Realização!
 
 
 
A mulher era extremamente desligada, porém nem todos percebiam isto. Aqueles a quem era mais chegada, não eram tantos, notavam que por vezes se ausentava da realidade que estava vivendo. Coisas assim:  o marido, em conversa, em certo dia, contava que o chefe fora substituído por um outro cidadão. Um sujeito tão chato e monstruoso, segundo o ex- nubente de dezoito anos atrás, que aturá-lo tornava-se difícil.  E narrava-lhe certas particularidades a respeito, comentadas pelo pessoal, nos momentos de intervalo de trabalho ou mesmo durante.
Pois na próxima festa da Empresa ela, em pleno coquetel, ao encontrar o chefe de seu marido, entre uma sonora risada e outra, totalmente descomprometida com a preocupação de ser oportuna, fala:
-Ah, Dr. Chaves, tenho muito prazer (não tinha, ao menos naquele tempo...) em conhece-lo. Como tem passado? Tancredinho falou-me, ontem, que o senhor acaba de separar-se de sua mulher...que lástima. Olha, olha (confidente e alcoviteira), aparece lá em casa. Não possuímos tabus, entende? Logo, logo, o senhor arranjará outra, leva a “peça” para nos visitar. Lá ninguém “dá bola” para isto, certo?
E, para terminar, uma risadinha esquisita. No mínimo, estranha. Em volta, as pessoas. Olhando.
Dr. Chaves, supostamente um homem educado, apenas sorri. E busca suas reservas para agüentar uma situação como aquela. Porém, marca firmemente o Tancredo. Falará com ele na Empresa, na próxima segunda feira.
 
Pobre Tancredo, que nada tinha a ver com isto, a não ser sua antiga opção, em certo dia, ao ter casado com aquela mulher, a quem amava mais do que a si próprio. E levava a sério sua obrigação de manter sólido seu casamento. Mas não sabia se era feliz. Não sabia.

Às vezes, aos domingos, enquanto olhava sem ler os jornais do dia, Credinho, apelido materno dos irreversíveis idos de sua infância, refletia de olhos abertos e parados, como se mergulhado para dentro da alma. Refletia muito.

Em pensamento, fantasiava quixotescas e inúmeras ações e atitudes de reação em sua vida. Sempre pensando, muito sério. Sobre seu trabalho que não gostava, mas precisava dele. Sobre a condução coletiva que utilizava, cada dia mais ineficiente. Sobre a escola das crianças, pública e deficitária. E tantas coisas mais...
 
Lá na varanda, conversando com o pessoal da vizinhança e ouvida por todos, sua mulher, sempre alegre, revivia fatos da semana, dividindo-os com as amigas.
 
Da vida íntima do casal, ninguém sabia. É possível que este fosse o elo que os unia. Suas rusgas, se houvessem, eram depressa resolvidas e sempre, sempre, apenas entre eles.

Credinho pensava o insólito. Refletindo, em seu cérebro que se tornava gigantesco, portando tantas conjecturas. Credinho, o funcionário meio bonitinho, do cabelo curto, na “crista da onda”, como surfista, com direito a topete e tudo mais.  Como a mulher desejava. Como de surfista, Credinho, era o que ela dizia. Não como ele gostaria.

Miúdo, algo franzino, desejava ter os cabelos mais crescidos. Na cadeira do barbeiro, aonde ia uma vez por mês, espiava pelo espelho o cidadão do lado, grisalho, tranqüilo, costeletas, bem como as que Credinho desejava. O cara, com cara, bolso e a tranqüilidade de quem tem dinheiro. Ele ali, desejando aquelas costeletas, acreditando que era realizado. Acreditando.
Eis a palavra. Realizado. Nisto é que pensava enquanto não lia, olhando as letras. Nisto.
Realização. O que era, afinal? Como seria? Re...a...li...za... cão...
 
 
Senhor Tancredo Flores, por favor.
Dr. Chaves, claro, alto, meia idade, mais próxima da idade que da meia, fisionomia indecifrável, falando com seu funcionário. O tom de voz, não muito afável. Mas chefe tem sempre o direito de não ter direito e falar do modo que quiser. Segundo alguns...
Credinho acreditava nisto. Seus olhos castanhos, aureolados pelo branco puro do globo ocular, desprovido de eventuais toxinas, não bebia, não fumava ou outros vícios de qualquer natureza, observavam o superior expondo neste instante, também, a brancura de sua alma.

Senhor, Dr. Chaves?
 
Era incrível! Ali, naquele momento sentia resposta a algumas de suas eternas perguntas sobre realização. Aquelas do domingo anterior e de outros tantos, inúmeros, para trás. Como já foi mencionado, Tancredo refletia muito aos domingos. Sempre aos domingos.
E pensava: Meu chefe falando comigo. Chamado do chefe. Estou realizado. Será aumento, chefia de seção? Ou uma nova e eficiente datilógrafa?
Confiante e otimista, esperava.
 
Senhor Tancredo, sente-se, por favor.
O convite, agradável, o tom de voz incomodativo.
Agora, neste momento, Chaves, ao falar, embora vivido, mas humano, olhando a expressão do funcionário, falta-lhe a coragem e as expressões adequadas. A raiva, ocorrida na sexta feira, dia do coquetel, arrefecera.
O clássico “puxa papo”, aceita um cigarro, veio a calhar. Depois desta oferta, o sorriso de Credinho, orelha a orelha, dizendo:

O senhor sabe, doutor, eu não fumo. Mas, não posso deixar de aceitar um para levar para minha mulher. Ela é genial, sabe, doutor? Mas fuma bastante. Uma pena. Eu sempre digo, isto é prejudicial e muito. Mas não adianta. O vício, o hábito, quero dizer, para não ser tão desagradável, é uma lástima (neste instante sorriu lindo, lindo, ameno...e pensando: acertei em cheio). É muito, muito difícil libertar-se dele.
 
Dr. Chaves, aflito, frente aquela explosão de palavras elogiosas a alguém que ele pretendia criticar ou, ao menos, cobrar o desagradável da situação anterior, usando como intermediário o marido, não soube o que fazer. Suas palavras, algo inconseqüentes, de quem não sabe bem que atitude tomar, levaram-no a dizer: Interessante, a sua senhora...como é mesmo o seu nome?

E Credinho, feliz por falar sobre o que mais gostava e queria, disse o nome da mulher e continuou tecendo-lhe elogios. Ninguém melhor do que ela para tricotar um blusão de lã; e as flores nos jarros? Roxas, amarelinhas, uma combinação perfeita!  Como era quituteira...é verdade, apenas o que queria e quando desejasse.  Riu, prazeroso. Seus melhores cardápios eram os de início de mês, supermercado feito, geladeira cheia, manteiga, não margarina, manteiga mesmo, azeite estrangeiro, azeite mesmo, não óleo, não, não, nunca, Doutor, azeitonas, aspargos...uma senhora mulher...
 
Diante desta nova explosão, Chaves, agora mais próximo das intimidades do casal, ficou sem palavras. Ou melhor, sem uma entrada oportuna para o assunto que era sua meta, naquela situação.
Credinho, já em nova investida, alma em flor, dizendo:

Dr. Chaves, aparece lá na sexta feira, vai jantar conosco.  Vai...vai, sim. Pedro, Benedito, Jorge, Miguelina e Andreinha, minha caçula, vão gostar demais. As crianças adoram visitas. E nem falo de minha mulher, ela vibra com novos amigos...vai lá, Dr. Vai ser ótimo...
 
Sexta feira, o Chaves (afinal, ele era humano e estava carente de companhia...) lá está, frente ao 107, flor na mão para a mulher e quindins para as crianças, dos nove aos dois anos. Prole rápida, tinha que concordar.
Abriu a porta uma empregada engraçada, com franjas tapando os olhos e um modo bisonho de falar, a boca ligeiramente retorcida sem riso nenhum. Margarida o introduziu na sala. Ele parou, sentindo um cheiro que não identificou, imediatamente.

Tancredo, ao vê-lo, a primeira coisa que disse foi: Dr. Chaves, minha mulher “inalou” a casa, não repare, ela faz isto todas as sextas feiras. Motivos seus, sabe, coisas que aceito. E que respeito. Coisas de mulher... dito em tom muitos decibéis mais baixos, demasiadamente íntimo de subalterno para chefe.
 
Agora, o poderoso chefão já havia admitido o entrosamento. Por covardia, falta de coragem, premunição ou o que?

Por favor, Dr. Chaves, sente-se. Aqui. E indicou a única poltrona agradável da sala. Ali, ao seu lado, a cigarreira de mesa continha vários cigarros, da marca que fumava.
Surge a mulher. Não daria para afirmar que fosse feia. Mas também não era linda. Era gostosa, isto sim. Cheia de curvas exatamente onde deveriam estar, côncavas e convexas.
E a discrepância chegava com ela:

Ah, Dr. Neves, que prazer vê-lo em nossa casa. Preparei minhon com fritas, que tal?
E o Credinho, todo lealdade: Mulher, é o Dr. Chaves, o Chefe Geral, lembra dele, no coquetel?  Não é Neves, é Chaves.
Claro, claro, desculpe, desculpe. É evidente que sei quem ele é. E para o Tancredo:
Marido, vê o que o Chaves vai beber. 
Chaves tomava qualquer coisa.
Não tem, disse ela, não tem... ambos rindo, e rindo o Credinho, da pérola proferida, em nada um lugar comum.
 
Vem a bebida, uma caipirinha previamente preparada, algo amarga. Mas gelada. A partir daí a conversa foi genial. De gente para gente. Credinho, dono, ocupando seu espaço de modo nunca antes usado. Loquaz e alvoroçado; a mulher, cheia de um senso de   humor desgastado, repetia piadas infames, já conhecidas. Ainda assim, risonha e    graciosa ao rebolar, cada vez que levantava (e não eram poucas).

O Dr. Chaves, agora apenas Chaves, mergulhado de cabeça na caipirinha, no cheiro de incenso e na pesquisa mental que elaborava cada vez que a empregada entrava na sala. Por que teria a boca assim tão torta?
A situação era confortável e    se afigurava permanecer a noite toda deste modo. 
         
As crianças apareceram, nos seus mais agradáveis modos de ser, embora a menorzinha cheirasse urina antiga. Por longo tempo esteve encostada nas pernas de Chaves, que parecia ter seu olfato já preenchido com os odores anteriores sem, absolutamente, notar este último.
 
E o tempo foi passando, de leve, sem que se soubesse como. Chaves, não podia negar a evidencia do fato, cada vez mais entusiasmado com as protuberâncias e reentrâncias da dona da casa. Era somente uma mulher, da qual ele não conhecia o segredo. E veio a vontade de saber mais, muito mais, a vontade de saber o seu segredo! Teria um segredo, elucubrava ele? Ora...todas as mulheres tem o seu...

Quando foi embora, um pouco constrangido e cheio de escrúpulos, prometeu voltar, sem coragem de enfrentar olhares.

*          *          *          *          *          *
 
 
          3272 5021?
          Sim.
          Quem fala?
          Eu...  
          Sabe, conheci a sua voz...
          E eu, a sua... 
 
 
Mulher, mulher, notícia boa...”cadê” você?

O que é, Tancredo? Não posso sequer tomar um bom banho com calma? Que é que há, afinal? Estou exausta, foi um dia cheio...Sai a tarde toda...
Fui promovido, mulher, promovido...e com aumento de ordenado. O chefe não foi trabalhar hoje, mas Judith, a assessora, avisou agora no fim do expediente. E passou às minhas mãos, o Ofício dele, já assinado.
 
Invasivo e prepotente, abre a porta do box. E a sala? Minha, só minha, acredita? Com nome na porta, cadeira giratória de cinco pernas e telefones coloridos. Acredita? Dois telefones, dois...um é vermelho.
Em inusitado acesso de euforia passa-lhe o braço em volta do corpo, a puxa para fora “e sai rodopiando com a mulher, hirta, molhada e nua, sem compartilhar muito daquela manifestação incomum.
 
          Ah, quase me ia esquecendo, Chaves janta conosco hoje e todas as sextas feiras. Combinamos pela manhã...E, confidente, depois de soltar a mulher: -Sabe, a “transa” dele com aquela acabou. É preciso dar-lhe muito apoio, deve estar carente.

Em um assomo de maneiras atraentes, sai para fora, gesticula e, gritando, vai andando pela casa.

Margarida, mesa muito bem-posta, viu? Mude a toalha. Os pratos pretos... Crianças, arrumem-se para o jantar, Andrea, troque sua calcinha.

E você, mulher, grita para ela, que vem chegando embrulhada no roupão de oncinha: vista-se bem. O Chaves vem aí...
 
No domingo seguinte Credinho não refletiu, não pensou. Só leu o jornal. E um livrinho pornográfico que ele arranjou na banca da esquina.

E também não pensou em realização.
Nunca mais pensou nisto. Nunca mais. E pediu para todos os seus conhecidos, colegas e amigos, que o chamassem de Tancredo. Adotou uma postura de inconfundível segurança. Parece que cresceu...incrível.

Quase esqueço. Deixou crescer o cabelo, sem topete e  costeletas passaram a emoldurar seu rosto. Vastas, enormes, costeletas. E também um bigode diferenciado, nada comum.

Ousado, eu diria. Ousado. De gente realizada!

 
isabel Sprenger Ribas
Enviado por isabel Sprenger Ribas em 19/12/2016
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