O Narquita e o semáforo

O Narquita era um hervalense nato, mas tinha mais jeito de retirante nordestino que do gaúcho típico da região. O Narquita sofria de insônia e para driblar o despertar prematuro costumava debulhar milho catete sentado ao lado de um fogão de chapa, o que fazia tomando mate num porongo já escuro pela graxa de ovelha. Outras vezes, cutucado pela falta de sono, ele atravessa toda a cidade para tomar mate com seu amigo de teima, um tal de Filolau, que dele pouco sei, a não ser que fazia lingüiça de carne de javali e vendia na vizinhança.

O dia começava a clarear e lá se ia o Narquita em direção ao amigo Filolau. Absorto, mas com poucos pensamentos, caminhava sem olhar pra frente, pois grande parte de sua atenção era despendida na tentativa de ascender um cigarro “por fazer” e cujo intento não era conseguido pelo fato da ponta do mesmo ter se transformado em carvão. Mas, como ele conhecia cada mosaico solto nas calçadas, o seu deslocamento era tranqüilo e sereno. De súbito uma surpresa: um barulho diferente invadiu a sua arejada cabeça, não tinha nada a ver nem com automóvel, nem com pata de cavalo. A curiosidade o fez caminhar na direção do barulho. À medida que o ruído ficava mais intenso ele divagava em hipóteses, pois a cidade sediava o 6º. Rodeio Internacional e, assim, algumas coisas fora da rotina eram possíveis de acontecer.

Havia um cruzamento de ruas. Era ali. Estava a alguns passos da máquina que trepidava e furava uma base de concreto. O Narquita postou-se de braços cruzados a espera de alguém que pudesse responder as perguntas que esquentavam o seu cérebro. Ao mesmo tempo em que a obra avançava a passos largos, as pessoas que por ali passam paravam e indagam: “afinal que obra está saindo aí?” O Narquita tomou peito da situação e respondeu:

– eu não sei, como também nunca vi uma máquina trepidar e fazer tanto barulho como essa aí.

Nisto encosta um caminhão e descarrega uma estrutura em chapa de aço com um design meio estranho, com ares arquitetônicos futurísticos, o que sem dúvidas, serviu para intrigar ainda mais os curiosos e transeuntes.

O sol já estava alto e o pessoal não arredava pé do tumultuado local. As especulações continuavam, quando um garoto sem titubear arriscou: “é um semáforo”. O Narquita que nunca tinha ouvido falar de tal coisa, não se conteve e falou:

– o que?

– semáforo, sinaleira, farol, como os paulistas chamam.

– sim, mas aqui no Herval vai servir pra que?

– ora, Narquita – respondeu o garoto – para controlar o fluxo de automóveis.

– mas controlar o que, se aqui no Herval temos em torno uma centena de automóveis sendo que a maior parte deles fica nas garages.

A celeuma estava criada. O disque-disque fervilhava. As conversas tomaram conta da cidade. O evento de instalação do tal semáforo passou a ser o assunto principal na cidade. O Rodeio Internacional diante do futurístico controlador de tráfego tomou ares de coadjuvante. Nos bares, nas mercearias, nos açougues e mini-mercados só se falava da obra do 1º. semáforo da cidade. Mas a coisa não parou aí. As especulações ultrapassaram o campo funcional do inusitado equipamento, as pessoas entraram também na questão financeira do investimento, gerando especulações do tipo: “tão dizendo que o dinheiro para comprar o tal semáforo é resultado de sobra de campanha de um figurão lá de Brasília”. Outros argumentavam que a obra só teria sido possível em função de uma “grana” vinda do Estado, o que estaria atrelado a fins eleitoreiros. O Narquita já incomodado com tanta baboseira arriscou:

– sim, ma não pode ser dinheiro do Herval?

– dinheiro do Herval? – comentou o Filolau, que nessas alturas já estava ao lado do Narquita de mate na mão.

Enquanto isso o tempo avançava e já marcava meio dia, hora do almoço. Lentamente o local do tão badalado evento fora abandonado por todos.

No dia seguinte, ávido de colher o sentimento dos hervalenses fui até o local onde estava o semáforo, sendo que o mesmo já estava funcionando em fase de testes. Sem qualquer surpresa, lá estava o Narquita e o Filolau. Aproximei-me do meu amigo e disparei:

– e aí Narquita, a “coisa” funciona?

– se funciona ou não eu não sei, só sei que quando a “coisa” fica vermelha o carro que chega perto, pára.

Continuei, pois o Narquita podia não ser letrado, mas tinha uma percepção tão aguçada que substituia, em muitos casos, a lógica racional pela intuição.

– Sim, mas qual é o tamanho da fila que está se formando quando o farol fica vermelho?

– que fila, até agora, quando o farol fecha, fica só um carro parado.

E era isso mesmo. Acompanhei por alguns minutos o monótono tráfego de veículos que por ali passavam. A cena era hilária: como não se formavam filas, o motorista sentia-se estranho tendo que esperar sozinho até que abrisse o sinal. E, para impacientar ainda mais os motoristas, o semáforo era de três tempos, coisa de grandes metrópoles.

Tive vontade de abordar a questão do semáforo do ponto de vista estatístico, avaliando o nível de demanda, considerando o número de automóveis da cidade, bem como examinar a probabilidade de dois carros chegarem ao mesmo tempo no cruzamento... Mas desisti, preferi aceitar o mate do Filolau e o bom “papo” do amigo Narquita.