O Velho Pianista

Quando o jovem Augusto entrou, a madeira do palco estava polida e brilhosa. Seus passos eram quase tão tímidos quanto a sua postura, mas ainda assim, enfrentou a reverberação dos aplausos protocolares, e alcançou o piano. Após fazer a reverência cortês, sentou-se na banqueta, respirou fundo, e os dedos tocaram o marfim das teclas. O som tomou o seu caminho pela excelente acústica do teatro, tão lindo e tão harmônico, que rendeu-lhe o título de campeão.

O senhor Augusto se lembrava daquele dia frequentemente; e especialmente hoje, quando o dia soou-lhe triste após o telefonema, a necessidade de se expressar atravessou o tempo, o espaço, e a memória falha de um velho. Ali, sentado no sofá da sala, encarou os dedos grossos, nodosos, e negros, de quem não teve tanta sorte na vida.

Foi aos 9 anos que ouviu um piano pela primeira vez, enquanto andava de volta para casa. O litro de leite na mão, que anunciava a urgência de ir embora, não foi suficiente para dar-lhe juízo. Entrou no caminho que dava para uma garagem, tentando seguir o som, e foi encontrar a sua origem numa porta aberta, na parede de uma casa simples. A música de Edvard Grieg, 'In the Hall of the Mountain King', pareceu-lhe tão divertida que perdeu a noção do tempo, encarando aquele instrumento lustroso, e os dedos ágeis do pianista. Entretanto, o seu entusiasmo não foi inicialmente compartilhado pela mãe furiosa, que aguardava com a farinha de trigo, os ovos e os outros ingredientes do bolo; mas foi depois de uma semana fiel ao desejo, e de teimosia corajosa, que a mãe cedeu. Conseguindo um desconto generoso, e sob a promessa de dedicação, o garoto iniciou as suas aulas.

Depois de 7 anos de uma obsessão apaixonada, Augusto enfrentou a vergonha, o medo e o preconceito, para enfim se apresentar num pequeno concurso, do qual para sua felicidade, saiu vencedor. Neste momento, o seu futuro pareceu-lhe tão claro como um soco de verdade. No entanto, foi um ano e poucos meses depois que o cursinho começou a ter problemas mais sérios para fechar as contas; cambaleou, resistiu por mais algumas semanas, mas, enfim fechou as portas. Augusto viu-se sem saída, e depois do professor se mudar, convenceu a si mesmo de que iria dar um jeito. Decidiu trabalhar a fim de juntar dinheiro e comprar um piano, ou talvez ir estudar em outra cidade, não tinha tanta certeza; a não ser de que precisava de grana. Mas, a mãe adoeceu, morreu, e deixou ao garoto apenas os próprios sonhos, e as contas para pagar.

Augusto trabalhou como assistente de mecânico, transportando compras de supermercado, mas foi como guardador de carro e flanelinha que estacionou. Conheceu a esposa, teve o primeiro filho, e sua vida seguiu o rumo de um pai de família do subúrbio da cidade. Não foi tão ruim quanto pensava que seria, aos poucos a fábula do pianista foi esmaecendo, e pareceu tão distante no horizonte, que passou a confundi-la com miragem. Amou a esposa e o casal de filhos, e dessa forma foi feliz.

Agora, sentado naquele sofá, aquelas lembranças eram inevitáveis; mas tudo que sentia era saudade da esposa, e dos filhos quando eram crianças; quando podia protegê-los sob o seu teto, e agradá-los com as balinhas de coco que comprava na rodoviária. Tudo que queria era poder tocar para eles e dizer pela harmonia da música o quanto os amava.

Depois da morte da esposa e a saída dos filhos de casa, pegou-se desejando o piano novamente, não apenas para passar o tempo que tinha de sobra, mas para espantar os fantasmas, enquanto tocava para eles. O filho, Agenor, deu-lhe de presente um teclado, mas aos poucos, a prática solitária foi deprimindo-o mais e mais, até que uma capa e um guarda-roupa antigo engolissem o instrumento.

Apesar disso, hoje desejou pressionar aquelas teclas bicolores. Foi pela manhã, logo após tomar o café, que o telefone tocou pela primeira vez; chegou a alcança-lo a tempo, mas se atrapalhou com os botões e teve que esperar pela segunda chamada. Na voz calma da mulher de seu filho, a experiência de Seu Augusto percebeu a ameaça, e a confirmação da suspeita veio tão súbita, afiada e íngreme, que teve de desligar e sentar-se. Agenor havia se acidentado a caminho do trabalho e encontrava-se internado. A nora disse-lhe que ele estava bem, mas precisava vê-lo com os próprios olhos. Levantou-se do sofá, e seguiu em direção à porta.

Pelo caminho, as juntas doíam-lhe menos do que a notícia. Passou pelo açougue de seu Amaro, que sempre o cumprimentava e oferecia toucinho, e pela Padaria Silva onde sempre comprava pão, e logo após dobrar a esquina, chegou ao ponto de ônibus; preferia que a nora permanecesse com o filho ao invés de vir busca-lo, e gostava de ver a cidade pela janela trêmula e o banco alto. Quando chegou ao hospital, as pernas estavam bambas, mas sabia que não era pelo cansaço. Ficou esperando num banco desconfortável por alguns minutos até que ela chegasse.

– Oi, Seu Augusto, foi tudo bem pelo caminho? – Disse Carla tentando não ir direto ao assunto.

– Sim, ta tudo bem, e como ele está? Posso ver? – Disse educadamente; mas o rosto da nora, pareceu desapontado antes de responder.

– Então, Seu Augusto – Carla se esforçava para encontrar as palavras. – O acidente foi um pouco mais sério do que eu quis te dizer pelo telefone. – Falou lentamente. – Aconteceu ontem à noite quando ele ia para casa, voltando do trabalho. – Disse sem mais conseguir esconder a tristeza. O velho desviou os olhos. – Ele bateu na mureta da ciclovia, teve uma pancada na cabeça, quebrou a clavícula e quatro costelas com o impacto. – As lágrimas desceram. – Ele está desacordado desde a cirurgia. Está em recuperação na UTI. Eu ainda não pude visita-lo, e os médicos só vão liberar amanhã. – Olhava para as mãos, enquanto estalava as unhas entre os polegares. – Eu não avisei ao Senhor porque só soube depois que já estava vindo.

Augusto ainda olhava o chão, com os olhos cheios de lágrima, e respondeu:

– Ta tudo bem, mas como ele está? Eu fico aqui esperando.

Carla segurou a sua mão, entendendo a dor e a divagação.

– Ele vai ficar bem.

A caminho da Rodoviária, o burburinho da cidade, a gritaria dos vendedores ambulantes, e até as buzinas dos carros foram abafados pelos pensamentos de Augusto. Para ele, todo aquele sentimento não era natural, não parecia certo que um pai visse um filho morrer. Mas, tentou afastar a insegurança, e torceu para vê-lo bem no dia seguinte.

Quando chegou, o cheiro dos pasteis gordurosos lembrou-lhe da época que fazia aquele percurso todos os dias, tendo que aguardar o ônibus em bancos metálicos desconfortáveis, tendo que lidar com alguns bêbados inconvenientes, e por vezes, tendo que praguejar para um rosto desconhecido quando descobria o chiclete colado na calça.

Entre uma fileira de bancos e encostado na parede, espantou-se ao reconhecer aquele corpo negro como o seu, com suas curvas suaves, e o aspecto solene. Um piano encontrava-se instalado bem na sua frente, e uma plaquinha anunciava o motivo:

Projeto Cultural Piano para Todos!

A imagem projetada em seu cérebro pareceu-lhe surreal. "Será possível, meu deus?" Aproximou-se daquele instrumento e viu o próprio reflexo na superfície ligeiramente arranhada. Por generosos segundos, questionou a natureza daquela coincidência, mas após um pouco de hesitação, sentou-se na banqueta.

As pessoas não deram muita importância àquele velho curioso, e as que olhavam desdenhavam ou sorriam aguardando o inicio do embaraço.

Quando os dedos de Seu Augusto tocaram as teclas, sem pressioná-las, uma música passou por sua cabeça, e decidiu organizar as notas em sua mente. Posicionou as mãos no devido local, e iniciou a sua catarse. Os dedos grossos estavam rígidos, e a harmonia saiu sutilmente fora do compasso, mas ele continuou, debruçando-se e enfrentando a traição de uma mão descoordenada, e da dureza da vida. As notas ternas atiçaram o seu coração de tal modo, que suas batidas e os acordes uivavam em uníssono. Seus pelos rarefeitos pela idade eriçavam-se, e as lágrimas limpavam-lhe os olhos e a alma. As falhas aqui e ali desapareceram quando a memória afetiva, e muscular, combinaram-se na produção da mais bela música que já ouviu. A rodoviária caiu em silencio enquanto a melodia arejava o lugar. Alguns, tocados pela sensível canção, fechavam os olhos, enquanto outros gravavam no celular. Uma mulher foi a primeira a colocar uma moeda sobre a madeira escura, seguida por outros quatro ou cinco; mas a atenção do pianista estava em seu parceiro musical. O seu corpo esqueceu-se da dor física e sua respiração soprava ao ritmo do seu tênue balanço. Ao alcançar as últimas notas, as teclas centrais exibiam as gotas de sua emoção, mas seus dedos estavam mais firmes do que nunca. Finalizou seu lamento com o mais profundo dos suspiros, e tremulou as pálpebras, permitindo que uma última lágrima aquecesse a sua face.

Ao levantar, desafiando a fraqueza das pernas, virou-se para sair enquanto vários aplaudiam, mas seus olhos viraram para a garotinha que vinha entregar-lhe uma moeda; neste momento percebeu a meia dúzia de outras que estavam sobre o piano, pegou cada uma delas na mão, virou-se para a menina e disse, estendendo a mão:

– Compre o quanto puder das balinhas de coco. – Disse entregando as moedas, e após receber o sorriso inocente da criança, afagou a sua cabeça, e se virou para ir embora.