Quem tem olhos para ver

O discípulo chegou para o mestre e disse "mestre, eu tenho um problema."

"Diga qual é", disse-lhe o mestre.

"Eu já sei que entendo muitas coisas. Já conheço minha vontade de dizer o que sei, e sei que é vaidosa e genuína. Mas não consigo evitar desejar que entendam aquilo que digo, até mesmo mais do que entendam e acreditem que eu digo a verdade", falou ao mestre o curioso discípulo.

"Uma vaidade menor do que uma vaidade grande ainda é vaidade," contou-lhe o mestre, "ainda a mesmíssima vaidade portanto, grande ou pequena."

"Percebo."

"E é tão vaidoso quanto orgulhoso, arrogante, hipócrita, ciumento e tudo o mais que você não gostaria de ser chamado, então você tem um problema, porque deseja isso. Consegue me acompanhar?", inquiriu o mestre.

"Ainda não completamente."

"Justo", falou o sábio. "Quer mostrar aos outros o que vê, sim?"

"Sim", respondeu o discípulo atento.

"Por quê?"

"Porque quero que vejam."

"Por que é bom?"

"Porque é bom."

"Mas poucos são os que realmente veem o que você vê. É isso?"

"Exatamente."

"E o que você vê? Agora. O que vê?", indagou o sábio mestre.

"Vejo que eu quero que vejam, quero que entendam. E sei que isso é vaidoso, porque eu desejo muito. Mas sei também que eu não quero apenas que acreditem que eu digo a verdade. Isso eu não quero. Quero que vejam o que eu vejo, ou nada", respondeu o discípulo.

"Então, se é isso que você vê, é isso que você quer que vejam. Correto?"

"Perfeitamente."

"E se não virem?"

"Eu só lamento."

"Por quê?"

"Porque eu desejo que vejam."

"E aí nasce o problema, não é?"

"É."

"Quer saber por que deseja?"

"Quero", respondeu o empolgado aprendiz.

"Quer mostrar o que vê porque o que vê é bom, não é?"

"É, muito."

"E por que diz que o que vê é verdade? Você conhece a verdade?"

"Sim. Estamos conversando agora. Isso é verdade, não é?" , questionou o discípulo.

"É verdade. E por que quer dizer a verdade?"

"Porque é bom."

"É só isso, então? É bom porque é verdade, e vice-versa?"

"Sim."

"Entende que vaidade e desejo são a mesma coisa?", perguntou o mestre.

"Sim, mestre", respondeu o aluno.

"E são também tudo o mais, não é? Arrogância, orgulho, ciúme. Entende dessa maneira?"

"Sim, mestre."

"E essa vaidade, como disse, é genuína, é você. Correto?

"Correto."

"E por que não preferiu dizer que sua hipocrisia é genuína em vez de dizer que sua vaidade é genuína?"

"Porque o orgulho também é genuíno", disse o alegre discípulo. "E também porque, no contexto, esse orgulho, ou arrogância, ou ciúme, no caso eu, sou vaidade. Nesse contexto."

"Mas alguma coisa pode deixar de ser o que é? Água pode deixar de ser água, ou fogo pode deixar de ser fogo?"

"Pode", respondeu o discípulo. "Quando a água evapora, deixa de ser água."

"Mas água é água, e vapor é vapor, não é?", perguntou o mestre.

"Sim. Mas a água vira vapor", retrucou o discípulo.

"Correto, mas não é porque a coisa que você chama de água se transforma em vapor que a água deixa de ser água. Não é verdade?"

"É verdade."

"Então a coisa que você chama de vaidosa não deixa de ser o que é só porque muda de nome, não é verdade?"

"É verdade", admitiu o aprendiz.

"Então não é apenas um contexto vaidoso que existe, mas orgulhoso também, por notar que deseja aquilo que lhe causa dor. E também há a arrogância por notar que o que vê é bom, não é?"

"É verdade."

"Não vê que desejar que vejam o que você vê é tão vaidoso quanto desejar que acreditem que você tem algo a dizer?"

"Agora sim. Mas ainda um parece ser menos vaidoso que o outro", contrapôs o discípulo.

"E é. E sua insistência nisso é orgulho, não é?"

"É verdade."

"Por quê? Tem vontade de parecer maior?"

"É, acho que é isso", admitiu o pensativo discípulo.

"E isso, o que é?"

"Mais vaidade, eu acho. Ou hipocrisia."

"É qualquer coisa que você não gostaria de ser chamado, não é? É medo."

"É verdade", riu o discípulo.

"Mas você se defende com algo. O que é mesmo?", perguntou-lhe o sereno mestre.

"Com o fato de uma vaidade parecer menor do que a outra."

"Sim, por que diz isso?"

"Por que é, não é? Eu não quero que me sigam, mas quero que me entendam."

"Não faz questão do mérito?"

"Não."

"E por que então quer que vejam o que você vê?"

"Porque é bom. Porque eu quero dizer. Eu gosto de dizer."

"Então diga para mim. Eu ouço você."

"Mas você já sabe tudo isso."

"Como tem tanta certeza?"

"Você é sábio. Você tem olhos para isso."

"E daí?"

"Eu quero ajudar outras pessoas a serem sábias como você."

"E como você, suponho", salientou o mestre.

"É, e como eu."

"O problema é não verem o que você vê?"

"É."

"E eu vejo?"

"Você vê."

"Mas você quer mostrar a quem não vê?"

"Não sei. Agora não está parecendo mais isso", comentou o confuso discípulo conçando a cabeça. "Acho que só quero mesmo que me entendam, como você me entende."

"Então mostre a quem pode ver, não a quem não pode."

"Mas eu não sei quem pode e quem não pode ver essas coisas."

"Apenas mostre. Quem vir tem olhos para ver, quem não vir, não tem."

E balançou a cabeça o discípulo como quem entende.

Julião Morsa
Enviado por Julião Morsa em 22/12/2016
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