A vida pode voltar...

Mantinha-se em uma angústia profunda já há anos, que lhe doía nas entranhas, queria conseguir chorar uma primeira vez, dias e noites andava pelos cantos buscando algum alívio que não vinha, nenhuma lágrima, somente aquela dor no peito, um nó que não desatava.

Em seus diálogos internos não havia preces ou rogações a nenhuma divindade, ateu e pragmático, nunca entendera o significado da fé de que lhe falavam.

Escolhera, como sempre, resolver sozinho seus problemas, rígido, guardava uma aparência de calma e autossuficiência, achava que se bastava, e, mergulhado nesse orgulho permanecera, isolando-se de todos que tentaram em vão dele se achegar.

Um parente distante, com esposa e filhos jovens adultos, eram os poucos que raramente com ele ainda se encontravam, os meninos o achavam estranho, constrangendo-se em sua presença, quando muito o cumprimentavam por mera educação cobrada pelos pais.

Não lhe faltavam roupas, contudo, as que usava repetidamente se resumiam a camisas brancas, amarelecidas pelo tempo, uma calça escura, um velho paletó azul marinho, com lapelas, punhos e colarinho puídos e um par de sapatos pretos bastante surrados.

A casa onde morava era enorme para alguém só, toda avarandada, quatro quartos, sala espaçosa com uma televisão antiga, um toca discos de vinil, mesa de jantar comprida, doze cadeiras e uma cristaleira com taças de cristal de bordas douradas, algumas garrafas de vinho e outras louças finas e frágeis em porcelana.

Em todas as tardes, se acomodava numa das duas velhas cadeiras de balanço, ao lado da porta da sala, de tempo em tempo balançava a cadeira vazia e por horas olhava longe até que a noite alta chegasse.

Em seu quarto havia apenas uma cama de casal cuidadosamente arrumada, com criados mudo em ambos os lados, uma poltrona onde pouco dormia, uma cômoda e sobre ela uma delicada caixa de música em madeira, com extremo cuidado dava-lhe corda e a ouvia repetidamente madrugadas adentro.

Do lado esquerdo da cama estava um vestido azul listrado, manchado e rasgado e algumas pérolas brancas restantes de um colar presenteado.

Da porta da cozinha avistava-se um pomar tomado pelo mato, laranjeiras, goiabeiras, amoreiras e o que um dia fora uma parreira, sanhaçus, sabiás e maritacas alvoroçadas pelas manhãs quebravam aquele insistente silêncio.

Nesse ambiente, outrora, receberam muitos almoços de domingo, aniversários, famílias de amigos, crianças correndo, sarais e um último, inesquecível e trágico réveillon.

Somente sabe o tamanho da dor quem a sente, ficar nela é uma escolha, quem está próximo e se importa não pode se incomodar, deve respeitar e, sem atropelos, ser ajuda paciente e permanente, alimentando uma vida que pode voltar.