A Pescaria

O rio Jaguaribe já deixara de correr ao longo do leito. Ficaram apenas alguns poços situados em depressões mais profundas. Eram ilhas de água ao contrário das convencionais de terra, ilhas às avessas, poços de água pontuando de forma descontínua o sinuoso leito do rio. Iluminado pelo luar, o imenso leito de areia branca contrastava com o escuro das águas dos poços, teimosas, persistentes, desafiando o rigor da estação seca já adentrada. Nesses poços havia fartura em peixes, destacando-se os maiores e mais apreciados como o piau, a curimatã e a traíra. Havia também os de menor valor como o cará preto o piabuçu e o jacundá.

Raimundo esperava a chegada da meia noite para deslocar-se até um poço do rio próximo a sua casa, onde acreditava haver bastante peixe. Havia reunido seus singelos apetrechos de pesca constituídos basicamente de tarrafa, fieira para prender os peixes e bornal. A tarrafa tinha sido tecida por ele mesmo. Aprendera o ofício com seu pai, já falecido, que se vangloriava de ser o melhor pescador da zona jaguaribana. Maria, sua mulher, solidária, estava ainda acordada e acabara de fazer um café bem forte para afugentar o sono do marido. Ambos tinham o hábito de dormir cedo para, ao raiar do sol, iniciarem suas labutas diárias. No passado, antes da chegada dos filhos, Maria costumava acompanhar o marido na pescaria. Os peixes apreendidos eram importantes como adjutório na alimentação de sua família, quase sempre carente de proteína animal.

Chegada a hora, Raimundo sorrateiramente deixou a casa e dirigiu-se a um poço escolhido que imaginava daria uma boa corda de peixes de tamanho graúdo. Ao chegar à borda do poço tirou a roupa e ficou apenas vestido com um singelo calção. Em seguida colocou o bornal a tira colo e entrou lentamente na água até a altura de seus ombros. Com a mão direita segurou o corpo da tarrafa dobrada várias vezes sobre si mesma com a extremidade da corda que a prendia enlaçada em volta do pulso. Com os dentes fixou uma chumbada de sua borda, enquanto com a outra mão dividiu-a em duas porções iguais. Daí, com singular maestria, lançou a tarrafa que, formando um círculo perfeito, caiu sobre a superfície da água, por igual, aprofundando-se de forma harmoniosa até atingir o chão do leito do rio. Em seguida iniciou a retirada lenta e progressiva da tarrafa para ao final constatar em seu interior, aprisionados, alguns poucos carás e jacundás. Nada de peixe graúdo no primeiro lance. Tentou uma vez mais e mais outra e nada de curimatã ou piau. Apareceu em novo lance apenas um par de pequenas traíras. Tudo estava a indicar que aquela não seria sua noite de sorte. Quando tentava já pela sexta vez arremessar a tarrafa ouviu uma voz estridente, de um "capão de mato" próximo ao poço, a proferir em alto e bom som: - "Pescador, pescador, queres ficar rico pescador?"

Raimundo surpreso e assombrado com aquela voz estridente de uma possível alma de outro mundo, rapidamente abandonou as águas do poço, recompôs sua vestimenta, recolheu a tarrafa e saiu em desabalada carreira de volta à casa. Lá chegando, ainda esbaforido com a respiração ofegante, acordou a mulher que sonolenta logo despertou com o estado alterado do marido. Após relatar o ocorrido recebeu uma sonora recriminação da mulher.

-Você não serve sequer para receber um tesouro, uma botija, de uma alma penada. É um frouxo, um medroso. Num vê logo que se tratava de uma alma de um ente avarento ainda penando antes de alcançar um lugar de paz, pela botija deixada escondida e enterrada aqui na terra. Já ouvi, quando criança, várias estórias de alma penada. Enquanto a alma não conseguir algum vivente que desenterre a sua botija e dela faça uso, continuará penando pela eternidade, por sua avareza. Só que ela escolheu o vivente errado, o frouxo do meu marido. Não vou mandar você de volta agorinha porque a alma já deve de ter ido embora. Mas amanhã você vai novamente e quando a alma aparecer, se aparecer novamente, você tem de se comunicar com ela e dizer que quer ficar rico. Assim ela vai dar o paradeiro do local onde a botija está enterrada.

-Agora me dá essa corda de peixe mixuruca que "vosmecê" pescou "pra mode" eu tratar logo. E depois "vamo durmir" que amanhã tem muito "trabaio" na casa pra mim e no campo "procê".

Raimundo aninhou-se em sua tipoia matutando a besteira que tinha feito em não atender ao chamamento da alma penada. Maria estava coberta de razão. Firmou convicção que amanhã seria diferente. Voltaria para o mesmo poço na mesma hora e se a alma viesse novamente com a mesma proposta sua atitude seria bem diferente. Faria das fraquezas força e enfrentaria a intrometida e abusada alma penada. Finalmente, se tudo desse certo, seria um homem rico.

Assim pensado, assim realizado. No dia seguinte a história foi repetida. Raimundo reuniu os apetrechos de pesca e rumou para o poço do rio. Tirou a roupa ficando só de calção e entrou na água de tarrafa em punho. Com os ouvidos atentos a qualquer chamamento iniciou os procedimentos da pescaria. Lançou a tarrafa uma, duas, cinco, uma dezena de vezes e nada da alma dar o ar da graça ou da desgraça. Resolveu abandonar o poço, a pesca, e se preparar para retornar ao lar. Maria, certamente, voltaria a recriminá-lo pelo que havia ocorrido ontem. Mas o que fazer. Ele bem que tinha se exposto a uma nova aparição da alma. Por fim reuniu seus trambelhos e quando iniciava o percurso de volta ouviu a voz inconfundível da alma penada a proferir: "Pescador, pescador, queres ficar muito rico pescador"? Raimundo tomado pela emoção, compungido respondeu solenemente: "Quero sim bendita alma ". Logo em seguida ouviu um gargalhar estridente seguido do seguinte conselho: "Pois então vai trabalhar vagabundo". Raimundo, possesso, não teve outra alternativa senão vituperar: "Eu te esconjuro satanás dos infernos. Vai-te pra baixa da égua alma abestada".

Chico Tavora
Enviado por Chico Tavora em 10/01/2017
Reeditado em 10/01/2017
Código do texto: T5878168
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