O Homem que beijou o muro

Capítulo I

Já era noite. Já noite. Ele acabou de se levantar, um tanto confuso; de costume, sentado na beira da cama com a cabeça entre as mãos moles. Não pensava no que dormiu, porém seu quarto, nu queria despertar. Olhou-se no espelho do banheiro, não se assustou, por completo não, ele não podia, era o rosto rasgo afunilando para o quê. Respondeu o espelho. Mostrou os dentes e arrebateu-se com a água fria - voltando à cama pingando pelos queixos.

Escondido, um inerte corpo, homem, entre paredes duras, passado. Recordou as grandes mangueiras nas quais viveu um período de tristezas rápidas e longínquos dias. As lembranças anacrônicas, um homem anacrônico, uma pele de menino, um passado assassinado, homicídio, pistas a procurar, sem adianto, sem realmente acordar, o vestígio do desassossego.

No dia que se sucedeu, veio viva a noite no quarto. Abriu as pálpebras cobertas de peso, abriu-as com a insistência do mundo. Um corpo mergulhado nos lençóis cansados. Olhou para o teto engordurado pelo tempo, olhou com atraso para o sonho, vagarosamente levantou-se.

Caminhava serenando no ar.

A cidade estava triste de ser quinta-feira. Não havia muitos carros, nem muitas pessoas nas ruas. Não havia o que olhar, a falta de exclamação com tudo era moléstia grave. Dobrava quadras, subia passeios, descia esquinas.

As luzes em chamas, o letreiro amarelo. Estava perto do cinema, ainda não enxergava o nome do filme, veio vindo, lerdeza, veio vindo, uma curiosa vontade soletrou o título: “ ” . Olhou as fotografias da porta, recordou ter visto o filme, a louca perseguição, uma falta de motivo, de tamanha obsessão, tudo ocorreu momentos depois.

Subiu esquinas, desceu passeios, seguiu quadras. Era só cansaço, e só cansaço. Abriu a porta do quarto / entrou levemente / caminhou até a cama. O travesseiro roxeou o rosto, a boca, o nariz, tudo um órgão de encontro ao sentir sono.

Os circulares moribundos zuniam debaixo da janela. A poluição é mais branda na parte da manhã. Bocejou, espreguiçou para fora da cama. Enxugou-se com minúcia. Na sacada do quarto, uma bruma amena, uma manhã cinzenta entrava trombando luz e umidade. A porta bateu silenciosa, rua recém-nascida, rua vazia. Veio ele, em andar o pulmão, as pernas pelo bairro, o bairro pelas calçadas, as vidraças vesgas das casas, o vento sombrio, as esquinas multiplicando a cidade. Uma praça bombeou o verde das árvores, subiu do centro do quarteirão, brinquedos, a manhã era ruídos de pardal. Sentou-se num dos brinquedos, as nuvens enxugando feridas azuis.

A manhã se formou por completa anedota do envelhecimento. Como uma criança que apreende a balangar sozinha, viu-se pés sobre chão, por atraso, um engano, um aeroplano. O vento começava a soprar-lhe a cara cada vez mais forte. As pernas, dobradiças de um casarão e o riso surgia a cada vez que o frio suculento da barriga despontava. As lanças frias do tempo, a sensação feliz de aperto qualquer, o aperto da menina que como louça brilhou no terreiro das galinhas, as dobradiças lançavam-no o mais perto do céu, o mais perto de Carolina, uma mina que há muito tempo não sofre garimpo, que por muito tempo retardou a completa imensidão. A lua minguante ficou escondida na claridade do dia. O balanço teria ido ao ápice de suas correntes se não fosse o solavanco do assento; não só o assento do balanço, mas seus anos deslocaram da clavícula. As pernas enferrujaram, o vento se tornou brisa, veio o ar, o balanço regido de física, o mar de calor parou de ondear. Desencostou o traseiro do assento, com as mãos ainda nas correntes se ergueu de pé, buscou a praça e seu fundo, corpo morno, a cabeça manobrava, o tempo em lisa forma, a manhã estendida. Derrubou as mãos no ar, derrubou os sinos da igreja, se fez o primeiro intervalo do dia.

Uma semana já de férias, o quarto azulado de fumaça, a janela aberta, o corpo de pé, roletando olhos gemados pelo bar, um café, o estômago quente, cigarro, uma mulher, morena esquiva, no seu trote de pernas, a suavidade de um pasto, um riacho e um ridículo costume, nada de novo, uma vergonha pelo sexo feminino, um infeliz desejo, era uma manhã em uso.

2

A fantasia na pista de gelo. Qualquer fagulha, o desejo numa floresta equatorial, será fogo? Será queimada? A tarde lã. A tempestade do tempo. Gotas e gotas e o rolar irrepetitivo do ser humano, Andrejo, pensamentos por sua volta, os próprios anjos se calaram à sua volta. As penas, a cor e as fezes de algum mistério por perto.

3

Eles caminhavam entortados. O silêncio com fundos, com buracos nem um olhar para o lado; as ruas. Não havia vento, a tarde descia velha atrás de alguma serra. Quadras em quadras, sensações de cidade. O beco de casinhas coloridas, miúdas; Malva se virou à frente do portão cor-de-rosa, o convidou a entrar. A varanda tinha um espírito de flora, o chão saboreava sua velhice. Portão, porta, entraram até a cozinha. Estava ali uma juventude em conserva. D.Diva cumprimentou Andrejo e Malva, acolheu-o em prosa fina, parda, finada como o marido. Suas histórias em ombros recurvos, uma infância vivida com respeito pelos pais, uma senhora de recato num mundo cheio de paixão. Andrejo ia ouvindo, lábios colado em lábios, vista colada e regressiva, acompanhava tudo sem nenhuma parte a se mover. Malva lhe serviu chá, ele sujo com suas interrogativas, ouvindo as novelas, um reconhecimento talvez de Malva sobre tudo, no silêncio dela havia um partilhar, um cotidiano acontecido. Diva era lânguida em suas palavras, um sem fim, aquilo para a velha era um descanso de um ausente presente. Andrejo boiava pardacento seus olhos, dinamitando sensações desencontradas, os ouvidos se tornavam caminhão de britas, as palavras que se ouviam, melhor ainda, os casos inócuos eram ataduras para sua impaciência. Crescia o engasgo pela velha, Malva era roupa quarando em sol, a impaciência dele se enchia de culpa, uma pobre velha, sem mais presente, sem futuro, sem alcance, mas sim mesmo, seus moribundos questionamento toda a bestialidade daquele refrão penoso. A memória que tinha, ressentida pela vida, as felicidades que teve até agora eram opróbrias, nuas, friorentas, sem escola ou cultura. Não havia nele senão vontade de partir dali, sem se ter com Malva, sem ter piedade, culpado, o signo mais forte de tudo, a culpa e a falta de amor vizinho, estranha humanidade do décimo terceiro andar.

Inventou razão qualquer, Malva o levou à porta, se despediram desejando saudade, mas nada passou, nem além além, nem atrás, nem detrás, cortinas se fecham, mas o teatro não pode parar.

Partiu, partido, pela rua do beco, triste e rígido, empolado, sem sobras de nada, movimentava as cordas, uma gelatina de sabor tangerina esfregava o peito, era pálido - sozinho o governo da vida.

Um copo de cerveja, um copo transpirante, vidro, forma, quietude, utilidade. Amarelo líquido, amarela sua carne. Fraca, falta ser quente para morrer. Paixão para morrer, fraca carne, o perigo do mundo, são as culpas, cuspiu um murmúrio, são as culpas que me enfraquecem.

A porta tocou em tempos diferentes, toc-totoque, silêncio. Andrejo estava no banheiro se barbeando. To-totoque de novo. Abriu a porta, acabava de enxugar o rosto, uma toalha no ombro, Juca lhe entregou um envelope timbrado. Foi só a conta de um cumprimento. Colocou a carta na mesa voltou ao banheiro. Após o banho, após um cigarro. Na sacada do quarto, as ruas, as mesmas ruas.

4

“Prezado Senhor Andrejo Frans Flor,

Estamos obrigados a informar-lhe que Oswaldo Frans e Cecília Flor morreram num acidente de ônibus na Br 767, no dia 17 de outubro deste ano quando viajavam a caminho de Laranjeira. Infelizmente não restaram corpos, o fogo foi brutal. O enterro simbólico já foi feito neste mesmo local.

Devemos lhe informar, ainda, que está anexa a esta missiva uma escritura das terras que pertenciam aos teus pais.

Nossos pêsames

“Ministério das Terras de ...”

5

A tortura foi grande foi tiro de cartucheira.

6

Da última notícia que havia recebido deles não se havia passado dois meses. Impressão na pedra. Impressão mais vaga, o fim era o começo do que não se teve.

7

A viagem inesperada. Rever a velha casa no interior do país, rever e se convencer.

8

O trem

A massa preta, o nariz a enfileirar ventos, o silêncio elétrico pelos trilhos, o tempo veloz, a matéria de ferro, ferro puro, peso puro, força e bravura, a união indígena do guerreiro Tupi. Parte a máquina, deixa a estação, postes de luz, pilastras de apoio viram palitos de fósforo.

9

Andrejo bebia no vagão-bar, sentado no banco, no alto dos conselhos admirava as pessoas, ( crianças que são pessoas ainda impessoais ), crianças e a rotina do escurecer se alternavam à frente de sua visão. Bebia horizonte e cachaça, bebia ar e fumaça, bebia em copos que não o seu.

A noite seguiu com o curso, também o sonho, a memória satisfez o corpo. Foi há anos atrás, a expulsão de amor, filho único, deixava a família, o pai com suas lágrimas de pedra, a mãe ensandecida de medo, medo dela mesma, medo e amor foram o verso da viagem. O sonho montou um espetáculo vivo, recordou para ele sua própria história, quando Andrejo acordou, uma nova cidade já estava, a lembrança da cidade natal, passada em corredores da infância, fundia-se com o sonho, uma união de imagens, uma proposição das verdades silenciosas arborizavam sua chegada, a chegada, o trem.

Desceu na cegueira escura do trem, era manhã de clareza nascente, uma contradição entre pupilas e coragem, o corpo tinha-lhe obediência, era verão nas estrelas.

10

Uma senhora o recebeu em casa; não o reconheceu, nunca havia conhecido. Era uma espécie de governanta, tinha no rosto a cordialidade. Fez-se nos olhos a tristeza com o acidente, mas não falou sobre. Andrejo entrou, as paredes ausentavam de expressar qualquer dor, o ar em mofo, a governanta o acompanhava, Bilí, referiu-se ao ar, contou que Domenique, o seu tio havia-lhe incumbido de uma vez por semana viesse à casa, limpasse-a e a deixasse aberta por quase todo o dia. Este era o dia - ela afirmou.

Com o tempo, o reconhecimento do lugar. À tarde, sentado na cadeira de balanço do pai, o cigarro e sua maldita proibição naquela casa. A mangueira do terreiro, as memórias da infância, as confusas histórias do seu avô Bilí havia ido embora, disse que de manhã estaria lá, no preparar do café. Bem vindas horas de silêncio, o seu quarto intocável como doces cristalizados. Esteve em toda casa, por todos os cantos, as paredes tinham um desgosto que ele podia sentir, mesmo assim permanecia indolor, não sentia nada mais do que uma decepção, uma ausência fria, não coloquial, intemporal, sem qualquer registro. Não estava em estado de choque, fazia anos de partidas, anos de distâncias. Aquela ocasião era uma imensa e nova estranheza por parte de quem? No contexto dos acontecimentos obtinha uma única pergunta. Perguntas que são as únicas respostas. A culpa, a frieza, o abandono e uma obrigação infinita. Voltas se foram pela circunferência antiga de uma crise.

Na mesa de café, Andrejo vivia ainda seu desacordo.

Ele fumava: - Uma única pergunta a Bilí.

- Por que meu tio não me procurou?

- No dia em que ele esteve aqui, ouvi dizer, na hora que ele e sua família almoçava, que não havia encontrado. Foi a única coisa que eu soube.

Andrejo se recordou quando da sua última carta, um ano atrás, sua família não soube que se mudara.

Era verdade, plena ou não, o tempo passou, um hediondo álibi construído pela consciência ou para a consciência.

11

A senhora de pouca idade, sensível, a tosse torcia os alvéolos, o nariz começava a espirrar, o peito caceteava, rosrosnava, uma intraquilidade se alastrou por toda a cabine. As pessoas já o olhavam com os pêlos hirsutos, Andrejo não conseguiu ignorar mais. Não olhou ninguém ao sair.

A noite era fresca, pelos corredores do trem, de volta para a cidade grande, o endereço do tio no bolso, algumas idéias de viagem, alguns restantes dias de férias, dúvidas, negócio, a sua casa, o que faria com ela, pelo corredor do trem um silêncio de igreja, portas fechadas, um zumbido contínuo corria por todos os vagões, relia os acontecimentos, relia em seu cigarro os sinos de uma rebelião.

Passou por todo o trem, uma última porta abriu para chegar ao fim, dois passos no último vagão, o trilho era uma margem para o infinito, o ar ali úmido, uma grade cercava a sacada, uma espécie de varanda para fumantes, olhou o céu enuviado, o vento corria de costas, seus cabelos eram batutas alegres, sentou-se no chão, as pernas entre grades, um sorriso empalhado veio-lhe aos dentes, uma breve sensação de alívio. Acendeu mais um cigarro, um cigarro que não perturbaria a viagem de ninguém.

12

Já na cidade, mutilando as unhas, espantando o sono, porrinhando o corpo pelas ruas até o quarto.

13

Malva não soube das mortes, não soube de sua viagem, ninguém soube, não era necessário uma livre confiança, não era exato sua solidão, a dor era fria, inativa ainda.

14

As ruas como escorredor de prato.

Como escorredor de prato. Chuva cai, cai. Nas ruas molhadas, a rua nunca é a mesma. Nunca? Nunca...felizmente.

15

A chuva

As pernas foram se molhando, o rosto magro, engraxado de saúde foi se molhando, o riso na boca, rios de risos, Andrejo não olhava Malva, nos cabelos dela a chuva era natural, era natural o corpo em doçura, o andar, os andares dos prédios na rua, andares das pernas nos passeios, os dois juntos, um ao lado, outras gentes ao lado, era chuva que frisava a blusa nos seios, a saia que cola, os cabelos dormem por sobre a nuca, a chuva era relógio e lugar.

O vinho, o queijo, a cozinha, Malva à frente, em frente, o que são exatamente os desejos? São os olhos que bebem em copos outros? São horas da noite, e o gato da vizinha mia, as bocas cheias, na cozinha murmúrio de ambos. Andrejo digeria Malva, ela era a mulher nua de um sonho que não se lembra, a mulher que se enrodeia de um fixo mistério. Andrejo sentia no corpo uma inimizade do cotidiano. Malva tinha em mãos, o conforto do domínio, o terreno comum, os sons comuns de sua casa, seu corpo recostado na cadeira era um puro líquido, sinuosos músculos, carnes e encaixes.

O tempo no plano, sempre em papel de parede.

16

O dia comum

“O que fiz ontem? Estive com Malva, na sua casa, no seu vinho, na minha inimizade comigo mesmo, o que fiz de ontem? Retiro este aspecto que me deu algum trabalho. O que fiz destes todos os dias, que para mim não resta senão um longo período apagado, sem memória, o que fiz de dias que não me lembro que foram ( num passado ou num próximo presente ) que foram nem dias, foram difíceis, vazios e sem lembranças. Ontem a companhia de Malva me elevou de importância, o que a vida lembra, lembra em mim.”

Sentia-se quando escrevia, uma leve estupidez. Uma sensação de conforto e frio se alternavam.

17

Leve ou pesado

A história justifica a humanidade, da inumanidade provém a esperança. As ruas são frias no inverno e quentes no verão.

18

Nos olhos de crianças a fome. As frutas brilhavam, os ungüentos coloridos, as pessoas eram muitas, mais do que muitas. Era feira, rua livre, mercado livre. Andrejo pelas barracas, pela manhã veloz.

Valéria veio de encontro com o azar, o acaso, o sobrenatural disputando a verdade. Se encontraram na saída do mercado. Ela era, em tempos atrás, um pequeno cisco. Passaram algum tempo conversando, um pequeno instante não capaz de quebrar toda a estranheza enamorada. O acaso inúmeras vezes não é o bastante para alforriar os escravos.

Naquela manhã, Valéria se foi, com ela uma feira branda, Andrejo esteve diferente por todo dia. No decorrer do dia, com o diário de bordo nas mãos, ele escreveu: “Neguei verdade a um amor quase nulo.”

19

Os pés caminhavam num asfalto de águas. Ao longe, ilhas formando estrelas respiravam. As superfícies inflavam docemente. A água negra banhava as perdidas estrelas. O céu estava prateado, reluzia a prata futurista. O mar morto, um acimentado piso. O tempo era um imóvel silêncio. Apenas pés se moviam. O mundo era o intervalo do orgânico para o inorgânico. Os pés caminhavam ao encontro do céu de prata, ao encontro da água turva. Era o nó da física se fundindo em uma ilha, não como as outras, esta era maior, suspensa para o céu como para o mar. A ilha era uma total ausência de verde, o mármore roxo era sua terra. No formato a definição de tudo, todos os movimentos ocorriam como mutantes, como gás que se dissipa no ar, como fantasia que mistura mortos com vivos. Segundos redonda, em segundos baleia pterodáctilo, um focinho de cachorro, a ponta de um florete, um conjunto de inúmeras formas. Os pés continuavam a andar, o tamanho de cada passo era inverossímil, a ilha se aproximava, a prata, o mar, o roxo, os pés, logo tudo unir-se-ia. Acima do que andava não havia corpo, rosto, forma, pele. Abaixo do andar, o piso negro, a cada passo um chegar mais próximo, uma ilha próxima, uma continuidade em movimento.

Céu, pés, prata, água, ilha, o encontro uma explosão sem barulho, tudo acrescido, apenas acrescido, um não mais do que isso, acrescido de pés a ilha, o silêncio acrescido, o tédio estático acrescido de pés, o mundo todo era o mesmo acrescido, o tempo ainda era um imóvel silêncio, o que fora movimento agora era loucura, o mundo já não tinha pés, não se tinha mais...frio, as pálpebras se abriram, o teto era o mesmo, engordurado pelo tempo. Andrejo releu em flashes as filmagens dos sonhos, as filmagens do sono.

Voltou a dormir. No dia que se seguiu, seguiu sem seu sonho, apenas uma leve sensação de esquecimento o acompanhou. A manhã era morna, as nuvens que estavam no céu azul eram plumas para carnaval.

20

Um dia inteiro para um jornal, um dia e um só jornal. Debaixo do braço, debaixo da bunda, abaixo da crítica, abaixo dos olhos. O dia e um jornal.

O velho rádio ligado, no quarto, na escada a olhar os muitos tempos. Quais? As muitas horas em relógio de pilha, o jornal ao lado, a música, o tempo que passou não mandou novidade. Andrejo se fechou, foram olhos no vento, o livro na mão, foi o cão no chão.

Não foi o novo, nem o que já é triste.

21

O convite

“Depois da morte de minha irmã, de seu falecido pai, nossos caminhos voltaram a se cruzar. Você sabe que estive lá, com Bilí, recebi notícias suas. Seu novo endereço Bilí me deu. Por isso, aproveitando uma ocasião ingrata, lhe escrevo este pequeno tropeço de linhas. Ainda penso o que você vai fazer da vida, me preocupo, tenho e sinto uma obrigação em ajudá-lo. Não sei o que você fará com a casa do interior, não sei nem como vive. Aproveitando a deixa, as irresoluções que você decerto deve estar passando, faço-lhe um convite para que venha visitar a mim e minha família, aproveite para pensar nos seus assuntos, para descansar. Junto com a carta está uma passagem de avião.

Sobrinho, espero que venha,

Um abraço,

Domenique ”

22

As férias teriam término. Num outro dia releu o convite, pensou na possibilidade de viajar, na possibilidade de fazer um negócio por lá, vender a casa para o tio.

Rever Domenique não era uma idéia apetitosa, não era há tempos atrás, na infância um pessoa que emana calor. Apesar das recordações insípidas, uma perspectiva nova poderia ocorrer com a viagem, mesmo que fosse apenas viajar de avião, ver outras ruas, ter uma tenda de dias em outra cidade. Não sabia se ia, mas não perderia nada se fosse. Fechou o envelope, bebia algo no quarto, era noite, da sacada os carros passavam raramente, não havia lua, no céu uma estrela brilhava de cada vez.

O quarto era pequeno. Andrejo criara ali uma intimidade, cria-se uma intimidade ou apodrece. Na noite havia uma silenciosa recordação, um tempo distante, visitante, vinham lentas as imagens, os antigos doces de memória. Ter de novo o mesmo tudo, açúcar, ter de fazer de novo, uma impossibilidade, não lhe bastavam doces que já não moravam em suas mãos presentes. Uma maldade existia no antigo lembrado, uma maldade de mal-estar. A manhã ainda viria neste mesmo dia, antecipando o cultivo de um futuro. A manhã ainda era uma noite, os carros raramente buliam no silêncio da rua, raramente buliam com o silêncio pacato da memória.

23

Um céu abúlico, cinzento, não passava pelo teto da cidade. A luz que chegava era cheia de crepúsculo, era um adianto de tempo. Andrejo relia algumas páginas do diário. Mantinha a caneta na mão, algum tropeço úmido poderia ser arrancado.

No decorrer do dia, com Malva compartilhou a chegada da noite. Estiveram juntos num bar, no cinema, uns e outros momentos, duas vozes ciciaram por calçadas, Malva lhe tinha em bom preço. As horas passaram sem nenhum custo, sem nenhum riso cruel.

24

Percebeu então que viveria ainda inúmeros séculos com a mesma liberdade que já fora elaborada muito antes de elaborar a sua própria.

Tudo esperava por acontecer na hora do almoço. Andrejo não havia chegado. A bronca varonil e a aflição almoçavam. Na represa, Andrejo, Carolina, Bucho, a menina Taja. Todos eles, menos Carolina, amigos de verão. Em todos eles rendia o quentume do sol. Não havia mais ninguém na represa. Em plena planície, de arrozais floridos, a represa com sua cor mesclada, manchas mais escuras no meio, mais claras na orla, uma margem quase oval, entre árvores a grama verde, na formação espúria daquelas águas, havia um ar silvestre, autônomo, independente, vindo dos anos que já se passaram, o próprio lugar se acomodou com as pequenas marolas, e era em gorjeios de passarinhos que a plantação balançava, eles, crianças nuas andavam em contente com o sol, com a bóia preta e musculosa, não havia ali sexos separados, a ingenuidade já era acometida da malícia necessária. Gôngora no pneu, descanso para o corpo, o céu ferroso, febril, Carolina esguichava a água morna pela boca, a superfície plana, os rostos deslizando, os risos saltavam, salteavam ao vivo vento. Taja tinha uma pele madeirosa, curtida, envernizada, nos cabelos longos, anelados, um fogo ruivo brilhava nas pontas, os olhos tinha uma cor de capim, macios e suaves, pelo seu riso um terror terno, imprevisível era sua gargalhada, ameaçadora, os encantos estavam no timbre variante. As crianças, na margem gramada, no meio do redemoinho o vento que ignora o frio, os olhares migrando alados, por entre rostos infantis...por entre...silêncios...bóia...a felicidade.

O sol explodia como massa de tomate, avermelhado os prédios, as ruas em pleno movimento, nada tinha sim a esconder, uma pequena história difícil de ser contada, uma pequena parte, que ele próprio tornara ausente, inverossímil, dando a essa um esquecimento seu, dando a si, um medo inane. A espécie de infância que recordava agora era apenas um dos seus pulmões de menino.

Veio-lhe com o vento...

As marolas cochichavam em suas orelhas. Olhando o céu, boiando, Carolina entregue, esticados os braços, as coxas parte na água, parte fora. Andrejo sentado na bóia, as nuvens já empolavam em parte o céu, metade da tarde havia transcorrido no círculo de dentro da bóia. Taja apareceu, sentou-se do lado oposto de Andrejo, Bucho que nadava mais à frente, também veio, segurou com as mãos a aba da roda, os pulmões arfavam, reunidos os três, só Carolina permanecia a boiar, só Carolina parecia ter um pequeno mundo.

Sentado na mesa de bar, lembrou-se do nome da represa. Quaz, uma grande gota de suor, as crianças na roda musculosa se reuniram, cada um tomou um dos pontos cardeais, não trocavam palavras, observavam o céu em movimento, o tempo passava como uma observação. Viram sopros e zangas, o sol foi se deixando cobrir, foi se deixando nublar. No rosto de Taja havia uma precisa atenção com o mundo.

A coca se foi pela goela abaixo. Agora o rio, a ponte, o rio a atravessar pela ponte, um bailar a mais, o rio antro, a atravessar a ponte, sustenta-te, sua sombra a bailar.

Depois de uma longa viagem, o chão. Recolheu-se a natureza. A chuva caiu como lenha na fogueira, Quaz desenhava-se em círculos extensos, cada gota, tremugem, a cada relâmpago, milhões e milhões de gotas. O céu cinzento, feio, corrupto. A bóia rodava, bradava trovões. Naquelas crianças uma coragem dos céus, na tarde que se ia, embora mais cedo, embora mais tarde, embora fosse um pequeno começo de uma grande estação. Aversão. Eles se foram.

25

Para a eternidade não há olhos que enxerguem. Para o correr de um rio não faltarão pontes.

Na noite que veio, esteve com Malva, estiveram ambos, um com outro, ambos, estiveram e se falaram por algum tempo, estiveram e também se calaram por um tempo. Medição. Não. Olhares em tranqüilas vidraças.

26

O despertador tocou às sete. Cala após o café pronto, após ter acordado o marido, foi com a roda e a manhã se passou. Os braços em firme atenção, os olhos de olho nos pontos, de olho no relógio. A marmita pronta mais tarde. O marido que vai para o trabalho de volta, de volta do trabalho. A mesma cama, a mesma roda de costura, a mesma roupa. Algumas vezes parava de frente ao espelho, olhava suas trutas como quem olha o sol sem óculos escuros. A cada dia uma derrota epopéica. A brasa no fogão, o vitrô e o vergão que não saiu.

No mesmo dia, no anterior destes mesmos, no rio interior de Balo a cirrose que veio, a sirene do fígado. Vários dias para morrer. Cada um ficou só, a roda rodou da máquina, rodou moinhos, a Europa para um pobre é apenas frio.

Andrejo fechou o livro, fechou o capítulo. Um jiló atravessou a rua. Pilhérias humanas.

27

Pela primeira vez, sempre a primeira, uma eterna primeira vez, uma vez. Será que ele não percebia, se fingia de bobo, ou será apenas a memória única da velhice. Ebo havia construído a casa em que morou, a casa em que seus filhos moravam, a casa que Andrejo herdara. Lembrou-se da mesma história que seu avô contava. O bigode cheio, esguio e branco, aquela voz rouca que lhe saía de uma gruta funda, era aquele conto, descansando muitas vezes, era ali, com seu avô, nas pernas cavalgando florestas, que via dragões, nestas pernas uma parte do mundo conheceu. Ebo tinha pontos de estranheza no olhar, era como cristal que se quebra, faiscante, recheado de uma agudeza, uma solidão alegre, encontrava em Ebo a proteção de certas aventuras que fazia, seu avô por várias vezes lhe livrou de surras, não a daquele dia da represa, na volta daquele monstruoso dia, não houve remédio que curasse a raiva do seu pai, mas na ocasião Andrejo não sentiu dor, sua felicidade era de tamanha força que o cinto, por mais que estralasse em sua bunda, não vergava nele nenhum arrependimento. Foi com o riso amarelo, com contida velhice, foi com ele que aprendeu a observar, a assobiar, no avô de costa sempre havia o perdão. Quando tinha de onze para doze anos, ele morreu - parada cardíaca. A casa demorou a se acostumar com aquela tamanha ausência, aos poucos os espaços vazios foram sendo ocupados, aos poucos uma nova rotina surgia, o pó voltava a aterrizar no chão. A ferida veio secando, secando, apenas a pequena ondulação na pele não saiu, ainda naquela época não havia plástica. Por um bom tempo se fechou num cofre, se fechou em respeito à sua dor. Em respeito, deveras, grande erro de criança. Mas existe sempre um bom ladrão. Existe sempre a virada do século. Por todo o dia pensou no avô, desde a manhã, após o sonho, o dia todo esteve naquele colo tão aquecido. Passou a tarde, foram tantas horas juntos que chegou a suspeitar se Ebo não poderia estar vivo. Chegou a suspeitar de uma grande mentira, a morte. Foram apenas alguns segundos, precioso tempo de fantasia, como um filme que se acaba, mas não termina ali no apagar das luzes, termina mais adiante na solidão de algum quarto, ou na mesa de algum bar, se termina no amanhã seguinte ou na próxima semana, a leve sensação de eternidade parece que não se acaba nunca, não após um filme, não após um amor, não após uma morte, a presença gentil do sentimento quando apenas se apagam as luzes.

28

A porta se abriu automaticamente, aeroporto, cidade nova. Era quase noite. Alguns carros em trânsito. Pensara bem na viagem, no que poderia ser feito na casa do tio. Andrejo carregava uma pequena mala. Com um policial se informou para onde ir. Andou duas quadras, descendo as escadas até o metrô. Mala na mão, cigarro na boca, leu a placa já no subterrâneo, “proibido fumar”. O cigarro no chão, uma leve saudade na boca. Lá em cima nas ruas, não chovia, não fazia frio, uma secura no ar.

29

A bala

Algum cansaço sim. A espera foi curta. Era sexta-feira, o metrô estava cheio, o ar artificial dos vagões o incomodava. Andrejo esticou um dos braços ao alto, segurou o corrimão do teto, a outra mão permanecia segurando a mala, todo o corpo estava estendido, abaixo, ao alto, aos lados, uma quantidade enorme de pessoas, de cheiros, uma adega coberta com tantos vinhos. Flores e mais flores, um incêndio de bafos humanos. Uma loura em frente. Esticada na ponta dos pés. Cansada nas pontas dos pés. Suada, suja, ainda assim, uma beleza magra na cintura, uma bela atmosfera. Luzinhas pulando, passam as estações. Baldeação. No outro vagão já não mais viu a loura. No outro sentido a bala ia, o ar continuava artificial, continuava o tumulto de cheiros, parecia um inverno inteiro sem banho. Andrejo, sua mala na mão, um calor, um mal-estar ginecológico vinham para as pernas, todos ali, dentro daquela máquina, eram fortes, olhando de cima para baixo, pareciam gado em viagem definitiva. Voz, só da máquina. Cansaço, só o homem. Nojo, só de gente. Subiu duas escadas rolantes até a superfície. Informou-se de novo por onde devia caminhar. Rua em ruas, o vento em brisa leve. A noite cuidada em silêncio. À medida que andava, pensava em Domenique, em sua família, os carros diminuíam, Andrejo trocou a mala de mão, trocou a vida por alguma estrela, não havia nuvem no céu, não havia lua. Brancura das luzes, postes por sobre o passeio, as árvores, as vitrines das casas, os prédios são o mundo que corre, corre nas cortinas artificiais, inexatas, à porta dos prédios as pessoas trançam as pernas.

30

Em algum tempo, já numa mais passada, andada, friagem, noite, sem tristeza, sem flâmulas, sem desastres, sem qualquer cachaça, seus olhos eram como um menino abandonado. Avistou a placa na rua, avistou o fim da viagem, o começo de viajar. Conferiu o número na carta que havia recebido. Afrouxou o passo, suavizou os sapatos, os apertos e os calos. Pelas ruas sombrosas, pelos muros assombrados, pela noite envergonhada, vermelha, azulada, pelos passeios, por um único passeio, por poucos instantes. Andrejo sem parada, sem parágrafo, não mudava de assunto. Cansaço, viagem, solidão, se não, homem, mulher, uma história antiga, dos tempos de infância. Carolina, aquela represa, seu avô, uma porção de coisas contornavam-no como fantasmas. Foi um cachorro que passou pelas ruas, foi um gato que pulou o muro, foi noite que escureceu de novo.

Abriu o portão, pisou por sobre lajotas, a porta a alguns passos. A campainha tocou, tocou, ... ninguém atendeu. Ninguém. Na varanda, encostado no murinho, sentou-se na mala, no chão. Sentou-se em acima dela, a coluna encostava no muro. Olhou o céu, o telhado da casa, as estrelas, um cigarro veio do bolso, a fumaça pelo ar. Recostou a cabeça na pequena parede, retomou a calma, o cansaço aos poucos ia deixando-se vencer.

Varanda escura, varanda escura, aconchego de pernas abertas.

31

Pequeno Período

Cachorro, gato, porta, vidreiro, voltas e mais voltas. Sonhos, sozinhos, homens de guerra em vigília nos campos. Rodou o orgulho nos lábios secos. O suor secava. A calça aderia ao corpo, a cabeça de vez em vez bailava solta, uma picada do acordar, uma volta ao sono, uma espera, um cansaço, um enterro. A varanda estava escura, escura, sonhos, pausa, etc.

De dias horas, de noite segundos, dormindo era apenas uma ampulheta de vidro. Areia.

32

O portão rangeu levemente. Um barulho de salto despertou o chão. Houve silêncio em seguida. Os lábios se afastaram. Um pequeno riso saiu da boca. Um oco som pestanejou pelo ar. Na varanda eles pararam. Os rostos se colaram. Um pouco ofegante resvalou no murinho da varanda. A mão foi tirada da cintura. Um dos dedos tocou o interruptor. A luz se acendeu, a porta aberta, a varanda clara, esverdeada, Andrejo sobressaltou-se, instantaneamente de pé. Os dois se assustaram. A chave caiu no chão. Ele olhou Domenique, sua mulher estava pálida, arregalados os olhos. O silêncio penou pelos três. Domenique deixou a mulher encostada na parede, foi cumprimentar Andrejo. Os três entraram logo a seguir, entraram com uma conversa amistosa.

- Teríamos buscado você no aeroporto!

- Não era necessário.

- Minha mulher, Quara se apresentou.

Naquela sala imensa, com imóveis espaçados, uma grande janela no meio. Serviram-lhe uma bebida.

Após a sala-de-estar, um pequeno lanche, uma pequena conversa, lhe mostraram toda a casa antes de levá-lo ao quarto de hóspedes.

33

Um longo período, um homem, meio homem, meio nada. O sono tomou volume, tomou corpo e voz, horizontais, velas, vagas. Não foi difícil se dar, não foi um lugar novo, apenas um sorriso da história. Pálpebras, amanhã uma abertura.

34

Um susto de acordo, o novo. O sono dos mortos. Dos justos. Após, a estranha impressão de um novo abrigo. Na cozinha fez um café, azulejou os ladrilhos de fumaça, de fome, de xícara, espantou talvez, pouco, dosou seus passos, seus sons, o silêncio da casa era divino. Na sala olhou o relógio, o pêndulo, um ritmo certo, correto, ereto, perfeito, uma traseira de ônibus que não balança. Vidrou, foram-se minutos, a maioria perfeita de um gesto em repetição. Com custo achou um cinzeiro, com custo terminou o cigarro na varanda, sentado no murinho, olhando o grande coqueiro da porta, o belo jardim, o céu clareando jasmim.

A manhã para um encontro. Quema, filha única, chegou em casa. Uma garota de vinte anos, vinte ou menos, uma estranheza para os dois, rostos e formas. Era sábado, dia de graça e peixe. Os dois viram, se cumprimentaram, perfilaram impressões, provaram gostos. Não foi tanto tempo assim, a família se encontrou antes das onze.

35

Um dia se passou. Algumas vezes Andrejo confundia suas visitas na palma da mão. Algumas vezes viu pardais no coqueiro, olhou Quema, Quara, Domenique, olhou cada um com diferença, reconheceu os traços de uma família, de um lugar, um modo peculiar de um grupo viver. Houve diálogos sim, conversas diversas, com Domenique ainda não havia falado da morte da irmã, não havia tocado no assunto da casa com ele, aquele homem de barba, cabelos negros, olhos de avestruz, ainda não havia ficado a sós com o tio. Quema se aproximava, a cada segundo era ela uma revelação, um meio jovem, uma expectativa de vida. A esperança de setenta anos bem vividos. Motivação européia, Andrejo via-a como a Carolina que sempre imaginou crescida, a que nunca mais viu, não após a despedida.

As pessoas são partes de outras pessoas. As partes se encontraram por todo aquele dia. O futuro que se encarregue dos inteiros.

36

Voltou do almoço com a barriga cheia. Almoço de família, uma leve aparência no ar, uma leve desconfiança nos olhares. Se era para com ele não soube, se era uma gripe familiar ou quem sabe uma pneumonia, também não obteve a resposta. Uma calma fria no prato, no garfo, nas palavras trocadas. Agora, após o banho, o grande espelho do banheiro, mentia seus olhos, mentia o rosto vivo, gorduroso, um redondo brilho, na mira, a ferida, a saudade, Malva, a falta do quarto de lá, a descoberta de uma espinha. Já há anos nada eclodia da pele, nada explodia sem a sede da razão. Mostrou-se a língua coberta de sapinhos, o vermelho rugoso. Saúde de gângster em decadência. Perto dos trinta, perto do fim, os dias se... férias sim, ouviu vozes pela casa, pela beirada de uma discussão. No quarto, o cigarro aceso, a música vinha da sala, nem mais um sinal de voz humana, a tarde estava perto de escurecer, na cama, olhando pela janela na companhia de um cigarro.

37

Um delírio, Um encontro

Era madrugada, silêncio e mais silêncio. Os quartos estavam com suas portas fechadas. Andrejo no meio da noite se levantou, até a cozinha, até o banheiro, até a sala, até a varanda, a noite sem lua. Só depois verificou o que aconteceu, a ausência em que esteve.

De um lado para o outro, ritmo, perfeição. A máquina, uma criatura que será eterna enquanto durar a pilha, a bateria, a pilha, enquanto uma mão motriz lhe der corda. Semelhança com o músculo coração! Semelhança sem dor. Será o próprio tempo em ponteiros, grande e pequeno, será apenas uma vigília, uma pequena marca? Quando desligar, voltarei aqui como relógio, voltarei e terei como padrinho o tempo. A velhice não se derreterá em pingos na minha frente, não derreterei a voz, nem aflição, não derramarei nem mais um grão de medo, serei apenas velocidade / distância, quem sabe terei o perdão dos físicos. Fechei os olhos, vieram deuses e muitas histórias. Fechei os olhos, não para sempre, fechei olhos, derramei sonhos, não para sempre mim.

O leão despertou, em pé na sala, madrugada, era uma e meia. Ao ir à cozinha, um vulto, uma mulher, Quema se assustou comigo, fumou comigo um cigarro, pediu para que não comentasse nada com seus pais, terminou o cigarro, ela foi se deitar. Fiquei ali, como agora estou só no quarto, a escrever essa peça de diário, a contar com palavras a ficção.

38

Em cada face um olhar nômade. Ela engolia os objetos, Quara, ali sentado ao seu lado, Andrejo ouvia o mesmo disco de outra vez, Domenique permanecia em pé, Quema calmamente deitada no tapete. A família reunida, após um dia excessivamente quente, a noite teria no mínimo um motivo de graça. Depois de um dia inteiro no clube, um dia de domingo, comum, sol, piscina, mulheres, desconhecidos. O mundo girava na ordem, com os opostos, vitrola livre de arranhões.

39

Quando acordou para tomar café, Domenique já havia ido para o trabalho. Quema lhe fez companhia na mesa. Andrejo não se demorou; não ficou por muito em casa.

Visitou o mar, pisou pelas areias, o céu nublado, o ar úmido, as vozes do vento foram muitas, a manhã passou como se lesse poemas, um punhado de imagens, de significados frágeis, o remetente que não se vê, mas que se ama, que se detesta, que se copia, que é saída, que é guerra, é chá, homeopatia, cardiologia, que é visão ( “Sétimo Selo” ), a calma das vacas.

No caminho de volta, já dentro do ônibus, os pés sujos de areia, se lembrou de uma pergunta que havia feito para si quando olhou pela primeira vez este novo mar. Eles não gostam de mar? Por que me levaram ao clube e não à praia? Nenhum deles havia tocado na possibilidade de se visitar o mar, nenhum deles, exceto Quema, que numa de suas narrativas mencionou a beleza da cor da água.

Hora de descer. O sinal mais dois quarteirões, mais a tarde que cai. É do abismo que cai, o chão que se abre. Não. São bobagens do cotidiano. São bobagens tais perguntas. O portão ganiu. Não haverá nem mais um rastro de Andrejo pelas areias. Não haverá mais nenhuma comparação do clube ao mar, não haverá mais do que um simples silêncio. Andrejo deixou contornos e perspectivas para as ruas, para quando estivesse só, para o diário de bordo.

40

Interpelaram-no por sua ausência.

A chuva caiu naquela noite. Uma situação constrangedora se formou. As luzes apagaram na casa. Quema teve uma espécie de pavor. Coisa que vem desde a sua infância. Quara comentou com Andrejo a preocupação que ela já havia causado aos dois. Agora estavam sentados na sala, a chuva já diminuía, Quema se havia deitado sob luz de velas. Já beirando as onze horas, a luz ainda não havia voltado, Domenique chegou em casa molhado, Quara mantinha uma fisionomia tensa, raivosa. Do quarto Andrejo ouviu os socos de uma discussão entre marido e mulher. A filha de dezessete anos - a tal menina, uma casa estranha, Andrejo obteve uma resposta em inglês, “ I can’t...”

41

Nesta mesma noite saiu pelas ruas. Uma volta para perto dos seus, anjos, amigos, para perto de Malva, para o trabalho, para interiores, o recinto de lajes nuas, tomou sua cerveja num bar de tacanha beleza, esteve com estes fantasmas, voltou embriagado para a casa.

No dia que sobreveio, no almoço um silêncio condensado de tomate; Quema comeu miúdo.

Este líquido a dentro do corpo era o bastante. Nada. Pelo resto do dia. A espuma brilhava no mar. Branda luz do mar. Branda luz do céu.

42

Pegou-a, a cintura esguia e longa, pelo campo vazio, as nuvens no preparo da festa, o vestido vermelho perto, seios a peito, boca e rosto, boca rosto, riso e alegria sofriam, uma tensão dos pés, uma cerca rezava em corpos separados, o medo pelos dedos, uma crueldade cinza no céu. Os trovões vieram, relâmpagos azuis, a chuva a cair, as roupas se colaram pelas coxas, pelos cabelos, pelo mesmo ar respiraram respirados os pulmões, as sardas molhadas, as sardas dela, pelo corredor do pescoço escorria a chuva, viriam céus tão perto, o mundo rodou longe, de lugar a outro, o medo se foi, um leve aumento de temperatura, um leve desafio a dois pelo resto de uma vida. Soaram folhas do coqueiro, espetou a grama na cabeça, as imagens trincaram, retornaram ao tempo que pertence. Carolina se desfez, Andrejo olhou o coqueiro, firme, estacado na terra, olhou com os olhos de pergunta, por que Carolina, a infância que não me deixa em paz. Não me deixa nem resto de companhia, Carolina era um mas, um apenas, um consolo das surras, do encarceramento de amor, da vida rural a que havia sido submetido, dos pensamentos que havia sido forçado a respeitar, por todas as salas que passou, por anos a fio aquele interior foi uma insuficiência. Carolina e seu avô eram um gomo doce de sua infância, uma infidelidade na infância. Bucho e Taja ficaram no tempo, em amigos de verão, Carolina não, vem ainda hoje torturá-lo, encobrir-lhe as feridas, seus restos, ela era a maior culpada por ele não cuidar de outras infecções, por ele não conseguir ir depois do nascimento, a marca deixada por ela, não era só recordar as coisas, o difícil era conseguir das sensações uma acepção correta do que se viveu, obter delas uma semelhança com algo que se é hoje, ter por qualquer lembrança, boa ou má, um sincero sentido.

Por mais certo, se fosse, fechou os olhos, sentiu Carolina um momento mais perto. O coqueiro só abriu em dança, Quema o chamou para o almoço. Andrejo levantou-se, despertou para si mesmo um ódio por Carolina, uma força de matar, desapropriar tamanha menina do seu corpo, deixar vago, livre, o pesadelo feliz de uma época, abrir às avessas a porta de uma jaula, que saiam todas as feras, odiou Carolina, sonhou seus esqueletos.

43

Uma saia branca, um colã rosa, desceram do ônibus. O sol trombando em cascos de navios. Homens fortes, adocicados, com rostos formados de cortiça velha, olhavam as pernas de Quema, assobios de lobo, pela pequena rua, o beco em vôos curtos. Um zum...zum...zum...pelo ar, uma colméia de vozes abafadas. Andrejo falava de sua vida, da cidade natal, de Malva, não era com minúcia que dizia, era apenas a fala de um senhor manco. A água chicoteava nas docas, um barulho choco dispersava. Sentaram-se no muro, da margem as pernas balançavam acima do mar, uma cor proibida, o sol em pleno declínio, os navios agigantavam-se, suas sombras extensas pelas águas. Os estivadores trabalhavam, roupas coladas aos corpos, suor de um dia inteiro, as docas, suas transações, seus segredos promíscuos. Andrejo não se comprometia com aqueles homens, não se comprometia com objetos homens, seus olhos eram um descuido solitário. Quema uma rica companhia, uma riqueza que deixaria saudade, o sol abandonaria seu império. Em qualquer lugar havia uma repetição, construída ou não, desejada ou não, a rotina existiria. O tempo é um doutor, envelhecer é um dom, não divino, mas dos homens. O tempo opera nos corações grandes cirurgias. Não há esquiva em parte alguma. Não há sucessivas novidades. Andrejo olhou o mar e na aparência merecedora de beleza, naqueles movimentos tão parecidos, percebeu a igualdade serena de uma rotina, não era a mesmice, era a vontade de um todo. Um conjunto, a imensidão numa única função. Nos caixotes que os estivadores carregavam pra lá e pra cá, apenas um motivo sobrevivia sobre tudo, um motivo de única razão. Não se formava um conjunto, mas, sim, necessidade. Lembrou-se do seu quarto, pensou nos milhões de quartos que eram iguais ao seu, o desfruto individual, nada além. Quema e Malva poderiam ser as mesmas pessoas, bastava dar um mesmo significado - impossível - sonhou, caiu, as pessoas são novidades mesmo numa mesma prisão - rotina. Se nivelam, quase se desindentificam, mas não se anulam por completo. Não continuou - parada obrigatória! Pulou ao cigarro. Olhou o tempo, não se pode dizer isto, olhou ao redor, os movimentos das partes, o sol se deitou por completo no mar, Quema lhe pediu o cigarro, a água batia, sacolejava como berço de neném, um apito alto se ouviu, era o fim da jornada de trabalho. O batalhão de homens foi saindo, braços nus, um rumor noturno nas bocas, olhavam o chão sujo. Quema falou alguma coisa que Andrejo não entendeu, não soou como pergunta. Pela rua do porto, pelo beco cais, trafegou a colméia, o apito soou mais uma vez, um ardido trêmulo pelos ouvidos. Quema repetiu a frase “É nos olhos que os homens sambam” . Desta vez ele ouviu cada sílaba. Não fez comentário. Os estivadores sumiram com o fusco. O silêncio tornou-se pândego, o vento soprou, navios permaneciam a boiar. A noite veio sem saltos, a pressão baixou vagarosamente por sobre eles, por sobre o mar vaiado.

44

O que estava à frente? O alienígena; Quema, Andrejo, Quara assistiam televisão. Andrejo olhava imagens, crianças que berravam por uma praça morta, um campo sujo pedreguento, o sol ardia com tal força que a luz estourava no rosto das crianças. Andrejo não agüentou a secura, acendeu um cigarro, foi fumar na varanda. Veio com ele, com a noite, uma isca de ódio veio lhe fazer companhia, uma religião veio rezar ao seu lado, uns anos atrás vieram.

Na primeira semana de setembro, antes de completar seu décimo sétimo aniversário, Carolina lhe contou a conversa que ouvira dos pais dela. Na terça-feira seguinte eles todos mudariam, iriam para outro país. Foi como um choque, um sonho interrompido por bombas V12. Naquele dia não conseguiu estar mais ao lado, ao lado de ninguém. Durante a semana que passou, nem um nem outro ousava tocar no assunto. Era como se o fato não se passasse com eles, fosse notícia vizinha, incêndio alheio. Os dias se bateram em suspiros, um peso doce os dois carregavam todos os dias, quando se despediam à noitinha antes de irem para casa. No olhar dos dois havia uma tristeza que não tem lugar de ficar, fica apenas em algum lugar que existe.

- Você sabe, é hoje, depois do almoço, irei partir para um outro país.

Andrejo permaneceu calado, consentia aos olhos o que as palavras não conseguiam dizer.

Estas últimas horas foram fáceis de passar. Como o suspiro da baleia, feliz vinda, na volta é dureza da realidade. Como tal, veio o restante, aquele último empurrão, aquela última colisão de corpos infantis. O carro se movimentou pela ribeira, Carolina ainda piscou sua mão atrás de vidro. Andrejo a viu ir, com lerdeza se virou, olhou a casa mais um instante, antes de partir em pique.

Desta vez a lembrança foi quista, lúcida, como o ódio que sentia, crescia à medida que lembrava. Agora, a associação não foi livre de arbítrio, tudo se passou como ele desejava, passou na medida do querer, parou num onde, num lugar, apenas um domínio, não uma solução. Jogou o cigarro fora, abriu para a noite sua raiva indesejosa, abriu o mercado de ódio, quis vender Carolina, quis estar desistente de mágoa, atravessar o palácio do tempo, não se perder na curva de um retiro.

O alienígena foi morto logo depois. Cessou a luz que dilata os olhos, refrigera a mente que estaciona os músculos, que diz não as visitas.

Sentados numa mesa de bar. Um maço de cigarro intacto, uma cerveja. Quema com seu mestiço olhar, sua boca poeirenta. Sobre um gato que passava pela rua do beco ela comentou. Disse sobre o olhar evasivo, como achava bonito, a confiança retraída, nunca conquistada, sempre trocada por algo, “o felino, um querer perdido, um amor ao alcance de um muro”;foram estas as últimas palavras. Andrejo se lembrou de Malva, uma semana sem vê-la, do seu quarto, saudade de um quadril estreito, o único ao alcance, no raio de mil quilômetros. Puxou um trago, com um olhar de soslaio congelou uma foto de Quema. Na rua não passava nem vaca, o gato partiu por entre o beco, pelo muro verde subiu, a cortina de folha ele ainda fazia balançar. Andrejo descruzou membros, descansou o braço na mesa. Ai ela veio, aproximou-se com as mãos, esporas pontudas, retirou o cigarro que estava na boca dele, retirou a roupa íntima de um homem, o rosto de Andrejo era um pálido não, seus cabelos pretos repicados reluziram, sua pele chumbada de litros negros, morena, falecida, vaga; ela tragou o cigarro, construiu uma espécie de riso. Andrejo olhou Quema, sem nenhuma lente de aumento, sem deturpar nenhuma feição, olhou; bebeu cerveja, recuperou o cigarro, recuperou seu lugar, o quarto, a saudade de Malva, as frieiras de amor por Carolina, recuperou a deixa e sua fala.

45

Já havia passado um quarto de dia desde a conversa com Domenique. Na sala sentados, a sós, refletiram sobre as várias hipóteses de venda, de aluguel, de manuntenção da casa deixada de herança para Andrejo.

Manhã de sexta-feira. O céu estava azul, o ar úmido, viscoso fumando seu cigarro, em sua casa, final de férias, a volta ao trabalho, o reencontro com o armário, as mesmas gavetas. Na viagem, uma nova amiga pela vida. Na última vez que passou em companhia da família, precisamente, quando já estava na esquina rumo ao aeroporto, ( fizera questão de ir sozinho), Quema, com joelhos para fora, veio correndo, um sorriso pelo rosto, uma alegria terna, veio, conquistou um beijo, umbigo de flor. Na esquina sobradada por uma árvore imensa, ela se ergueu na ponta dos pés, um tacato de celo, corpo de volta meia, ele ainda ouviu os sapatos de Doroty saltitarem pelo passeio.

Havia ficado decidido, a casa seria alugada. No final, um leve aperto de mão, como num negócio. Diferente do que isso não foi, nem mais, nem menos, houve apenas a ajuda de um corretor familiar. Andrejo olhou seu tio, agradeceu-lhe, não se prendeu a delongas, foi para o quarto, era tarde, hora de dormir.

No dia seguinte...

O rádio continuava ligado, a manhã clara, límpida, bela. Abriu o diário de bordo, releu algumas de suas anotações, pensou em Malva, em procurá-la, em encontrá-la mulher esguia, forte, cheia de si, furiosa, vagarosa, achar naquela peça a novidade das férias.

No dia em que voltou de viagem, até o aeroporto o metrô cheio, na hora em que chegou no quarto, uma escuridão, um conforto, um lugar de pedra, a cabeceira da cama, as pálpebras se fecharam latitudinalmente pelo globo, foi um sono feliz, de volta, em casa, o mesmo tom pastel pelas paredes, o mesmo teto engordurado pelo tempo, uma mesma idéia de vida ali, no corpo, no lençol de dormir, o frio passageiro ao se deitar.

46

Um dia após sua chegada foi visitar Malva. Não havia gente em casa, não havia ninguém. Coisa estranha, ninguém, D.Diva nunca saía. Uma mulher atendeu. Andrejo perguntou sobre a família do lado. A moça, com certa intimidade na voz, disse que na semana passada Dona Diva morrera e que apenas no dia seguinte viu Malva. Daquele dia em diante não viu segundo sequer a casa aberta, ou qualquer barulho de gente. Não a viu mais, até falou que oferecera ajuda, mas Malva havia recusado; se despediu cabisbaixo. Um volume enorme engasgou pela garganta, tropeçou no degrau da porta da vizinha. Ele foi descendo a ruazinha, pensando em Malva, na precisão que ela teria dele, pensou no desespero que com certeza estaria sentindo. Pensou na sua própria dor, na morte de seus pais, na dor represada que guardava, pensou na solidão, no trovão, num remédio, na história, no amor que sentia por ela, por eles, o amor que não é tudo, nele ainda havia um calcanhar, o demônio que desembesta por alguém, não há xícaras de receitas, não há limite de vontade, não há nada, a espécie mais rara de animal aparece, nasce, reclama, o animal ferido deseja também a morte do mais inominável Deus.

Caminhando, caminhando sem dança, sem compasso, sem forma, na malha das ruas, paralelas, perpendiculares, oblíquas, secantes, andando, um inferno à sua volta, uma vontade antiga de viver, suicídio, as ruas são retalhos de uma cidade, são novidades de passeio, sonhos de montaria, o desespero era seu, também de Malva em algum outro lugar.

47

Domingo

Recordou décadas inteiras.

Recordou fatos

Frivolidades.

Recordou nomes sem lembrar das pessoas.

Recordou a ingenuidade de uma companhia.

48

“Estou ainda de viagem, sem moradia, é dentro de um ônibus que escrevo esta carta. Minha querida mãe faleceu, minha razão de morar nesta cidade se foi, vendi a casa, ainda não sei como vou prosseguir minha vida. Nas minhas palavras há um grande amor, uma grande gratidão. Estou esperando um filho, nem você nem minha mãe sabiam. Talvez eu lhe escreva de novo, talvez. Quero ter esta criança sozinha, envergonha-me este desejo, esta decisão, separar uma criatura de um possível...Não vou escrever esta última palavra, não vou feri-lo mais do que minha própria ausência.

Um beijo,

Malva.”

Fechou o envelope, a raiva subiu de elevador, parando de andar em andar. Talvez fosse uma criança sua, talvez fosse de um outro homem, no mínimo traição. Não vê-la mais, só se ela quisesse, quando quisesse tinha a certeza, a certeza de que estaria pronto, estaria querendo pelo resto da vida revê-la, poder estar com a criança do inimigo, poder estar com o de sangue igual, era tudo de que precisava para sentir para todo o sempre uma inveja, uma curiosidade, um perdão guardado, era motivo grande, de amor e ódio. Os olhos estavam irritados, vermelhos, mais alguns dias - voltaria ao trabalho. Da varanda, as ruas movimentadas, fumando cigarro, às vezes os dois sozinhos, na cama, a roupa no chão, os corpos frontais se abraçando, muitas vezes, algumas vezes, poucas vezes, nas noites de vinho, pelo menos nas noites de embriaguez, não foram apenas insetos vivos, não se abraçaram todas as vezes como baratas, não houve à toa, se encontraram pela primeira vez, pela segunda vez, por várias laterais do corpo.

A noite escreveu.

“Fui urubu, dei azar, fui nas estrelas, não fui feliz. Quando voltei do desfile de carnaval, a festa era outra, já não era mais para mim.”

A noite voltou de porre para casa.

49

Continuando o Diário

“Para um filme de Renoir, para 1950, seria eu um belo personagem. A tela é branca, propositalmente mancha-se com todas as cores, são muitas as imagens, mas uma única barreira, não toco com as mão a mulher, que penso que vejo, não toco com as mãos as mãos que me tocam. Não sou da cor de jambo, sou moreno, como madeira queimada, dilato mas não racho, tremo mas não uivo. Estou no meu último dia de férias, amanhã nesta mesma hora, invejarei estar vago, sonharei possuir todo mundo, quanto a isso já não me é possível, sonharei assim mais completo, meu último dia, daqui a algumas horas terei apenas um bolo de lembrança, um bolo de vontade, e eu gosto, realizar tudo o que desejo não me é indispensável, realizar tudo do que sou capaz não é possibilidade, é divindade, não quero nada, não quero, minhas mãos são vazias, carrego assim a licença de imperfeição e o pedido de sonho.”

Deitou-se na cama, os globos se fecharam, escuridão, na química dos mágicos, a mente passeou pelas formas, construiu bichos, cavernas de seda, esteve na época cambriana, conviveu com os dinossauros, pela idade média, pela peste negra, dentro do dirigível, voando de balão, pesquisando com Darwim, esteve onde a ciência tenta estar, milhões de anos à frente da tecnologia. Na Inglaterra encontrou Malva.

50

Da imaginação à realidade.

Na sacada do quarto, no meio da rua, um mendigo estirado, dormente. Pensou em tirá-lo dali, pensou em salvá-lo, pensou muito longe, não o fez, por falta de coragem, por medo, por preguiça, por não querer sair do quarto, por admirá-lo da escada, o bom gosto do corpo sujo combinado com asfalto, era um pobre recurso de enriquecimento da rua, era um quarto alugado, a luz acesa, as árvores mexiam seus galhos, a noite agradável.

Sentado na poltrona de pano gasto, no hall do hotel, se isso se pode dizer da espelunquinha em que morava. Um sofá longo, velho, empoeirado, um longo tapete com pintura desbotada, o pequeno balcão e uma pequena poltrona de braços largos. Era terça-feira, começaria a trabalhar hoje. Andrejo lia o jornal, a cidade metrópole que havia encantado há anos atrás, quando aí viera morar, hoje já não o impressionava. O tamanho do jornal já não o perturbava mais. Tantas informações, tantos espetáculos para proveito de poucos. A ilusão de que tudo o que acontecia na grande cidade era também era de proveito seu havia se deteriorado. Bastaram apenas alguns meses de resistência para que percebesse nas metrópoles como nas áreas rurais, nos vilarejos, os meios são por vezes difusos ou vedados ao estranho. A pessoa estranha que não tem dinheiro. A pessoa estranha imigrante. As pessoas que de modo geral não têm a beleza que as convençam, que as transformem em importâncias domésticas, materiais, utilitárias, culturais. Ele leu o jornal de cabo a rabo. Nenhuma notícia irrepreensível, pelo menos capaz de dar ânimo para trabalhar, nenhum produto valia o suor dessa noite, labutar para ter alguns metros quadrados, um pequeno banheiro, uns pratos de comida, para ter nas férias a cidadania.

51

Senhora das cobras, possuidor do pó, numa única tarde, de volta às correntes, voltando a ser máquina quando se quer ser gente, não saber ser gente quando não se precisa de ser máquina. Quinze horas, a tarde fria, os lados opostos cruzando o mesmo tamanho. De volta do almoço, fumando um cigarro deitado na cama, na esperança de alguma surpresa, a novidade que via adiante, vinha sem o novo, era um bicho sem carcaça, uma bebedeira de fumo.

52

Luzes neuróticas por todos os lados, prédios levitando em águas geladas, abóboras em estufas, o cheiro do pó pelos cabelos, uma claridade metálica nas ruas, a imensidão do mármore pelas paredes das casas, a chuva caindo, a mulher que passa, sozinha, com pernas cobertas de tesão, parece Malva, nem um carro, na esquina uma mulher, parece Malva, olha como Malva, vampira, distraída vem uma mulher, será que a vejo bem, é Malva, lá vem o carro, passa uma mulher que eu chamo como Malva, passa distraída pelo cruzamento, a rua molhada, lá vem o carro, as pernas...um grito, a voz tem escada, o tronco por completo suando pelas têmporas, o dorso dobrou na cama, olhou a parede, ainda viu uma mulher cair no chão do quarto, a boca cerrou dentes e dentes, a brisa chegando da janela aliviou o corpo, Andrejo embaçado, creditou no que havia sonhado, ela morreu para o seu cotidiano, morreu atropelada, não era mais um sonho, a realidade era uma remota esperança. Quando ela quisesse, se quisesse, mais um dia, até a morte, nunca, só cartas, quem sabe nem cartas, nenhuma palavra, nenhum conforto, morta como em sonho, trocada como no sonho, a atriz saiu de férias, pode não mais voltar.

Em pé, o banheiro, a tarde não poupava nuvens. Corpo molhado, a toalha na cintura, o cabelo em pingos, trocou de roupa, abriu a gaveta do criado, pegou o crachá, a identificação de serviço, estava bem mais moço na foto. Algodão doce na tarde das cinco horas, sem satanismo, sem budismo, a natureza morta dos acontecimentos.

Quero morar no pólo norte, nos seis meses dias, não ver a noite, sentir a desarrumação do inferno, não quero a noite para trabalhar, não quero ouvir pardais pipilando quando volto para casa, não quero o cheiro ruim no ônibus, nem vacas amarelas no banheiro, que diabo é isto, noite e dia balançam. Quando no horário de trabalho, a noite me morde as canelas, vem roer minhas unhas, afunda meus olhos, Fred Astaire dança no cinema, não fica velho, não fica pálido nem gordo, não como meus pulmões, sou azul, sou pedra que respira, sou muitos, a sós e muitos, indizível, inefável, faltaram os ésses destas últimas palavras, faltou a matemática do zero, minha raiz é negativa, gargantas e calos, masmorra, à minha volta uma cidade, os trios fios paralelos de alta tensão se encontraram no céu de alguma memória melhor do que a minha.

A tarde anoitecia, fechou a bordo da sacada o diário, olhou a rua tão antiga, tão caída, era a véspera de uma mudança, uma mudança de hábitos sólidos.

53

A soma de um infinitésimo é ainda um infinitésimo. Novamente na matemática. Andrejo pelos faróis das ruas, pela praça ereta. Em vez de balanço ou brinquedo, o que é inútil. Do chão, uns sete metros, havia uma viga metálica apoiada por pilastras, formando assim um gol. Desciam três correntes imensas da viga, espaçadas simetricamente em relação às duas pilastras. Em cada ponta das correntes, enormes bolas de concreto, toda a tensão de um peso estendida para baixo. As bolas e as correntes não se mexiam, estendidas em T do chão. Andrejo passou por debaixo, sua cabeça por poucos instantes esteve em centro, na sombra de um peso, tudo vai ao chão mesmo o que permanece no ar, a força das massas, a cabeça do ser humano colidindo com física. Não temeu que as bolas caíssem como sempre acontecia quando passava por ali, não temeu o desejo de que elas caíssem, não temeu, não era nada, apenas a homenagem de um artista. Passou por debaixo, responsável, dono de si, uma agradável sensação por sobre os ombros, estava na estação após a praça.

Após o metrô, já na superfície da rua.

O semáforo. A luz vermelha incendiaria. Na frente dos carros atravessou, todos os faróis iluminando a sua passagem. Pelo passeio, do outro lado da calçada, um vira-lata, pela casa do vira-lata, cruzaram em sentidos contrários, através das esquinas contrárias, de cada face do quarteirão, um homem e um vira-lata.

54

A noite não era amável.

De pé, parado, à frente...

O muro coberto de musgo, viscoso, úmido; encostou a mão na parede, sentiu uma frieza, quase a rejeitou, a palma da mão sobre uma moleza aveludada triste, olhou a colônia por inteiro, verde, unida, compacta, úmida, cada milímetro daquele tapete era feito de um pequenino ser vivo. O verde variante, o passeio cinza, vazio morto, áspero, o poste da esquina incidindo sua luz, que tombava pelos quatros cantos, obliquamente pelo muro, a sombra do poste se projetava sobre uma parte da superfície atapetada, os tons verdes em vário, a esquina marciana, um homem e seu espectro, sua sombra de espectro, veio a ele a luz, a calma lentamente caminhou, singelo, dobrou a esquina, o muro ao lado, a luz ao fundo, as mãos tateando, penteando os pêlos verdes, a palma e sua carícia bruta, pelo muro bruto, pela colônia macia, a colônia que não era bruta, que conseguiu de um ambiente inóspito, que conseguiu tirar de um paredão frio a água que a reveste, criar um ambiente vivo, fazer da esterilidade um alimento propício, o amor pensando sobreviver em grupo. Foram as pernas que pararam, o gelo dos olhos esverdeados, a mão enternecida criando pânico, Andrejo veio chegando, pescoço e cabeça, como se fosse espremer uma espinha no espelho, veio chegando em centímetros, o rosto e o muro se aproximavam, as temperaturas frio e quente, frente a frente, o rosto que vinha como monstro assombrar crianças, as armas deixadas em casa, sem mudar a feição, a colônia brilhando na luz do poste, nos olhos de Andrejo, um instante constante seguindo caminho, as mínimas folhinhas à frente de sua pupila solar, ele que veio, chegando numa mulher, seja ela paralítica, seja ela fria, peixe, sugou em um beijo folhinhas indefesas, estuprou famílias inteiras, bebeu verde, água, desejou como homem forte, poderoso, uma cena sexovegetativa na noite sombrosa, mal iluminada, sem guardas, sem perdão, os lábios verdes se desvencilharam, o horror do adeus pela língua, mais um passo, a distância se abriu, mais um passo, dedos difusos tocaram a grade gelada, um choque elétrico, um relâmpago negro, por reflexo retirou todo o corpo num salto para trás, a grade fria riu cínica, seu rosto de gente atropelou-se de raiva, Andrejo pode ver o prazer da maldita, suas barras balançaram com sátira, ele deu mais um passo com dentes cerrados, os olhos se levantaram, pescoço e cabeça, acordou para onde estava, uma portaria viu, viu mas não acreditou, estava à frente do que seria sua noite, se quisesse esta noite.

Não quis

Não quis

Não quis,

Sem querer

Não o fez

Quis.

55

Subiu quatro degraus, passou pelas grades sendo vaiado, já no hall de entrada notou que o porteiro não era seu conhecido. Retirou o crachá do bolso, identificou-se. À espera do elevador acendeu um cigarro. Antes do final, o automóvel de prédio chegou, a porta se abriu, os cabelos pretos brilharam no espelho, não havia ascensorista, apertou o botão, o elevador se fechou, foi descendo com leveza e segurança. A porta se abriu, o corredor escuro, não menos iluminado do que as ruas. À frente da primeira porta que passou, o barulho de máquinas de escrever martelou seu tímpano, a cada lâmpada uma porta, um tipo de sombra, um tipo de som. Deixou a gráfica para trás. Já no meio do corredor, uma luz própria interrogou-o, - ele respondeu - assim será. O corpo erguido, andando, o aço brilhava nas portas, ninguém o via chegar, nem ele tinha vista, o corredor no fim de um corredor, o amarelado das lâmpadas no branco do mármore.

Era final de madrugada quando percorreu este mesmo corredor há um mês atrás. Naquele dia a única pessoa que o viu sair ele desprezava, desconhecia, a maneira com que rebolava, insinuando-se para o chefe, lhe parecia repugnante, ela era desejável, mas repugnante. Há um mês atrás, nenhuma palavra dita, nenhum olhar, nenhum rosto fiel esteve à frente.

O relógio marcava quase quatro. A espera do elevador, subindo os andares, a superfície acima, uma ansiedade quase o fez crescer de tamanho. A ânsia imensa de respirar em uma área aberta, estar com a cidade, estar por si como um cão para suas pulgas. Um mês atrás isto foi uma espécie rara de felicidade, esse dia dobrou-se.

O relógio de parede no final do corredor marcava oito horas, ele espremia obediência, o elevador parou, a porta se abriu, se jogou num precipício, a portaria iluminada, o porteiro dormia, sentiu-se melhor, a ânsia aos poucos se acalmava, feliz céu turvo, o relógio quase perpendicular, bloqueado de nuvens, havia chovido na cidade naquela madrugada, a mão apoderou-se da maçaneta, o relógio coroou a cabeça, a porta se abriu, a estrela da memória piscou na sala escura, a mão esquerda tocou o interruptor, a mesma mão que acendeu o cigarro na rua, a luz brilhou escandalosa, o arquivo gelou seu corpo, inúmeras pastas empilhadas na mesa, envelopes amarelos esperando ser entregues, pedidos de fotografias, fotografias de tragédias, fotografias de tudo, misérias humanas, fechou a porta, não veria mais a noite, materiais antigos para serem recusados para os novos exemplares de jornais, a notícia não podia parar, de conduzir, estas velharias seriam sua companhia, a noite viva lá fora, o porteiro mais tarde dormiria, sentou-se em sua mesa, a cadeira tornou-se viva, Andrejo acendeu um cigarro, o vitrô da sala era mínimo, o velho cinzeiro em seu mesmo lugar, tudo aquilo, o teto engordurado pelo tempo, tudo era seu, soltou a fumaça vagarosamente, a lâmpada fosforescente iluminou o único céu que teria até seu corpo tentar crescer de tamanho, até seu rosto voltar a tocar uma fresta inteira de atmosfera - uma atmosfera grave.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 30/01/2017
Código do texto: T5897721
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.