anos olvidados, outros são eleitos, nas memórias acontecem eleições diretas.

O domingo trouxe o futuro de uma novidade. Também trouxe o tempo, o presente vivido e um futuro de presente. Pela segunda vez na semana veria o céu de pessoas desconhecidas, veria a tarde do ato, veria as esferas dela, veria a cama cabelos e os lábios.

O carro partiu logo depois do término do bandejão. De mãos algemadas, o policial sisudo, severo, firme, asfixiado de autoridade. A sirene ligada, ora ouvia uma buzina, ora a luz que vinha das grades do camburão faltava, ora faltava paciência, ora era a saudade de andar na rua que o visitava.

O coração se lembrou de Flauca, ela o fez lembrar da pena de dez anos, não chovia nesta quinta-feira, fazia calor, de barba feita, sua melhor roupa — pijama azul enumerado nas costas, suava pelas têmporas, a fronte inclinada para o piso do carro, as mãos no meio das pernas, o policial não desgrudava os olhos de seu rosto.

As nuvens eram muitas, mais que muitas chuvas, todo oceano estava suspenso, a cidade enuviada, a abóbada celeste em verdade ausente, em verdade a aparência ausente, a aparência ausente e o céu no mesmo lugar do sempre.

O policial lhe ofereceu um cigarro, com as mãos quase em reza aceitou. Adocicada boca, o mentol e a fumaça, o pulmão e o paladar — câncer perfumado. O desnecessário no vício, o prazer do movimento, o que move o automóvel, o que move os pulmões, o ar complexo pelo corpo, o conteúdo engarrafado.

O farol vermelho desacelera o carro, o farol verde e a rebelião da inércia, no encontro, a perspectiva do futuro, o amor pressentia a proximidade do conflito, o amor que se lança no abscôndito, pela fresta de qualquer liberdade, o amor que navega o múltiplo efêmero atraca numa unidade eterna. O amor condena ao amor, não é necessário cadeira elétrica, arma branca ou revólver, não é necessário objeto, não se faz necessário capataz ou carrasco, o fim do amor finda ainda de amor.

A porta range por abrir, sorriu por abrir, abre por vir, por dois homens, desce o policial.

O carro na vaga de ambulância, outros tantos carros parados, outros tantos em fluxo, pessoas em fluxo, pernas e batatas em fluxo, langeri, saias, vestidos e calças, os precavidos de guarda-chuva.

Pelas escadas subiram como enamorados. Na portaria se identificaram, de elevador até o oitavo andar. Como de costume, antes da porta ser aberta tirou a algema dele.

Tocou a maçaneta, o mundo angulou, a porta riu, ela estava acordada, ele não trazia nada nas mãos como das outras vezes. Olhou-a temendo — temia o que lhe iria acontecer, ela sorriu, pela primeira vez ela sorriu.

“Você ainda deseja?” “Pela vertical desceu o pescoço.” “Não quer esperar? Você tem certeza?” “Pela vertical desceu o pescoço e um sorriso.” Tirou da genitália um papel, uma seringa, um minúsculo frasco, uma canetinha. “Se descobrirem, tenho algo que possa me salvar!” Sorria, o olhava com admiração.

Todo perdão dos seus mundos, se sentia amada. Ele despejou a gota de tinta preta no indicador direito, antes de carimbar o papel, antes de soprar, ela leu, o consentimento, o perdão, o sorriso dela, lembrou-se do amor, da enamorada, a digital no papel, sopro, preparou em seguida a seringa.

“A certeza do mundo está em seu sorriso, o amor do mundo está contigo?” Na vertical correu sim, correu o riso e a vida. Correu os dentes da frente, a alegria úmida, o sorriso, o perdão gênero humano, a liberdade pela veia, o sangue penetra na seringa, o sangue recebe visita, a seringa na descarga, o dedo digital limpo em roupa de detento, um beijo, um beijo na boca do perdão.

Na boca está todo o precipício, precipitar a boca, precipitar o beijo, o precipício é paraíso. Os lábios de ambos ficaram molhados, ela sorria, umedecia, mirava-o com o amor de toda a vida, a porta abriu, algema elevador corredor escada rua — chovia na esfera.

Rangeu por abrir, triste por fechar, o camburão, o rosto molhado, pediu-lhe um cigarro, a mão ocupou o pulmão, percorreu feliz até a penitenciária do coração. De volta a cela, de vez o mundo o abandonava. Não sabia o mundo, desta vez Pétro não estava mais ou menos sozinho.

Chegou por volta de umas oito, um grande pacote nos braços, o rosto, aquele braço, aquele beijo, aquela voz, os ombros, no colo se sentia segura grande e forte, se sentia rainha, sua mãe o convidou para festejar o bolo, ele a colocou no chão, Balba então lhe beijou, Ébora foi abrir o presente.

Trocou algumas palavras com Beatriz, as duas filhas em seu entorno, uma foto, uma foto dele de terno, a face corada, a gravata colorida. “Preciso ir minhas queridas.” “Ah! Não! Agora não pai!” “Feliz aniversário minha princesa!” “É só ela que é princesa?” Balba fez biquinho. “Claro que não sua boba.” “Vem dar um abraço no papai.”

Dois passinhos, as mãos, um abraço apertadão, um beijo estalado.

“Eu também sou princesa não é papai!” “Você ainda tem dúvida!” “Fofa, bonita assim, só princesa!” . Balba dançava pela casa com o teclado à mostra, sorria a voz meiga, o vestido rosa estampado de patinhos.

— Preciso ir Beatriz.

Ébora brincava na sala com o brinquedo. “Olha mamãe o que eu ganhei!” “Que bonito filha. Você quer uma xícara de chá?” “Não Beatriz, eu tenho que ir, eu tenho um jantar de negócio” “Quem vai me dar um abraço?”

As duas correram em direção dele. Colisão de mãos e beijos, abraços e beijos, alegrias e beijos, vontades e beijos.

Saiu pela porta enquanto elas ainda acenavam coloridamente. Lá foi Beatriz na cozinha tomar chá. Zula tinha ido visitar sua irmã doente, não viria dormir em casa.

Os médicos não puderam recorrer a instâncias superiores. A enfermeira entrou no quarto, depois dele haver saído. Apelou para o entendimento do médico que requisitou o diretor do hospital. “Como ela morreu?” “O quadro dela não era estável?” “A família já foi avisada?” “Não doutor, eu a encontrei morta meia-hora atrás.”

Dr. Assis mostrou os relatórios, operada há uma semana atrás — não tinha infecção — o pós-operatório era bom — sem rejeição — iria ganhar alta consequentemente.

— Madalena, pode deixar que eu mesmo vou avisar a família.

Cobriram-na com lençol, os lábios iniciando sua rubridez, a túnica branca, de calcinha, as mãos espalmadas por sobre a cama.

Cobriram o passado feminino, o quarto com um corpo morto, um corpo morto no quarto é um corpo no quarto. O diretor vai para o gabinete, a enfermeira prossegue o tour, o médico e a mão do médico fecham a porta, os olhos ligeiramente assustados, Assis olhou o corredor em trânsito.

Na cela da prisão vive um moço novo. A primeira noite de um condenado feliz. Até que se findasse toda a quinta-feira, Pétro beijou Líliam muitas vezes, o sorriso dela, seus olhos e boca, todo perdão humano voltava no seu paladar. Muitas vezes à noite fugiu da prisão.

Leonora foi quem mais sentiu a morte da filha. Morreu Líliam ex-namorada de Jual. Morreu a irmã de Kika. Morreu a paciente do Dr. Assis, a mulher do quarto 803. Morreu a mais recente amiga de Pétro. Morreu sua filha.

Estava sentado no sofá e o telefone tocou, estava sentado no sofá lendo e ela atendeu o telefone. “Nossa filha Valdo, morreu.” . Subiu chorando, extraviada. Desde o acidente da filha, sua esposa não parecia mais Leonora.

Os lagos transbordaram, soltou o livro pelas coxas entardecidas, o céu de estrelas clareava de estrelas, pela janela da sala ouvindo a casa pela casa o choro dela. A noite levantava lentamente sua bandeira, o sol de filha lesado pelo acidente, extirpado... para os olhos que visavam a janela... Valdo tomou coragem... encontrar a esposa no quarto era ir à guerra.

O avião pelo alto do céu, nas ruas os algozes carros eram subtraídos pela beleza dos dois, Jual e Diego, duas vidas, boas novas, era bem-vinda a companhia também do avião.

Despediu dela já pelas quatro da madrugada. O táxi a deixou em casa, quando Bela dormia... quando Marila dormia mesmo com vontade de fazer xixi... de madrugada, pela rua, caminhando, Jual estava indo de volta para casa.

Noite para os amigos, uma noite para os amantes, mil e uma noites de infortúnio para Líliam. Noites de infortúnio para a família, a noite de amor para Bela, todas as noites de felicidade para Marila, uma vida feliz para Ébora, uma feliz noite para Pétro.

Recebeu a notícia da morte dela. Despedido já estava, agora iria enterrá-la, cobrir a memória com alguma pedra. No dia seguinte, Jual não foi ao enterro, não saiu de casa, não conversou no telefone, nem foi à aula, não houve tempo de leitura, nem Maria ou Bela foram à sua casa, o sol não apareceu, tudo em breve passa, o dia apenas pisca um olho.

A autopsia revelou o acontecido, a vingança lembrada apesar dela estar morta.

Valdo na primeira vez em que o olhou, só tinha em mente agredir.

“Você acabou com a vida de minha filha seu moleque! Não ficou satisfeito em tê-la deixado tetraplégica!” “Você não tinha o direito de fazer o que fez.” Valdo arfava, seu olhos enlanguescidos de ódio o olhava o comia.

“Meu senhor, noites inteiras não dormi de remorso, por isso eu ia visitá-la, para que ela me concedesse o perdão, só ela poderia.

“Ela me pediu para matá-la, por isso ninguém vai me culpar, ela me absolveu, ela me pediu para absolvê-la daquele corpo imóvel.

“Sou culpado, culpado sim, por fazer o que fiz, avancei o sinal, mas meu senhor, matá-la, isso não é digno de culpa, ela me pediu, me pediu como credora, e eu! Devia a mim mesmo a chance de sobreviver.

“Você pode não acreditar em mim, você não acreditará, tem razões de sobra para não.”

Silêncio, lágrimas de algum sim, alguma dor, alguma esperança desavisada o surpreendia. Valdo olhou para o chão, olhou a cela...

— Você pode continuar!

Ele continuou com o chão.

Em pé, de cabeça ereta, de frente as grades. “Aquilo tinha de ser feito, ela não queria mais viver, ninguém faria isto, ela não teria coragem de pedir isto a vocês que a amavam viva.

“Ela não mais amava, ela não mais podia decidir por sua própria vida, eu era o responsável, você mesmo falou, por isso eu, só eu poderia ajudá-la!”

Pausa, descanso, a novidade de algum descanso, algo inerte sobrevivia.

“Ela me ajudou, me perdoou, sorriu para mim. Eu imagino como se sente, não a mataria se ela não me pedisse, não podia negar ajudá-la, eu era o devedor de sua desgraça, ainda sou, mas agora é diferente.

“... eu fiz por ela o que ninguém faria!”

Valdo o viu fechado, o viu cheio, o rosto o desespero a culpa ele viu, a culpa expiada, enquanto ele falava foi se lembrando da filha, de como ela se mantinha fria, inerte. “Sentia vergonha de si mesma, não queria ver, não poderia dizer que desejava morrer.”

As últimas imagens da filha feliz não lhe visitaram a memória neste dia, nem num próximo amanhã, poderiam desaparecer pelo resto de sua vida.

Pétro e Líliam, -os dois iguais em subcondições.

A digital valeu de nada. Confirmada a livre vontade, não movia, não falava, o país era católico e ele condenado por assassinato.

Toda família aplaudiu — Valdo por anemia, por sensibilidade, continuou acreditando, além dos dez anos da primeira sentença, ele pegou mais quinze de cadeia sem direito de redução de pena.

A enamorada Flauca chorou, a mãe chorou pelo filho a justiça feita. Recebeu o perdão, morreria na cela. Ainda perdão libertado enquanto cumprisse pena.

Ninguém familiar o compreendia, ninguém acreditou em Pétro, não acreditavam no que a morte realiza. Kika odiava Pétro, odiaria porque a perda é irracional, o desejo de vê-la morta era irracional, inadmissível, a perda metamorfoseia amor, se deixa levar enquanto afeto.

O arrependimento em exílio perpétuo, aquele beijo ninguém podia tirá-lo dos seus lábios.

Muitas vezes sonhava, se sonhava com ela, era certo acordar tranqüilo.

O amor tão instante tão eterno, como o eterno é eternamente efêmero, como era possível o matar ser amor.

A vida é segredo de quem vive, qualquer espécie de amor é humano, qualquer humano ama, qualquer amor é uma espécie de condenação, é uma espécie de expiação amar, tocar, sentir, sonhar. O amor é espaço, numa cela ou num corpo, o começo de toda evaporação humana.

Com a licença de aniversário nas mãos as crianças mais tarde dormiram. Álibi de toda excitação, os presentes, a visita do pai.

Acordou.

Na cama não havia mais ninguém. A casa silenciosa.

Espiou as filhas da porta do quarto, de volta a cama locomovida, de volta aos lençóis trançados a tarefa de dormir lhe parecia difícil.

Dois travesseiros, duas crianças, dois amores, dois dias, duas pernas, duas mãos, dois seios, fechou dois olhos, abriu estes dois pela manhã, suas filhas por muito tempo já estavam acordadas, vestidas, de banho tomado. As crianças crescendo enquanto os pais estão dormindo. Tão logo saiu do banheiro, as meninas vieram-lhe dar o dia.

Na cozinha preparando o café ligou o rádio como toda manhã Zula fazia. Leite para esquentar, queijo, pão, suco. Preparou as merendeiras das crianças, o material escolar, o transporte chegou no horário. O portão estalou. Olhando pela vidraça da cozinha acompanhou Ébora e Balba até o especial.

Líliam enterrada, Pétro acordou na prisão, Jual não foi na aula, nem Bela, um dia descontado do ordenado de Diego, uma tarde ainda de trabalho para Marila, um dia de céu azul pela cidade, por todas as ruas o sol, os carros sob o sol sem bronzeadores.

No começo da noite de sexta se encontraram num lugar comum dos três. Desceram do ônibus, Diego o último a sair. As noviças mais fulgurantes já se viam no céu, a lua emagrecia em altas nuvens. A dama da noite percebeu a presença deles, os jardins e as casas, as árvores dos passeios, a iluminação pública, não fazia frio nem mesmo calor.

Por toda aquela semana não trocaram palavras na condução. Não trocaram palavras na escola. Dudu continuou a sentar no fundo da sala, no recreio se evitavam se ver.

A cadeira da sala ainda lhe causava certo incômodo. Ainda sentia dor, continuava tomando o poderoso analgésico. As aulas estavam enfadonhas, por toda a semana ao tomar banho teve vergonha.

Por aqueles dias teve raiva da mão dele, amargura pelo sítio, por ter conhecido Dudu, uma amargura sobrevinha nos ombros pela barriga, uma amargura por ter seios por ser mulher por não ser mãe não se sentia gente.

Os dias sucediam, o frescor do amor e do encontro se dissipavam. Não o olhava mais como o já havia mirado, já não se olhava mais como já havia se olhado, não pensava, não chorava, não desejava, não se inquietava em vê-lo, não mais o via.

O leite fervido amornava por cima da pia, azedava por cima da pia, qualhava por cima da pia, atraía mosca, a panela encrostava.

O fim de ano se aproximava, o vestibular se aproximava, o científico finava, o novo ano aparecia pelo parapeito da janela.

Deitaram juntos algumas vezes mais, ao se tocarem as distâncias não foram cobertas, a tristeza deixou de ser lacunar, o amor deixou de ser trêmulo, as carícias, os músculos, o suor, uma saudade os permeava.

Sem se amarem, terminaram o científico sem se tocarem, houve nada que os aviltasse, houve choro sim, conseguiram no deserto nenhum oásis.

Extirpados saíram os dois e o amor do motel, extirpado o mês de novembro, os dois passaram de ano. No final de novembro se despediram, em dezembro não se viram, no ano seguinte, não sonharam em se ver.

O filho do amor olvidado, eternamente rememorado, o que era desejo de afeto, o natural, a paixão e a juventude conduzida as culpas, por tradições, por violações exteriores, Bela esqueceu dele, esqueceu as negligências, assumiu seus erros, encontrou de novo o amor, perdeu de novo o amor, conheceu Maria, encontrou Diego, descobriu Jual, mudou de casa, deixou a mãe, ainda pensava no avô, algumas vezes se lembrava de que poderia ter sido mãe.

Não passou no primeiro vestibular de comunicação, não fez jornalismo, arranjou um emprego, sua mãe se aposentou, Dudu ficou na carne, mudou de cidade, mudou de vida, virou empresário.

Se levantou, no instante que o réu se levantou, embora se levantasse no tribunal, a justiça o olhava pelas lentes dos muitos credos, os muitos cultos, ignomias sinceras pelos jurados, a verdade do oculto maior do que o homem e a história do homem já não é nunca o além da história oculta.

Se se atrela...

, mas ela se levantou com ele, seu sorriso, ela o acariciou, o protegeu das infâmias — pelas evidências humanas foi considerado culpado.

Pétro amou Líliam como queria Jual fazer, como o pai dela sentia fazer, sua namorada admirada, o juiz leu a fábula, a justiça farta taba ensangüentada.

A voz humana cansada, os homens — os benfazejos dormiriam, também os jurados dormiriam.

Ó mundo eunuco de liberdade!

Líliam estava morta,

Abençoado seja o amor.

Já era acaso movido de paixão, ocaso o amor, pelo mover dos pensamentos, encetou o homem a mover a vida no regresso infinito de busca que pulsa pra além de algo que não se nomeia que não se remove numa cadeira elétrica, que nem o céu e nem inferno soletraram tamanha palavra; se levantou, veio consigo todo o mundo.

Condenado, condenado sem direito de redução de pena, os familiares choravam, sua namorada infletia o engasgo do amor, a filha morta, ultrajada, envergonhada, agora destituído todo respeito.

Na imensa colina incolor feneciam os poderes da justiça vil, o riso azul era Líliam, o beijo aguardente da magia era deles, dos que amam na irrazão, no mundo da irrazão não cabe o eunuco.

Na última vez que se encontram no último dia letivo do ano, dia da história em múltipla-escolha, Dudu ficou na cantina esperando por Bela.

Cabelo amarrado, rabinho, o rosto corado, uma saia abaixo dos joelhos, o tornozelo nu, não usava batom de manhã, não usava qualquer tipo de sonho de manhã.

Desceu as escadas escutando o próprio coração, uma solidão a alcançava, (onde as paredes encostavam em seus ombros) despedindo, — colega aqui colega ali — conhecido aqui, conhecido acolá — não morria de amores pela escola.

Dudu sentado na cadeira, na mesa ela já fumava o primeiro cigarro do dia. Nos olhares o sabão neutro, corria pelas mãos carinhos ambíguos, a torneira ligada, a toalha, beijou-o no rosto serenamente, olhou-o sem movimentar músculos. “Adeus Dudu.” “Muita alegria pelos seus dias!”

Voltou a cabeça, sorriu, refletiu o sorriso que via, andou até ela, abriu a mão, tocou a mão aérea dela, beijou a mão docemente. “Adeus.” Bela ainda sorriu antes de ir, solfejando uma melodia virou ele de costas.

Desceu as escadas ainda ouvindo pelos tornozelos nus a melodia do seu primeiro amor. Descansou na cadeira antes de ir, o cigarro no chão, o circular apareceu, Dudu despediu de uma colega, ela sentou-se no lotação com o estojo na mão, a chuva alcançou a cidade, ao descer no ponto os pingos os cabelos os lábios, nas marquises, escondida da chuva, a cidade tomada por roçado, o meio-dia envelhecido.

Ao abrir a porta de casa, ensopada, pingando o queixo, os queixos da menina foram pela enxurrada. Ao abrir a porta, com dezoito anos completos, ao abrir a porta sua mãe era mãe, o quarto era seu quarto, a casa, a chuva não sossegou até a cidade colocar sua veste noturna.

O último móvel levado para o caminhão, suas filhas na casa de uma tia, era sábado, sozinha esperou os homens carregarem os últimos pacotes, ao olhar a casa no deserto pleno da construção, Beatriz se voltou à Maria, se voltou ao marido, lembrou-se da primeira noite naquela casa, da chuva que sobrepujava toda a cidade, a gravidez que por muito demorou para ele num piscar de olhos se fazia em sua barriga, e ela nasceu, depois foi Balba, depois dos nasceres, depois de alguns anos de uma maternidade rotineira veio o tédio.

Seis meses depois surge então o amor impróprio. Beatriz trancou a porta principal, entrou no carro com os olhos enraizados numa instinta saudade. Passou os olhos de Amal, viu os olhos de Maria, os mesmos que por única vez viu em sua casa. Um dia tomaram chá com biscoitos e com torradas, enternecidas pelo amor de serem mulheres.

A placa de venda a assustou na frente do jardim. Beatriz ligou o carro em voz alta, partiu embebecida.

Na rua, antes de entrar no camburão, Flauca beijou-o no hálito, volvendo à mesma penitenciária a vida de estar presa não perderia o costume. Teria ele alguns algarismos da eternidade para se lembrar de Líliam. Eles tocaram novamente a campainha, nenhum som sobrevivia na casa, um cigarro aceso, Diego sentado nas cadeiras da varanda, uma máquina de locomover na garagem plana. Entre conjecturas, o cigarro e o silêncio, entre o odor e a noite — expectativa. Ninguém vinha atender a porta, ela não vinha atender, a festa não vinha, as luzes das estrelas na noite de sexta trombavam com a porta de madeira. Olhou as balas no tambor, deixou-a em cima da cama, a tarde se degenerava lentamente. Saiu do banheiro, abriu o armário, o longo armário embutido, escolheu a roupa íntima, escolheu uma meia, calça, uma blusa branca, brincos. Voltaram a tocar a campainha. Mão feminina na porta, porta aberta, o rim sempre aberto, a medida absurda, a copa, a televisão, o banheiro, o chão molhado. Não se esquecendo de voltar ao quarto depois de ir à cozinha, depois de abrir a geladeira, depois de beber, não pensou nos termos, nem nos grandes nem nos pequenos, não pensou na dor, não pensou nos outros, deixou-se suavizar na ação suave e febril do corpo finalmente vestido. O corpo que se despede se encontra na pura novidade de ser algo que não se pode saber, porque se deixa para não saber, para não ver o que outros concerteza verão. Os estranhos verões, verão a vagina. Eles tocaram a campainha e o certo já era incerteiro porque encetava conclusões, insuficiências, o perdido concreto ensangüentado corpo, a amiga, Maria das fábulas, a beleza das trovas. Eles entraram na casa, Lília ainda permanecia viva, após a sua morte, Jual ainda estaria vivo, desperto, livre, adocicado artificialmente. Encostou o curto cano no ouvido, a música ligada, a tarde findava em noite quando ensopou-se de sangue. Inconsciente. Eles abriram a porta, chegaram a ver o que Beatriz viu, uma casa deserta. Amal desceu as escadas, a vida deles desceu ao térreo por queda livre. Sozinha no quarto, as crianças juntas no quarto dormindo, cama ao lado de cama, quarto ao lado de quarto. Ele deixou a casa, entraram eles pela copa da casa, pela copa da árvore entram os passarinhos, a bala entrou pelo ouvido, o instrumento no útero instalou seu poder. Dudu encostou seu corpo nu, deus encostou seu corpo nu, a fogueira dançou sobre o sangue escorrido no chão. A seringa feriu braço, o braço ferido, o sangue foi visitado por outras substâncias, a liberdade correu pelas veias, ele não conseguiu nem querer entrar, ela ficou um pouco tonta até poder ficar de pé, o amor ficou individado, o amor não pede moratória. Ela caiu no chão, o inconsciente foi ao chão, eles a viram, ela o beijou no silêncio feliz do sorriso, a justiça fabular petrificada estalou, o martelo soou. O réu mais réu se tornou, as mortas-mortas, a vida é o tanto sempre mais livre.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 10/02/2017
Reeditado em 14/01/2019
Código do texto: T5908043
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