Um Conto de Natal... e a jornada continua

(...)Foi neste ambiente que fiz amigos e passei memoráveis anos de minha vida. Dentre esses amigos dois eram especiais. Tipo aquelas pessoas que você conhece hoje, mas tem a impressão de já tê-los visto uma outra vez, tal a afinidade entre vocês. Carl era um psiquiatra bem sucedido – tive medo algumas vezes de precisar de seus préstimos – e Danna, a sua mulher, era uma dona de casa alto astral e receptiva. Os dois moravam na casa da frente, e nos receberam com um bolo enorme quando da nossa mudança. Gostei deles de primeira.

Nossa rotina era jogar cartas depois do trabalho na minha casa, ou comer a tarde inteira estendidos na grama do bosque, nos fins de semana. Vivemos uma vida boa ali. Planejávamos filhos, e mais filhos. Era moda ter filhos naquela época. Eu queria muitos!

Mas eu teria de terminar a minha história aqui, se não tivesse acontecido o que aconteceu. Acho que ninguém quer saber de histórias de famílias que vivem felizes com filhos e mais filhos para cuidar.

Então, foi num desses dias, num piquenique, à sombra de uma Faia, que Clara teve um estranho desmaio, o que evidentemente nos deixou muito assustados.

Não havia nenhum histórico anterior. A sua saúde sempre fora muito perfeita, mais ainda do que a minha, e eu nem resfriado pegava.

Carl, como médico, ficou mais assustado do que eu. Ultimamente não estava sabendo distinguir um louco de um torcedor do Brentford (ele próprio). Que me perdoe Carl e os torcedores desta respectiva agremiação esportiva, pelo comentário maldoso. Mas eu não podia perder a oportunidade... humor.

Depois do susto, da correria, das compressas de água fresca, cogitamos gravidez. Ora, segundo os romances mais conceituados as mulheres desmaiam quando estão grávidas. Chegamos a comemorar esta possibilidade.

Mas o tempo, e as seguidas recaídas, cuidaram de nos tirar esta deleitosa suspeita.

Foi muito mais tarde, e este interstício irei omitir, que descobrimos o que ela tinha. Foi muito longe, num hospital em Ancara, porque já havíamos passado por muitos outros antes, sem nada a elucidar.

Tem a ver com síndromes e coma. Um extenso nome em latim e uma terrível perspectiva. Não é algo que eu tenha feito questão de guardar ou de relembrar. Mas não desejaria algo assim para um eventual inimigo meu. Embora eu nunca tenha tido um. Não que eu saiba.

Clara tinha uma síndrome tão rara, que apenas dezessete delas havia sido catalogada pela medicina convencional. Resumindo tudo, basicamente a pessoa gradualmente entra num processo de descontinuação da consciência, até perdê-la por completo. Numa linguagem mais popular, resumia-se no fato de que se desfalece constantemente, até os desmaios se transforarem num coma, e o mesmo, na morte.

Como transformar em verdades agudas sentimentos que só você conhece? A humanidade tende a reduzir demais as coisas. Falamos de sentimentos compartilhados, conhecidos, por todos. Os quais possamos entender e fazer entendidos. Mas vai por mim, hão sentimentos que são pessoais, subjetivos demais, criados por sua própria alma e que só você sabe o que é. E que ninguém mais pode fazer a menor ideia. Perder alguém é um sentimento terrível... De repente a energia que te envolvia desaparece, ou vai para longe, e lá está você, de pé no sopro frio e gelado de um inverso desolador. Mas, não poder ajudar, quem o ajudou a vida inteira, e achar que é por isso que a está perdendo, é algo complexo demais para colocar numa palavra, ou num grupo delas. Também, de muitas formas, não quero que sintam, nem de longe, o que senti ao saber disso. Espero que não sintam, nem por meio de uma descrição sumária numa folha de papel.

O choque fora tão grande, que por três longos dias eu perdi a noção da realidade. Sentia-me fora de mim mesmo, um observador exterior dos meus atos. Como se o universo inteiro fosse falso, um rabisco mal feito em folha num fundo fosco. Como se eu fosse um robô, e todos os meus atos fossem mentiras, todas as pessoas fossem atores num palco, e tudo o que eu tivesse vivido fosse uma farsa... Só não corri para o hospício mais próximo, porque naquela época estava em voga certos experimentos que envolviam choques elétricos e afogamentos, e por conseguinte, eu não queria sofrer mais do que eu já estava sofrendo. Nunca fui masoquista.

Muito mais a frente, eu entendi a razão dessa minha reação psicológica tão anormal. Como entenderão também no decorrer da história. Mas foi ali que começara a jornada tão épica para o fundo de mim mesmo, ou do universo, e daquelas verdades eternas que todos sempre quiseram conhecer, mas que sempre, inconscientemente, tivemos medo de olhar.

Quando voltei a mim (se é que voltei), tinha decidido que não a abandonaria tão fácil. Conhecia a morte, vivi num período de guerra. Ela já me vencera outras vezes. Mas dessa vez, haveria um levante por minha parte. Não é que eu pensasse em vencê-la, ou que eu confiasse demais em meu taco. Eu sabia que não suportaria um vento forte nas ventas. Mas é mais como quando você enfrenta uma fera que vai te massacrar, mas então você pensa: Venha, e vou lhe mostrar do que sou feito, e enquanto viver fera, você se lembrará do homem que te enfrentou hoje! É como um centurião romano que enfrenta um leão, não pela glória de viver, mas pela de morrer com honra, coragem e lealdade ao que ama e acredita.

E foi pensando assim, que percorri de Província a Província, de Estado a Estado, de biblioteca a biblioteca. Do mais encantador edifício a mais tosca choupana, onde um livro ou conhecimento pudesse me dar uma luz, que a busquei com afinco. Como o horizonte constantemente busca a luz do sol, embora eu tenha encontrado apenas tochas na beira da estrada.

Li de “chás e suas plantas”, ao mais alto tratado de alquimia. Passando por livros de medicina e anatomia, até curas milagrosas. Mas todos eles, no fundo dos seus conceitos, diziam-me a mesma coisa, da inevitabilidade da morte. A própria alquimia dizia que tudo se transmuta. A física, que tudo se desfaz... A medicina, que tudo se definha. Eu não estava pronto, pois o meu ego era grande demais para se render, e dependia demais de um amor, para viver.

Não é fácil deixar alguém assim partir. Quando Clara ria, ela iluminava tudo! Esqueçam sorrisos forçados, artificiais... O dela era autêntico, expressivo, e quase soavam trombetas à sua presença. Isso não era uma observação só minha. Ela apanhou da vida, e continuou tratando-a bem, como se não tivesse sido com ela. E um belo dia ela me achou no meio do caminho, e resolveu me deixar seguir com ela. É, eu não a entregaria tão fácil!

Nos meios convencionais, científicos, aceitos pela comunidade acadêmica, só encontrei desesperanças. Cada livro que eu lia, cada opinião buscada por mim acerca de sua síndrome, sempre a mesma resposta, a mesma certeza. E pensar que anos depois, um brilhante cientista diria que nada é certo na vida, tudo é relativo...

Mas, foi quando tudo parecia perdido, quando tudo parecia se esvair, foi que encontrei a saída mais improvável que eu jamais sonhara. Claro, que no início, encarei como um princípio de loucura de minha parte. Mas eu não me importaria de me enlouquecer. Se alguém merecia a minha loucura, esse alguém era Clara. É melhor viver louco por ai, do que consciente de ter perdido um grande amor. Entenda, uma caminha de mãos dadas com a outra, procurando mutualmente se excluírem. O solitário é louco, e o louco é solitário, não há meio termo! É preciso que saibas, que não entendo a loucura como os psiquiatras, eu não sou um. Não é porque você não se encaixa aos padrões ditos “normais” da sociedade (que por si mesma já é insana) que você é maluco. A medicina não é uma ciência exata, sabe menos do que se pensa, e se deixar para a psiquiatria, todos são loucos, um pouco. Foi um livro empoeirado e escrito às pressas, escondido (ou guardado, talvez estivesse esperando por mim), no alto de uma estante, numa biblioteca obscura de um lugar qualquer, que me chamou a atenção.

Tinha uma capa verde grossa, com escritos em dourado, e tanta poeira que quase fiquei enterrado até os tornozelos, ao resgatá-lo da estante. Havia sido indicado a mim pela bibliotecária, boa moça, afeita a casos esotéricos e magia, e que se vivesse um século antes, talvez a tivessem tentado queimá-la como bruxa em praça pública, dado a sua aparência nada convencional, onde só lhe faltavam o chapéu na cabeça e a vassoura na mão esquerda. Não a estou depreciando, tinha uma bela aparência, mas tinha uma aura mística, cabelos longos e negros que escondiam olhos profundamente azuis, e atribuía poderes mágicos aos amuletos e anéis que possuía, e eram muitos em cada dedo. Bruxas para mim sempre denotaram mulheres fortes e místicas, nunca a ideia corriqueira da velha feia e verruguenta. Afinal, se uma bruxa existe e fosse feia, por certo, conhecedora de magia como era, trataria logo de fazer uma poção que a embelezaria. Imagino eu.

Era março de 1935, e desde então, eu nunca mais esqueceria essa data. O livro falava sobre uma tribo indígena do sul do Chile. Próximo à terra do fogo, rodeada, se não, protegida, por montanhas e vales misteriosos e desolados. Era naquela bela região americana, longe de todos os progressos tecnológicos e científicos, que estava, por certo, a minha última esperança. O livro narrava de forma lúdica o estilo de vida dos nativos, a sua relação com os espíritos da natureza e com o sobrenatural. Falava de bolas de luz e de seres que desciam do céu. Eu não o teria dado crédito, se não tivesse visto eu mesmo uma bola de luz, uma vez. E senti que ali havia certas verdades preteridas, que talvez, a maioria não gostasse de saber. Mas, o que mais me chamou a atenção, fora a observação conduzida por seu autor, e o objetivo principal do livro, que apontava a relação desses indígenas com a morte e com a velhice.

Era fato conhecido, inclusive publicados em revistas cientificas da época por grandes naturalistas, que o povo daquela tribo não morria por doenças degenerativas. Morriam apenas muito velhos. Como se decidissem quando e como morrerem.

O livro atribuía o fato a demandas sobrenaturais, os cientistas, claro, às questões muito naturais. Qual dos dois estariam certos?

O livro tinha os seus argumentos, claro. Para um místico, muito convincentes. Para mim, que um dia sonhei em ser um cientista, apenas hipóteses de um homem em devaneios. Mas, eu mesmo já vira coisas inexplicáveis um dia, e apesar de sempre ter usado a razão em tudo, a própria razão me dizia que a humanidade não sabia tudo, estava na verdade, muito longe de saber. Pessoas que conhecem as coisas, seres realmente inteligentes, não fazem guerra e nem se destroem mutualmente. A minha geração não tinha o direito de se achar superior a qualquer outra, ou melhor do que qualquer tribo ou raça.

O Xamã, segundo o livro, curava os seus protegidos de doenças e coisas semelhantes, peregrinando no mundo dos mortos e os trazendo de volta! Como amante das artes, e logo, da literatura, eu já ouvira essa história mais de uma vez! Não apenas na mitologia de todos os povos, mas na literatura, propriamente dita, em culturas, épocas e raças diferentes. Então, a última conselheira que achei que fosse me impulsionar - a razão - o fizera exatamente assim, ao me dizer que deve haver uma verdade onde há tantas coincidências.

Orfeo, Ulisses, Dante, Swendemborg e outros tantos, já descreveram aspectos semelhantes dessa mesma façanha. Não chego aos pés de nenhum deles! Nunca fui um semideus, ou pretendi ser um. Mas havia algo que nos tornavam semelhantes. Os motivos eram quase os mesmos. O amor por algo ou alguém. Ele move montanhas, não é?

London
Enviado por London em 22/12/2016
Código do texto: T5860276
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