A Biblioteca dos meus avós

Percorrer as livrarias da cidade e perder-me entre as suas estantes infinitas, explorando demoradamente cada nova descoberta, degustando a obra de autores clássicos ou apenas deixando-me capturar pela narrativa de um novo escritor é, ainda hoje, um dos meus programas preferidos. Aos livros, sempre pedi conselhos. Neles também busquei consolo, em meus dias de tristeza. Mas a eles e a ela, a livraria, recorria, sobretudo, nos momentos mais felizes da minha vida. A procura persistente de um livro há muito desejado e o seu encontro provocam-me, ainda, uma satisfação difícil de descrever. Talvez esse seja o único traço de continuidade entre a criança que eu fui e a mulher em que me tornei. Nas minhas memórias tão fragmentadas da infância, os livros, as histórias e a escrita estão quase sempre presentes. Na escola de freiras em que estudei, minhas peraltices frequentes eram castigadas com o dispêndio de tardes inteiras nas dependências de uma imensa biblioteca: estantes e mais estantes de madeira escura, esculpidas com motivos religiosos, adornadas com uma quantidade imensurável de títulos envelhecidos, de odor inebriante. Passava horas perdida entre os corredores daquele espaço labiríntico e misterioso, mas ao mesmo tempo tão encantador. Naquela biblioteca, sem nunca ter podido tocar em um livro sequer, tornei-me leitora pela primeira vez. A aparência de austeridade daquele lugar desconhecido por nós, abarrotado de volumes e de coleções inacessíveis e onde se exige absoluto silêncio talvez provocasse em outras crianças a sensação de punição. Para mim, no entanto, aquela estratégia pedagógica tinha pouca eficácia: sentia-me recompensada pelas minhas ações desviantes. Aquele espaço me lembrava a biblioteca dos meus avós.

Nas minhas memórias, minha avó era uma senhora velhinha, calada, discreta, de pele muito branca, retorcida como um papel amassado. Tinha uma expressão de seriedade, mas deixava escapar alguns sorrisos quando se distraía. Sua casa tinha cheiro de arroz doce. Passava muitas horas incomunicável, óculos à frente do nariz, entregue à leitura dos inúmeros romances que compunham o seu acervo. Fazia sempre pequenas observações a lápis, ou deixava papeizinhos entre as suas páginas. Em alguns raros momentos, interagia conosco. Ensinou-nos a jogar xadrez, e às vezes nos contava histórias de dormir nada convencionais.

Aos seis anos de idade, eu brandia aos quatro ventos que sabia os mais ínfimos detalhes da Revolução Francesa. Citava os nomes de Maria Antonieta e de Robbespierre como prova irrefutável das minhas proezas infantis. Não sabia a diferença entre a História e a literatura, ou entre os livros de criança e os de adulto, mas de algum modo a posse imaginária de todo aquele conhecimento me fazia sentir importante.

Às crianças, como de costume, era vedada a entrada em sua biblioteca. Aquelas portas sempre fechadas, de cor amarelada e de onde ela saía portando às mãos um número de títulos cada vez maior me instigavam a curiosidade. Imaginava-me ali dentro, analisando detidamente aqueles livros, com ar de quem a tudo compreende, em atitude semelhante à dela própria. Burlar aquela proibição foi se tornando, aos poucos, o meu maior objetivo de vida. Um dia, percebi-a completamente absorvida pela leitura de um novo exemplar. Beneficiei-me de seu momento de distração e adentrei, convicta, aquele espaço que povoava os meus sonhos de tanto mistério. Passei horas ali dentro, aproveitando a conta-gotas aquela oportunidade, surgida de forma um tanto inesperada. Manuseava os volumes cuidadosamente dispostos em prateleiras de mogno como se deles eu também pudesse extrair as minhas próprias reflexões. Naquelas estantes, pesados tomos de medicina em língua estrangeira dividiam espaço com a literatura policial, os clássicos franceses, a história e a filosofia contemporânea. Não conhecia mais que uma dezena de autores, mas ainda assim aquele ambiente me despertou um profundo fascínio. Aqueles livros encadernados à mão, de capas de couro, títulos dourados e páginas quebradiças me pareciam tão preciosos quanto um pacote de jujubas. Ali, em meio aos livros dos meus avós, senti-me leitora novamente.

- Guarda com cuidado as coleções da vovó, mãe, porque um dia elas me pertencerão. Cada livro que você tem aqui é uma verdadeira relíquia.

Mais de vinte anos depois, continuo a passar os meus dias na pura e simples contemplação ao que sobrou de sua biblioteca: Drummond, Victor Hugo, Dante, Dumas, Orwell. Tolstoi e Dostoievski. Simone de Beauvoir. Penso no quanto observar os resquícios de sua extensa coleção pode fazer-me compreender melhor quem foi a minha avó. Senhora envelhecida, taciturna, leitora voraz. Mulher e estudante de medicina, em plenos anos 1940. Lia Simone de Beauvoir. Compreendia a dureza das relações de poder e do patriarcado, que a relegavam a um lugar de menos destaque entre os médicos, apesar de sua notável inteligência. Devo a ela o meu profundo agradecimento, e uma imensa admiração. Que os seus livros e a sua história me iluminem, sempre, os caminhos da vida.

Natália Souza
Enviado por Natália Souza em 11/01/2017
Reeditado em 12/01/2017
Código do texto: T5878798
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