A Vara de Pescar
isabel Sprenger Ribas
 
 
 
Estava sentado ali, sem saber de nada, assim, olhando para fora de um dentro que não existia. Um vácuo tão estranho, o daquele homem.
Do lado, bem junto dele, uma vara de pescar, tão longa quanto inútil. Nenhum rio, lago ou apenas uma pequena lagoa ou riacho inexpressivos, que contivessem água.
E a vara ali, como o homem. Inúteis, ambos. E  vara, a distância,  uma campina verde e ligeiramente úmida pelo orvalho da manhã agora clara, recém-inaugurada.
O alarido da cidade grande faz bem pouco barulho, por estar tão longe; sons não identificáveis, misto de vozes indistintas, de carros e suas buzinas inadequadas e sempre desprezíveis e do ronco de algum motor aéreo. Por tão pequeno, parece o de um helicóptero.
O ronco suave, o homem, a campina, a vara.

Nada dentro dele. Só o seu olhar para um lá fora de sensações internas inexistentes.
 
 
O tempo que passou para o passado, entretanto, sepultou, ainda em vida, um homem másculo e inteligente, dotado de rico subjetivismo.
Igualmente, com farta capacidade interativa. Um cidadão extraordinário, é o que teriam falado, então.
Como tal, rodeado de gente continuamente pesquisadora em seres desta espécie.  Ele com capacidade de liderança para formar um séqüito de adeptos, multiplicar opiniões e, ainda, possíveis de reciclar intermitentemente os inatos conhecimentos sobre a vida e suas constantes mutações.
Era um homem especial, muito especial.
 
Cresceu em um clã crivado das características do que se consideraria uma família pobre mas idônea.  Um povo bom, mineiro, lá das bandas do Vale do Jequitinhonha, onde a grande pobreza cedia lugar de honra à honestidade.
Um lugar onde a miséria das condições de vida era sobrepujada pela capacidade de perceber que a opção seria, definitivamente, a escolha daquele lugar para viver pelo amor a ele dispensado.
Naquela época, o homem, então menino, não o trocaria por nenhum outro.
Assim, foi vivendo sua vida, crescendo seu eu nas dificuldades e no seu modo de vence-las, sorrindo para o sol e falando com as estrelas, com a lua, com as árvores e com os animais.
 
A escola do bairro, uma construção primitiva, mescla de barro batido com palha e argamassa de pouca qualidade, onde os assentos eram esteiras, supria as incontidas ânsias de busca, um aspecto já evidenciado no infante   daqueles dias.
Seu desejo de aprendizado guiava sua intuição para tudo o que pudesse reter.

Escrevia, escrevia, escrevia, de tudo, por tudo e para todos. Enganavam-se os que o imaginavam como um futuro profissional da Justiça ou de qualquer outra área.
 
O que mais desejava era tornar-se jornalista, daqueles que amanhecem frente aos incêndios de proporções gigantescas; ou próximo aos destroços de algum avião recém caído.
Quem sabe, presente em eventos internacionais, entrevistando alguns miss e seus patrocinadores?
 
Via-se, por vezes, em meio a guerrilhas, como correspondente de guerra, quase estraçalhado pela granada que sua imaginação explodia, muito próxima ao seu corpo ou, então, simplesmente, em seu próprio escritório, em algum televisionado jornal famoso, com as pernas sobre a mesa, fixando mentalmente a notícia do que havia ocorrido para multiplicar sua abrangência entre os leitores quando, em outro momento, mencionasse por escrito tal matéria.
 
Sua verve literária o acompanhou em seu tempo todo, durante aquele em que predominara a sua sanidade mental.
Muito menino, ainda, assombrava a todos com o que escrevia e de que maneira o fazia.
Seu sonho era do tamanho do Vale que morava na saudade dos seus olhos.
E, ao fitá-lo, anteriormente, olhando aquela vasta planície à sua frente ainda mais crescia de amor.
 
Entretanto, paradoxalmente, era seu desejo maior: deixar o Vale.
Sair dali, buscar os grandes centros. Em seu entender, ampliar a vida.  Sonhava e perseguia suas aspirações, usando a inteligência e a força de vontade para obter seu intuito.
A contribuição de todos os parentes, em detrimento da situação alimentar dos irmãos, a falta de cama para os pais, a iluminação de velas, entre tantos, foram os fatores que colocaram nosso homem entre os jornalistas de um já remoto ano, aquele em que terminara a faculdade. De beca e sorriso alargado, lá estava, uma visão bonita de registrar.
 
Para trás, o Vale, seu povo, a esteira, a quase fome. Tudo em exercícios findos. Ultrapassado.
 
Pouco a pouco, vão espaçando as visitas à sua gente. E vai a gratidão esmaecendo e ficando longe a distância bonita que, de tão grande, torna a planície pequena, quase inexistente em sua memória, um registro já mínimo, ofuscado pela cobiça de vencer na vida rapidamente.
 
O emprego conseguido supre carências, desperta desmedida ambição e cria novas normas de vida.
 
Nunca vê o dia. Se vê, quando o vê, já não fala com o sol. A lua parece opaca, perante seus fins de noite, nos bares da cidade, ingerindo comprimidos para ficar acordado.
Logo depois, em casa, no seu luxuoso apartamento, outros, coloridos de muitas cores, para dormir. O branco para acordar.
 
Em certa ocasião, no início da derrocada física e moral, foi convidado para a inauguração de alguma Pedra Fundamental de alguma obra que nunca terminou, de algum governo que ele não sabia qual.
 
Era um certo ano já sepultado na sua memória, quando esta já se tornava ofuscada pela interveniência das drogas de tantas naturezas.
E ele não pode comparecer. Era o convidado de honra, a presença mais expressiva entre seus conterrâneos. Não pode. Não pode.
 
Quedou-se abatido, no hotel em que se hospedara, sem coragem ou força de enfrentar o pessoal conhecido, a turma antiga lá do Vale...
Do Vale do Jequitinhonha, daquela Minas Gerais, ainda mais sofrida nesta região.
Aquele mesmo povão que havia sido tão seu, a turma da pelada, dos bailes de fim de semana, de uma ou outra namorada que seu cérebro meio embotado ainda registrava.
 
Seu estado lastimável o impediu de aparecer, norteado pelos últimos resquícios de envergadura moral. Deste modo, a cobertura jornalística que lhe fora atribuída também não foi feita e com isto iniciaram-se as cobranças do jornal em que trabalhava, na época.
 
Ao retornar a capital, seu processo de decadência acelerou vertiginosamente. O grau de irresponsabilidade tornou-se preponderante, frente às demandas das suas obrigações. Os colegas de trabalho, em vão, tentavam faze-lo retornar às atividades. Somente uma vez ou outra fazia coberturas jornalísticas de repercussão. Quando aparecia na Redação do seu jornal era sempre fora dos horários compatíveis ou necessários.
 
Aos poucos foi ficando à deriva das atualidades e, como conseqüência, tornando-se marginalizado nos meios de imprensa e social.
O seu aspecto físico era lastimável e as mulheres já não se aproximavam, interessadas, com anteriormente.
Deste modo, mergulhado num processo de causa versus consequência versus causa, ia sua vida em rumo incerto.
Mas definido, quanto ao resultado esperado.
 
Nesta época, a quantidade dos remédios ingeridos era gigantesca. As poucas pessoas que ainda tinham contato com ele, quando morava naquele cômodo de um sobradinho acanhado, sem cuidado e malcheiroso, a par do sentimento de amizade e da tentativa de despertarem nele algum interesse pelo que o cercava, sentiam repulsa pelo cheiro do seu suor, impregnado de toxinas.
Parecia nada notar, avesso às preleções morais ou aos apelos dos amigos, que ainda restavam, para que retornasse à normalidade da sua vida.
 
Em vão. Tudo em vão.
 
Naquele dia, ao tomar o ônibus, não soube porque foi levado até aquele lugar. Tudo foi movido por um impulso sem impulso, que o dirigia como se fora um autômato.
Ainda no seu lugar, o primeiro da direita, bem à frente, enxergando o motorista, pensava que se não tivesse aquela mania de escrever sobre tudo, talvez não houvesse chegado a este grau de total destruição.
Apalpou o bolso. Agora era a hora das duas verdes e daquela amarelinha, a mais forte de todas. Sem liquido nenhum colocou as três para dentro e se esticou um pouco na poltrona.
Uns minutos depois, retirou da pequena maleta, a esferográfica e o bloquinho.
Depois de escrever alguma coisa, permaneceu assim, por uns certos instantes, até adormecer profundamente.
 
O percurso foi de umas duas horas e meia. Na rodoviária, era exatamente   a mesma, sem melhoria alguma, retirou suas coisas do bagageiro, comprou um pacotinho de amendoim torrado e salgado.
Com cuidado, foi carregando a pouca coisa que tinha, principalmente, a vara de pescar.
 
Caminhou a pé, pela mesma estradinha que tantas vezes palmilhara. Até as pedras pareciam as mesmas. A impressão era que nem de lugar haviam mudado...
 
Uns 40 minutos caminhando e lá estava ele, de frente para o Vale.
À sua frente se descortinava a visão bela, tantas vezes anteriormente  registrada pelo seu olhar. Magnífica!
Procurou alguma reentrância apropriada para acomodar as nádegas, e sentou, cuidando de bem acomodar a vara de pescar ao seu lado.
 
Quanta saudade passou pelos seus olhos. Sorriu. Era muito lindo, lá em baixo, no fim da encosta, o casario de colorido esmaecido, de onde um dia havia ido embora para aventurar os seus dias. Naquele tempo, virou as costas para tudo o que era seu.
 
Era tarde agora. Muito tarde.
De leve, apanhou o frasco das amarelinhas e foi ingerindo, com muita calma, uma a uma das roliças pílulas. Deitou, com gestos calmos, ao lado da vara de pescar.
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A manhã do dia seguinte encontrou seu rosto sereno e o seu corpo hirto.
Do bolso tombara o pequeno  bloco de papel onde, na primeira página, estava escrito:

Me perdoem! Eu só queria escrever...
 
A vara, ninguém nunca soube porque estava com ele!
isabel Sprenger Ribas
Enviado por isabel Sprenger Ribas em 22/12/2016
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