O mar continua...

A cadeira se achava ali, tranqüilamente, vagamente inclinada sobre a areia branca e fofa. Sentei-me. A bengala repousei ao lado. Uma linha familiar ininterrupta sentava ali comigo para ver o mar. Eu olhava as ondas retraídas ziguezagueando pela praia. O mar me arrasta, atropela-me com sua narrativa plácida. Eu me deito e me derrubo embaixo das pálpebras. Mas não é hora de dormir. O dia é vivo e a noite embora tenha estrelas ainda não faz teto sobre mim.

É da natureza ativa que me escondo. No mar só posso ver o ser, mas não posso caminhar para dentro dele. Eu o vejo, mas o que encontro é somente apenas meus pobres devaneios.

Da cadeira ressecada, vi os troncos de madeira flutuarem até à praia. Sem sangue, o inchaço pleno, saboroso. Aquele corpo veio através da maré da manhã, e todo mundo pôde ver o calção corroído, o corpo ajaezado de nojo, todas aquelas mulheres sonharam desejos inauditos. E eu, que só, na cadeira pálida, via o que podia ser visto, as ondas chegando à praia, os barcos nascidos na raridade do cais entregando-se as águas, podia ver a igreja badalar o sino. Os coqueiros telegrafavam. As pessoas aos poucos iam passando pela galeria escatológica, vendo aquele corpo amorfo resignado na areia. Negões fortes arrastaram-no até um local seco, colocaram-no num carrinho de mão e a jornada amadureceria.

Minha cidadezinha, este vilarejo quase inexistente, não tem batismo escrito no mapa, não tem hospital, nem luz elétrica.

Num simples gesto de onda e os meus olhos migraram para beirada da praia, pude ver então, os banhistas haviam partido, as novenas já tinham começado bem lá onde um corpo inicia a morte. As areias livres das pegadas. A vida é ofício inédito de cada um e cada solidão brilha a própria origem.

O cargueiro passou para além da linha do horizonte. O que o mar explicitamente me revela e não vejo revelado, não fico sabendo, vejo e não vejo, certo mesmo é que não desisto de envelhecer. Uma bicicleta vermelha é empurrada pela praia lisa. Este moço mora ali nos confins do lado de lá. Nunca conversei com ele, mal mal cumprimentamo-nos. Esta indiferença maligna me acompanha. A praia está vazia agora. O casal já se foi, os surfistas já se foram, o bebê ainda bem que foi levado da praia, e o mar recua, recua… sua segunda voz acompanha a chuva dos coqueiros que olha para o céu despido de nuvens. Não vejo nada acontecer no horizonte. Não vejo gaivotas… Nem felicidade…

Uma hora tudo isso vai mudar, as cores irão fazer sentido e todo este azul que me amedronta e que me ensina irá ser outro azul, doce e acalentador. Mas até que esse momento chegue, devo ficar nesta raia, devo nadar contra a corrente, puxar a água que separa eu de mim mesmo. A tarefa: fazer coincidir o ponto eu com o ponto eu linha. Assim que é, assim penso e nado, nado com este medo no peito e com esta solidão nas costas. Peito e costas é o nado que costumo usar, o nado que não me desespera, isto é, já tentei fazer o craw mas foi pura canseira aonde cheguei, quase morri e não era hora de morrer ainda, me precipitei e cheguei ao fim de nada. Desde este dia em diante me cerquei de certeza e só nado peito ou costas, mais peito ainda do que costa, peito para solidão infinita, para medo máximo, para glórias contidas, costas para os problemas irreversíveis, para as dores insolúveis.

O mar se afastou, entre eu e ele uma boa quantidade de areia. A linha do horizonte intacta. Não havia sol que secasse a chuva dos coqueiros. Na praia um buraco de areia se mexia e dali mesmo saiu as tartaruguinhas, mas não consegui contá-las.

Assim quando a aurora faz sibilar o fim da noite acordo novamente e faminto volto a me sentar aqui. Hoje, particularmente, está sendo um dia muito proveitoso, um dia bonito mesmo, estou grato comigo mesmo, hoje consegui ter clareza de várias maneiras sobre vários modos e ainda vi coisas que normalmente não vejo. Tirando a morte que é clara como água suja e não me põe dúvida alguma de sua grande temperança, o resto é sempre meio duvidoso.

Eu conheço a beleza, eu vejo o mar.

No rosto redondo uma branca lua cheia de olhos ardis, na orla só posso ver certas manchas de cor, para dentro dos olhos de alguém desejaria entrar, no entanto, um convite é naturalmente necessário, o lago se firma gélido e opaco e sua beleza é apenas mirável como uma paisagem, antes que a superfície se abra dos olhos são eles apenas clarabóias intangíveis. Ainda desce mais uma tartaruga. Sabendo ou não o que será, o mar se aproxima, no peito a primeira voz habita.

O pequeno burro anda pela praia com dois jacás passeando no lombo. Dentro dos jacás: coco e cachaça, mel e melado, espetinhos vermelhos e espetinhos pardos.

A primeira voz do mar está aveludada, retumbante. A música do mar não sei cantar, me basta saber ouvir.

Estou vendo uma manada de cavalos em apenas quatro patas. Marcha e galopa sem ansiedade pela praia.

O eqüino se foi e a tarde continua.

O endereço das minhas rugas, as vejo no espelho. Pisco os olhos e desembaço a visão. Um pássaro aparece, e é urubu, sei porque não bate as asas para subir. Pinta o céu de poesia clichê.

Tá tudo ficando mais perto de mim! O mar, as ondas, o choro, a noite. Não posso ver a noite, posso pressenti-la no peito.

Desde cedo papai me trazia no mar, me fazia ver as redes, a jangada, a praia benzida de lua, todas as noites que nasciam estreladas papai me levava para ver o mar escuro, apontava para as estrelas e dizia que o número de manchas que cada um visse na lua seria o número de amores que teria na vida. Desde cedo conheci o gosto salgado da água, a secura da areia, e se já não bastasse amar, também aprendi a olhar.

As imagens parecem sempre existirem intactas, completas em si mesmas. Meu sertão é pequeno — uma pequena imagem que orno — assim mesmo me perco correndo atrás de palavras inocentes, me perco nas sombras das formigas, meu sertão é pequeno — sem dúvida, não poderia ser diferente — mas ainda é sertão, isto sim me surpreende.

Ora vezes paraíso, ora sempre sertão.

Eu me perco de vista, mas não perco o mar.

Viver o endereço de todas as rugas, viver a corredeira sem fim. Ventania, feijão, raio e assombração não me botavam medo. Estou sentado e o sol lâmina amarelo invade cada sala do meu rosto.

Eu preciso de tempo e é o que menos possuo - tempo.

As nuvens montam uma pequena peça teatral, assisto, assim como o show de andorinhas, as gaivotas, as ondas e o sol.

Comecei a caminhar pela beira da praia com a lesma lerda dos pés, havia deixado os óculos no bolso, tropeçava nas sombras não muito distantes de mim. Mas isso foi ontem, lembrar-me do tempo só me faz tonteira. O sol continua firme e luminoso. Eu uso uma bengala para me dar estabilidade, não posso acelerar muito nas curvas e nas esquinas movimentadas tenho medo de cair, fraturar algum osso e ficar pelo resto da vida na cama refletindo alguma enfermeira chata e gorda, ou pior ficar num asilo de velhos. Se isso me acontecesse, mudaria de cidade, aqui não tem nada disto, os velhos daqui são cargos de família. Seria uma experiência nova, jamais morei em outro lugar. Já vivi num alojamento para rapazes, na época do exército dividia o quarto com outras cem pessoas. Vivia sem intimidade até para comigo mesmo. Ficou para trás, ainda bem. Sentado na cadeira, é assim que estou, sentado na cadeira. Um moleque me trouxe aqui de triciclo motorizado, ele me viu cair, foi um tombinho sem importância, a areia me atraiçoou, não pude ver outra coisa senão o rosto do chão. Não fiquei arranhado e sim assustado. Ele vinha passando e recolheu a cena, parou e me ajudou a levantar, aí sim me ofereceu a carona, não exitei, aproveitei a oportunidade para embaraçar os poucos fios de cabelo que ainda tenho. O gosto de ser veloz já havia esquecido, é bom, é bom ser ágil, fiquei quietinho como poste. Quando então me sentei na cadeira senti um pouco de fadiga, deve ser por causa do coração, havia acelerado nos minutos que antecederam meu pouso na frente do mar. Em pouco tempo tudo ficou peculiar.

Eu não dou muito valor a pacacidade da vida. Acostumei-me ao torvelinho que sempre me acompanha, desde da hora que acordo até o chegar satírico do sono. Nas horas de tréguas procuro chorar o mais copiosamente possível e assim me sinto imaculado, embora saiba que não exista sabão em pó capaz de lavar a alma. Os deuses não são lavadeiras. A paz que me chega se esvai rapidamente.

Eu passo o tempo engendrando palavras. Um barco está no mar, faz muito tempo que Brisa foi para a fogueira. Era dia de São João, nesta época, ainda meus filhos moravam comigo. Viram-na estatelada na areia enquanto o fogo, levantando as lágrimas do meu rosto, me fazia esquecer da dor. Bebi areia para amanhecer. Acordei um homem mais triste. Sem ela, virei pescador qualquer, isso quase me matou; fosse não, minha mulher; teria me entregado ininterruptamente à cachaça.

A tarde declina decididamente. Começo então a pensar na noite que tanto me amedronta. No brilho do sol me sinto imortal. O mar ficou silencioso — coisa rara — quando acontece, começo a rezar. Uma prece falsa quero dizer. Amedronta-me a matemática das coisas, tenho pavor das cores na retina. O rosto de cada dia esvanece na escadaria trêmula. Descobri tardiamente que o tempo não nasce com a minha vida.

Um homem e uma mulher entram no mar. De mãos dadas, sorrisos recíprocos, olhares transitórios e belos. Estou vendo o vento acariciá-los, e o cabelo dela voa, o dele mal toca as orelhas. As bocas fazem segredos que não consigo decifrar. O mar pode estar estranho assim como estou afastado de idéias. Olho para eles com inveja. O meu egoísmo passa fome. Eu me levanto, logo em seguida me deixo cair na cadeira. Pensei em andar e tocar o mar e ver de mais perto os dois na alegria das ondas que há muito tempo deixei de me relacionar. A praia é tão pequena para aqueles dois! Atrapalharia a beleza. Eu tenho tudo anotado no coração! O mar encaminha delicadamente os dois alegres para areia da praia. Não pensava que um casal de pessoas gordas são felizes. Engano estético, engano dos sentidos. O vento passeava, constante alegria pela praia.

Quando topei com um caderno pela primeira vez, já era menino formado, delineado, a pele bronzeada, o cabelo apertado e irritadiço. Encontrei tantas linhas quantas ondas, os meus olhos se embaralharam pelas pautas. Tive medo, minhas mãos tremeram e o caderno caiu. Tia Maria foi tão amável comigo, me ajudou lá mesmo no chão, trouxe de volta a praia a minha carteira e com jeito fez com que minhas mãos se acostumassem a olhar as linhas sem se tontear. Aos poucos fui trazendo jeito aos meus dedos e após um mês já conseguia desenhar letras na praia. Comecei o nome, depois os peixes, a casa. Ao fim do ano já escorria alegremente o punho pela praia vazia e não temia tubarões ou tempestades, graças a Tia Maria me tornei um menino alfabetizado.

Não consigo deitar no travesseiro sem ouvir as ondas, nem percorrer a memória sem escutar o coração. Todos os dias o sino da igreja me convoca a partir. Minha vida é aqui, na vidraça, os dedos transeuntes do bolo de laranja com cobertura de chocolate, mamãe nunca fez, nem minha vó, este bolo é inalcançável.

Os tornados d’alma que avisto me embaçam a visão. O escuro me amedronta igualmente criança. Eu não vou viver para sempre, mas pretendia.

O café nasceu do lado de um amigo.

Uma árvore cresce e cria sombra para um magro cachorro.

A senhora reconta a história.

A barca vai passar; irá visitar uma ilha.

Eu estou com vontade de chorar

de chorar e de rir de mim mesmo

e ao mesmo tempo ter infintos sonhos,

o preto-e-o-branco das cores irão realizar o assalto.

Vou dormir até o sol descansar.

No mar não posso ver janelas. Um navio estende a linha do horizonte. Diamantes e solidão. Não sei bem dizer quem é mais duro ou valioso. Se é o encanto reluzente e fino de um grande diamante, plasmado pela riqueza da beleza, na linha efêmera da íris se vê sua luz, apropriando a alma, reconduzindo o coração ao redil do peito ou se é a solidão, máscara negra, linfas milhares salientes dançando na bela noite escura, repleta e sem lua, somente estrelas incomunicáveis e surdas, solidão densa e desmesurada.

No fantasma da palavra, a sombra da palavra. No tardio encanto da palavra, a fagulha seca da palavra. Entre as pernas da palavra, ataraxia da palavra.

Começarei tudo de novo e novamente, mas sobre o futuro, não tenho camisa guardada e nem manga comprida.

Aqui na quilha do barco não podia vê-lo chorar, sabia que estava mirando o mar há muito tempo, oras a fio, desde que minha mãe foi extinta por suas agruras. A tarefa mais concreta dele era ver o hipnótico. Ainda não podia abraçá-lo, mas já o pressentia, com seus olhos manchados de sol, sentia em mim o antes da fala, o mesmo dissabor, a mesma tessitura sobre a pele, já podia encontrar no supercílio dele o sangue de nossa discórdia. Do meu barco conseguia viver, conseguia produzir minhas necessidades mais amargas, mesmo que para isso ficasse frouxo. De certo modo não sabia por que estava voltando para aquela terra tão deserta, mas toda partida impõe o cruzeiro de retorno. Agora a lâmpada da tarde se apaga lentamente, tudo que vejo é um azul assombrado por nuvens e pelo rosa, o vento carisma meu, está sereno e fresco, o sol apnéia aflita de quase todos os forasteiros empalidecia gentilmente. Marília deslizava corajosamente sobre as marolas. A última procela que havíamos enfrentado colocou em xeque nossa amizade, depois de tantos anos juntos, só agora podia dizer que ela confiava em mim, e eu por minha vez descansei sobre ela mesma tudo que ainda precisava carregar aqui comigo, este coração não se sentia mais sozinho.

Eu tenho medo desses peixes todos que abstraio da água, medo da calmaria, medo de ser ameaçado pelo sol e pela chuva, medo de minhas mãos, ah! Como tenho medo de minhas mãos, prosaicas e doces, ferruginosas, estes calos escondem tantas grosserias, artimanhas e destrezas arquitetas, tenho medo mas sei bem como me sustentar com ele. Eu mato com as mãos, as mesmas que posteriormente dimanam o carinho doce no rosto de alguém, as mesmas que lançam o arpão em chamas.

As paralelas do coração são curvas. Aprendi a conviver com isso, muito tempo sofri para distinguir o óbvio do simples, o necessário da virtude, a maldade das minhas mãos. O caminhar das coisas tem seu tempo próprio de eclosão. Gestar é conceber no interior. Aqui no oceano o que está fora é fora de alcance, é terra. Ou só oceano ou terra à vista. Terra à vista, ainda não posso dizer, mas estou chegando ao legado percorrido, estou perto de ver se ainda existe, se aqueles olhos possuem a mesma frieza de antes. Será que a cicatriz ainda permanece inalterada? Eu tenho diversas lembranças, no entanto, o equívoco perpassa a vida inteira acontecendo. Hasteio a vela mais generosamente possível, Marília me agradece zunindo plangentemente pelo mar. Eu só tenho o que olhar, no mar se olha muito, pensa-se muito, faz-se somente o que é pedido, nem mais e nem menos, somente o necessário pode me guiar corretamente entre retidão e abuso. Todo destino é faltoso, por isso mesmo completo. Receio que o meu passado seja ininterrupto. Do barco vejo no céu a pesca irresponsável das gaivotas. Mergulham ferozmente em busca do peixe, sem medir a conseqüência do risco. A natureza possui certas falhas perdoáveis. Houve um dia, não faz muito tempo atrás (a memória larga em meus braços certas ilusões, e eu as carrego como uma mãe faz com seu bebê), houve uma vez que fui ameaçado de morte, certo fulano despiu uma faca contra mim, por arbítrio da sorte consegui esquivar-me, depois disso nunca mais achei a bebida e o romance como mero divertimento.

Hoje estou letrado em duas matérias: pai e mar. O primeiro o conheci por dentro, repleto de esquisitice e condicionado pelo prosaico medo. O outro só o encontro por fora, bravo ou sorridente, sempre chefe, do início ao fim ordena sem nenhuma complacência. Não aprendo mais com meu pai, me recordo apenas de coisas boas, nem sempre boas, me lembro da voz estentórea ressoando pela casa, pelo quintal a procura de mim e eu me escondia numa das inúmeras goiabeiras do quintal ou no grandioso abacateiro na porta da ruela empoeirada. Mamãe me protegia, mas nem tudo são asas, e no vasto mundo todo menino tem de enfrentar os pais. Antes de virar adulto perdi na tragédia meus dois bravos irmãos. Minha irmã morreu de meningite e meu irmão o mar encarregou de afogá-lo com ou sem muita doçura. Esses dois anos sucessivos foram os piores da vida. Toda atenção bruta encostou nos meus ombros. Palavras proibidas nasceram. A alegria viajou. Minha avó, graças a deus! Protegia o paraíso. Eu ia mascando minhas abelhas sem poder chorar. O tempo disparou a morte de mamãe. Fui morar com minha avó, desde então, a prisão paterna somente me visitava, acompanhado da cachaça pelo lado de lá e da raiva do lado de cá, nós dois entre duelos de pupilas cada um sonhava o que desejava do outro. Sempre sonhei com brincadeiras e pequenas obras, bolas e peixes, ele por sua vez desejava disciplina, respeito e afeto. Trocamos os sonhos e os desejos por nós mesmos. Ao fim de tudo um nada nos braços de cada um. As coisas pioraram até a fatídica briga.

Mar, terra e saudade, o vento já me leva. Viajar pelo mundo não me fez grande. Sempre que posso sou uma grande e inútil tempestade indo de encontro ao chão mais firme e escuro, eu escorro, debato nas rochas e nas falésias, decanto nas poças perdidas, sozinhas e qualquer, penetro nas latas, desço os bueiros, não encontro nenhum sossego sujo, nem quem me açoite, tudo para mim é meramente queda. Não posso me unir a nada que me abraça. Eu me formo e desapareço. É a única transformação que me permito liquefazer.

As estrelas me guiam, mesmo quando nada em mim está sozinho.

Eu sou apenas um filho de um nativo ignorante que muito embora soubesse pescar jamais conseguiu para mim o mar.

O corpo (o que dentro de mim clama e queima é o corpo, o qual é altamente inflamável) não é um picadeiro, nem a mente é uma igreja e o café, não é bebida de todas as pessoas, ainda mais se for sem açúcar. Começo a plantar receio aonde quer que mire o redondo rosto, seja este oceano maravilhoso, seja para a Marília ou para as nuvens, este céu que agora está com um azul quase branco, quase falso.

O mar repleto; amálgama de delicadeza e força; esverdeava. O zênite já se aproximava. Encosto o queixo no topo do leme e sem sorrir paro de piscar momentaneamente. Começo então a conversar.

A cadeira pálida e descascada. Cresci na companhia sol e mar. As redes e os barcos foram os brinquedos da profissão, agora o é das coisas são estes olhos marejados do apelo à dúvida. Os óculos escuros me protegem da danosa claridade não da sozinhez. Alguém passa distraidamente pela praia, vejo um homem, um cão, uma mulher, três crianças e as areias.

Ontem, enquanto dava de beber para o coqueiro de casa pensava na elasticidade da memória, quantos são os fotogramas interrompidos, quanto tempo aqui morto, quantas cores céu, quantos rosas viver. A lua do barco há muito tempo perdi. O silêncio que me acompanha é sempre dicionário. Começo a violar a promessa que me fiz. Eu sei que toda promessa é um projeto irrealizável. Fiz um buraco na parede de casa, lá guardo meus trocados, olho as fotos das revistas velhas que tenho, olho as fotos de casa, de meu pai, olho as fotos dos jornais velhos e descubro que o tempo é pura melancolia, mas triste mesmo é a timidez do amor. Chega de pensar nestas coisas que ainda não apareceu noite. O pensamento enxerga a nesga. E eu quase não sei. De todas as trajetórias que tive a sorte de viver a que mais me encanta é a do mar. O mar arredonda a margem dos meus olhos, e as lágrimas descem de tempos em tempos para o peito, o redil peito escuta o coração e não sei olhar com delicadeza para o coração.

A terra natal se aproxima e eu me apaixono a cada dia por certas estranhezas. Olho do hospital, pela janela do barco, olho e de qualquer janela sempre que posso vejo o mar. Eu me lembro acordar cedo para ver o sol nascer, a primeira vez que o vi nascer azul perto de mim, guardei a morte de papai na retina e caminhei pela praia sem descobrir o medo que sentia, os pés anfitriões motores navegaram nas serenas areias. Assinei as sandálias com que percorreria toda a vida. Uma vida só não basta. É preciso muitas vidas. Comecei a andar de manhã na praia. Estas manhãs viraram montanhas. Placidamente enraizadas e ainda assim não as encontro.

Marília foi quem primeiro apontou a terra, lugar natal, assim pude levantar o mar enchendo os olhos de azul.

Aportei de manhã no cais pobre da vila que fingia querer desaparecer do mapa, mas a população de poucas pessoas, quase todas elas rendeiras ou pescadores, não deixavam a vila concretizar o desencanto. Desaparecer é habitar-se de ausência, o como das coisas levam anos, mesmo uma vida, que em seu breve intercâmbio de luz, cerrar os pulmões é coisa de muitos dias e os dias em sua aparência de horas escondem eternidade. O tempo é obreiro.

Pus o pé em terra. Ele mal me olhou, como estava, continuou a ficar, de pé costurava a rede ao lado do barco, o sol viril incendiava intensamente seu olhar. Ele me viu, não disse palavra, nem fingiu me desconhecer, pois não era para ele, filho, desde que parti o enterro se fez naturalmente.

Lentamente me aproximei e ao chegar bem próximo disse a palavra pai, quisera não ter feito isso, mas fiz, então fiquei sabendo que não estava órfão somente de mãe.

Ele liberou do pulmão um catarro denso que a areia depressa endureceu. Olhou para mim e na sua completa irresponsabilidade bruta refez o filho morrer.

No cemitério está a cruz desta morte. Voltou os olhos grandes para a rede.

Alguns anos mais tarde, ao lado do túmulo dele encontrei a lápide. O nome e a cruz de madeira mal feita. Ao ódio enterrado prescrevi uma pequena reza. Deixei ali o olhar. Além do coveiro e do padre, não reconheci nenhum pingo de chuva. Ninguém perguntou, mas eu sabia que era um morto ao lado de um outro. O fim do mundo havia sido anunciado e a lápide existia para testemunhar e antecipar a minha morte.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 27/01/2017
Código do texto: T5894858
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