Sob de Nascimento

Era desesperador, o sol e a manhã. Encontrou o espaço vazio e lavado. Não conseguiu sufocar a mágoa. O problema, a partir de então, seria escolher a quem ela pertenceria. Os nomes próprios e os nomes comuns confluíam para dentro da cabeça chata. Nascimento, faca, fome, pai, mãe, irmãos e irmãs, avôs, Cota. Uma escolha árdua, humana. Uma aceitação dolorosa, o ir das coisas, boas e más. Odiou todos que almoçaram-no, mas ele não se lembrava que Jacira, a rainha mais amada de todo o galinheiro havia sido abandonada à panela em cãibra fervente, sem a compaixão de nenhum sentimento.

Nascimento havia conquistado o coração dele por ser o único público que tolerava com gosto o timbre do sax raivoso, inescrupuloso, onde pelas manhãs ensaiava a peça que tocava também à tarde. Dia após dia no chiqueiro ao ar livre ele fabricava aquela música, uma quantidade interminável de rebeldia e melancolia ali se encontrava no principio da manhã e no fuzilar da tarde, antes que a noite se despisse em cataporas de estrelas, antes que a lua deflagrasse a guerra de luz contra os postes da fazenda. O chiqueiro empestado dos odores traseiros de Nascimento que sem decoro muitas vezes completava a música com a percussão do reto ou bucal. Assim mesmo, sentia na grade sentado, sax na boca, uma confortável clareza, a sensação que Nascimento lhe passava de confiança, de que sua música cada dia melhorava pouco a pouco confortava-o bastante. Nascimento sentava e muitas vezes pedia bis. Era mais cinzento na parte anterior do que na posterior, as pequenas patas como tripé toleravam uma tamanha barriga sempre crescendo mais do que qualquer outra parte do corpo, as unhas negras de sujeira, era desprovido de gestos finos, isto não significava indelicado, Nascimento tinha apenas inúmeras impossibilidades corporais. No entanto, Nascimento sabia esparramar-se no chão com elegância e sedução, sua cabeça era grande, orelhas pequenas, sobrancelhas sempre depiladas, o nariz possuía poderosos furos, dois imensos buracos que adentravam sentir os mais pérfidos cheiros quase sem se ansiar. A boca retraída para dentro, as cordas vocais eram longas dentro da cavidade estreita e profunda, assim o seu ros-rosnar era grave, mas muitas vezes sob ameaça alcançava certas notas agudas usando como recurso o falsete que mimetizava certas notas do sax de Miguel. O rabo espiralava ao vento, suas ancas possuíam curvas como pára-lamas de um fusca, a língua era curta e os olhos tão arredios quanto as jabuticabas que caem na véspera de uma chuva. No rosto o cinza descoloria num tom mais brando do que no resto do corpo. Nascimento possuía presença, isto ele possuía, ao se esparramar no chão, ao deitar-se com uma das orelhas servindo de travesseiro ele parecia um grande astro com pernas. Assim, ele ficava olhando as nuvens voando, os algodões brancos e rápidos que transpassavam em muito sua capacidade de contar, mas não se importava com este tipo de cálculo matemático, se atrevia a controlar as imagens que conviviam em sua cabeça e isso já era o bastante, o bastante que queria em repolho, em frutas, em carne, em legumes. Na época em que Dolores vivia ali com ele, na breve, mas saborosa convivência dos dois, havia ficado para ele recordações difíceis de se olvidar. Estes tempos vindouros imprimiram em sua retina vermelha sonoridades que sempre que precisasse de uma música para dormir, recorria a estas lembranças. Bem da verdade, muitas vezes outras lembranças associadas a essas lhe assaltavam o espírito, fazendo ficar ansioso em relação com o futuro. Dolores já estava velha quando ele foi trazido para ali crescer. Ela não possuía mais uma natureza grávida e assim como tal, era de se esperar, mesmo sendo uma leitoa charmosa, que o dia doente do seu desaparecimento chegasse. Este dia para Nascimento tornar-se-ia um divisor de águas causando em suas reflexões um aprofundamento mais áspero sobre a finalidade de sua vida. As perspectivas ficaram bem menos promissoras comparando com as que tinha antes. Sabia reconhecer para si mesmo que naquela funesta manhã Dolores havia sido levada, ainda se lembra o momento em que partiu de casa, ainda podia ouvi-la gritar escandalosamente, sem qualquer cerimônia, (coisa aliás que não era do feitio de Dolores, pois, pelo contrário, ela sempre permanecia singelamente silenciosa, não se queixava de nenhum dos males da vida), e que depois de ardidos gritos e um prolongado choro, viu silenciar o vento. A partir daquele silencio pavoroso não mais a viu. A casa ficou espaçosa, a comida ainda mais farta, mas a solidão elástica da noite aumentou, o frio ficou mais puro e intenso e a vida mais triste e bem mais viril. Depois que Dolores se foi o futuro lhe pareceu tão incerto quanto a permanência da lua no céu, a qualquer momento tudo poderia ficar escuro e antes do dia clarear e o sol tomar o seu lugar provisório não poderia saber se sua própria sombra continuaria ali no chão a lhe fazer companhia. Em suas aventuras para dentro de si mesmo só encontrava motivo para temer, só encontrava nas parcas memórias que tinha, e eram quase vagas, bem poucas, não existia solidez nenhuma, colorido algum, verdade seja dita, via tudo em preto e branco. Algum conforto existia nas memórias caso conseguisse se desfazer da lucidez viva daquele dia sem descanso, sem queda, sem repouso, sem explicação. Mas tudo isto, ou, isso tudo foi um pouco antes, isso foi um pouco antes de conhecer Miguel e o sax. Aquele jovem veio calefar a sua vida, as ondas sonoras possuíam um calor que investigava suas entranhas, dando a elas um aconchego esquecido, almejado, um calor que de direito todos deveriam conhecer muitos antes de sentir faminta as meritórias necessidades da vida. Miguel era pálido, baixinho, cabeça chata, tinha uma voz grave e doce, era silencioso e pouco falava, sustinha no corpo certa meiguice tímida, era por ser estranho, fechado, por ser dado a tarefas recusadas pelos outros que ele mantinha os olhos apagados e amarelos que não assustavam amor de ninguém. Miguel o visitava todos os dias, colocava a comida que o alimentava, tocava a música que o fazia sorrir, que o fazia deitar, e ele fazia tudo isso com gosto e sem medo. Pela manhã, sempre bem vestido, temia o frio como temia o sol, em dias de lua muito quente, levava um guarda sol para protegê-los. Nascimento a cada dia gostava mais daquela melodia, a cada dia achava-a cada vez mais travessa, aventureira, cada dia uma alegria crescia naquelas notas, e a manhã não era a mesma quando Miguel se ausentava, mas ele nunca havia se ausentado pela manhã e pela tarde dum mesmo dia. Num dos turnos Miguel sempre aparecia, pedia desculpa pela falta, justificava baixinho sua ausência e antes de tocar, isso ele nunca esquecia de dizer, “meu querido Nascimento”, eram as palavras mais amáveis que já havia ouvido um ser humano a lhe dirigir, palavras tão dóceis e ditas com tanta ternura. Assim os meses iam se passando, os dias frios eram aquecidos e os dias quentes resfriados. Nascimento o grande sedutor, nada esquálido e sempre bem humorado ia vivendo.

As emoções lhe traíam extraídas da vida cotidiana, as emoções que pilhavam-no repentinamente, quando menos esperava, acontecimentos corriqueiros muitas vezes o extenuava a ponto de mandá-lo para cama com água nos olhos. Miguel sabia se recolher para aquiecê-las e algumas vezes procurava se isolar com Nascimento, em pouco tempo na companhia dele, a presença dele devolvia a Miguel uma serenidade que não encontrava nem no silêncio amoroso da mãe, que apesar da virtude de amá-lo incondicionalmente ainda existia nela o vigor exacerbado da auto-estima, vigor este que incidia no tom do olhar uma comiseração tão afável e tão cheia de graça que o incomodava, não entendia muito bem qual era a magia que Nascimento doava para sua vida, mas reconhecia que ele era sim um senhor muito especial. Desde o primeiro encontro entre os dois algo de misterioso fundara-se entre eles, uma intimidade sub-reptícia, um dizer sem dizer, os quatro pulmões se entrecortavam pelo ar limpo da fazenda. No dia em que, pela primeira vez, Miguel fez soar o seu sax tudo realmente esmoreceu nos corações, um sadio sentimento de amor tornou-se vultuoso e dali em diante a relação dos dois se fazia imprescindível. A família de Miguel pouco valor revelava nesta relação, apenas colhia o benefício dela A tarefa de tratá-lo não existia mais, e assim, todos nulamente satisfeito sabiam que na ausência de Miguel existia dois benefícios simultâneos, o sax não incomodaria ninguém e Nascimento continuaria a viver para o interesse deles. O pai de Miguel não o ofendia pela vida que havia escolhido, mas também não o admirava, apenas tratava o filho como mais um objeto conquistado da fazenda, objeto este que desempenhava alguma tarefa que para ele não tinha nenhuma relevância de valor, Nascimento não era pensado por ninguém, pelo menos até ir à mesa, até virar banha. Até lá, Nascimento não possuía vida visível, o espaço do chiqueiro ficava bem longe da casa, o suficiente para que todos soubessem que a casa, a família e a fazenda não tinham com ele nenhum apego, apenas certo interesse. Quanto a Miguel, o papel que desempenhava na família e na fazenda era de extrema insignificância. Um homem menor para todos, entre os dentes de todos havia aquela espécie de riso, e a beleza e a força de Miguel corroborava ainda mais para isto, então realmente, Miguel era apenas uma pessoa possuidora de pernas feias, assim desta maneira, Nascimento era o que ele realmente merecia. Somente a mãe de Miguel mantinha um pequeno respeito pelo filho, respeito é claro condimentado pela compaixão, pelo desprezo disfarçado em amor, somente ela ainda via no filho um homem baixo, desprezível, que possuía o que merecia porque não havia encontrado no mundo nada melhor. Suas irmãs quase não referiam a ele, e seus irmãos o ignoravam ao ponto de esquecer de chamá-lo para as refeições familiares. Miguel não se sentia morto, sabia que havia conquistado algo muito precioso, e que agora, escolher um novo papel no mundo já era pouco necessário. É claro que podia se adequar mais habilidosamente no mundo, se somente se, pudesse permanecer o máximo de tempo em silêncio, se pudesse manter a sua presença desapercebida de todos, se conseguisse encontrar no mundo o fazedor de sombras, se pudesse se conduzir com suas sombras tênues diálogos com os seus desejos despertos sem se entrechocar com sua alma ruidosa. Agora, depois de tamanhos lamentos da infância e da puberdade, só poderia recostar no abrigo e entristecer. As alegrias que ainda existiam em si mesmo e as alegrias vistas de seus olhos somente circulariam no sangue se permitisse o diálogo entre elas, as alegrias íntimas e as alegrias externas precisariam conversar. Nos diálogos poderiam ocorrer discussões calorosas mas jamais poderia deixar a conversa perder o foco, a intenção das palavras havia de ser preservada e as emoções deveriam sempre reconhecer aonde encontrariam a paz, a quietude, o silencio, a selva. As alegrias continuariam a ser o que são, um contentamento, à medida que relacionassem em vias áreas e duplas, de mão e contra-mão, natureza humana e natureza, mundo e sujeito, sujeito e sujeito, almas e pulsões, instintos e liberdades, livre arbítrio e lei, os continentes, os times, as teias, os bichos, as palavras, tudo que é caminho precisa ser preservado, tem que ser trilhado, pesquisado, saboreado, o contentamento emerge na adequação das partes que convivem, as essências não são essenciais, o que é necessário é reunir os cacos, dar aos fragmentos perdidos as respostas banais. De onde ele veio? Para onde ele vai? Qual sua finalidade? É bem verdade que as perguntas nem sempre são passíveis de respostas, no entanto, na ausência de respostas precisas ou da viabilidade da pergunta, pois, a pergunta pode estar se referindo a um conhecimento indisponível, resta ainda assim, concretizar o absurdo, simbolizar o inefável, acolher o indizível, reter o máximo a impermanência com a simplicidade da existência, é preciso fabricar o provisório e nele firmar o contentamento.

Primeiramente amarraram-no perto da grade que o cercava, depois derrubaram-no e amarraram aos pares as quatro patas, o pai de Miguel segurou pelas orelhas a cabeça de Nascimento, o filho mais velho segurou as ancas e Cota a cozinheira benemérita da fazenda cortou a jugular com uma faca extremamente indócil. O sangue jorrava calorozamente para fora vermelho e aos gritos Nascimento tentava ainda que, inutilmente, escapar à morte se debatendo desarticuladamente. Não durou muito para que a alma entregasse o próprio fim ao término dos movimentos da carne. O pai de Miguel destrinchou a anatomia dele, com farta experiência e belicosa eficiência, separou a vida da carne, em uma hora e meia todo o Nascimento estava no chão. O filho recolhia as postas, lavava cada uma delas incessantemente, depois colocava comodamente num saco plástico cada uma, para depois finalmente então levar para o frizer. No decorrer daquela incomensurável brutalidade necessária, o chiqueiro havia ficado cheio de fezes e sangue. As fezes eram as testemunhas do medo de morrer de Nascimento. O sangue era a obediência à Deus. Pai e filho, Miguel e Nascimento, alma e carne. almoço e dor. Por último o chiqueiro limpo e desinfetado.

Chegou na fazenda por volta das seis da tarde, o céu ainda tombava o vermelho no horizonte claro e terno, na imensa planície a força eólica não tinha dificuldade de acompanhar o vôo dos passarinhos, os mugidos ora em vez ultrapassava os ventos, as piadas dos corvos nas copas dos buritis, o rio bambeava as pedras do lugar, pelo arrozal enlanguecido as rãs fabricavam pequenos idílios, grilos e gafanhotos, vaga-lumes e percevejos, uma multidão de noite calmamente desvelava. Pelos próximos quinze minutos todos os passarinhos se despediriam da arte de voar e encontrariam nos ninhos, muitas vezes desprotegidos, a família. Encostou-se na cerca gradeada como de costume sempre fazia. Nascimento pela segunda vez, não veio lhe cumprimentar. Acomodou à boca o bico do sax e já no fraseado do primeiro minuto percebeu o que tinha acontecido, no coxo reluziu a prata falsa da faca, continuou tocando, sentiu o medo tomar-lhe as retinas feridas, as pernas desidratadas encolheram, continuou a criar os feixes de som, fechou os olhos desassossegados, concentrou-se na dor e assim pôde imaginar a dor que Nascimento havia sentido, o desespero, a solidão, imaginou a sêde da frieza pertinente dos algozes. O céu conseguiu ficar ainda mais escarlate, as nuvens não faziam sombras espaçadas pelo chão, a lua não existia no céu e o vento amarelo e gelado envolvia-se com a noite numa cópula quase permanente. As orelhas de Miguel juntamente com seus lábios restritos de carne lançavam rajadas de ódio, a música tinha sangue nas notas, vermelho e melodia, uma combinação imprópria. Quando acomodou o sax solto ao pescoço, suas mãos deitaram abertas, cada uma delas numa coxa, a multidão de noite aprisionou o grito que sentia intempestivamente por todo o corpo. Neste momento choravam com ele cem braços, as pernas, a boca, os dois olhos, dois ouvidos, um nariz, o cu, um pinto, os pés, as mãos, os cabelos, os ombros, os dois joelhos e os calcanhares, os dez dedos, os dois dedões, tendões, pulmões, cordas, cílios, pelos, uma única entranha. A noite abafava a dor que sentia, e o vento comunicava a planície que o prisioneiro estava sofrendo agudamente de uma perda irreparável. Quando a lua desencostou da linha do horizonte e as estrelas ofuscadas desapareciam lentamente, as nuvens movimentavam suas sombras no chão, Miguel voltou a ensaiar, mas agora não era ele que tocava e sim um porco. Esgoelou o sax o mais desordenadamente que podia, tentava socar a noite com todos os tipos de golpes, não permitiu que nota nenhuma estrelasse solitariamente pela planície, encavalou todas elas num espaço mínimo de tempo e desalojando incessantemente o ar dos pulmões pôde então depois da guerra tomar o seu antigo lugar de descanso e silêncio.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 03/02/2017
Código do texto: T5901090
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