Fios de ovos (setembro de 2016)

Existe na memória de minha infância uma lembrança que não sei se é agradável, mas é algo sobre o qual posso dizer que me ressinto: é a lembrança dos fios de ovos que fazia minha tia. Na época, toda minha família morava na mesma rua, cada núcleo ao lado do outro núcleo, e na esquina da rua morava minha avó, a quem eu raramente via.

Ao lado de minha casa, então, morava minha tia, que era doceira por encomenda. Eu, movido pela vontade de minha mãe, que precisava trabalhar toda a tarde depois que eu retornava do colégio, era obrigado a passar um tempo todo dia com a minha tia. Eu torcia o nariz, mas consentia. E ia obediente para a casa da minha tia Malu.

Contrariado, mostrava para minha mãe a cara feia, mas ela fingia não enxergar e me dava um beijo na testa, já fechando o portão da casa da minha tia no meu nariz. Minha tia, que me esperava ansiosa, me forçava a ouvir: “Rafael, biju, seu prato de comida já está esfriando...” e escancarava a porta que dava do jardim para a cozinha.

Almoçava todos os dias com minha tia Malu. Tia Malu era a solução encontrada por minha mãe para o meu almoço e acomodação durante a tarde, enquanto ela trabalhava meio período no centro da cidade. Não lembro como ela conseguia almoçar, mas lembro que a esta hora, depois de me deixar na tia Malu, corria para não perder o ônibus.

Era esta minha rotina: de manhã, escola. Depois, tia Malu a tarde inteira. E por volta das sete e meia eu retornava para casa, a tempo de enfiar a cara nos livros e estudar para a escola. Aí era dormir, e no outro dia começar tudo novamente. Eu era um bom menino e por isso, mesmo com a cara amarrada, assentia sempre com a minha mãe e a tia Malu.

Dá para alguém imaginar que eu passava a tarde inteira me divertindo na casa da tia Malu... poderia jogar videogame? Ou assistir televisão? A resposta é não. Pasmem, mas a tarde de um dia comum de semana eu passava é na cozinha, sob o olhar atento de minha tia Malu, que cozinhava o dia inteiro – mesmo depois da chegada de minha mãe.

Tia Malu era boa no que fazia, era muito feliz no trabalho. À essa época cozinhava principalmente para festas de aniversário. Eram centenas de salgados e centenas de docinhos todos os dias. Untava forminhas e mais tarde lavava uma a uma novamente. Fritava e assava comidinhas, canapés e coxinhas.

Tia Malu era uma mão cheia de talento. E parte dessa história de sucesso, pasmem, era eu. Nunca soube se era sincera no que dizia, se desejava apenas me agradar. Mas pedia calorosamente minha ajuda com as comidinhas. Alegava ela que precisava muito de minha ajuda porque eu era do tamanho certo para manusear as forminhas.

Segundo minha tia, apenas mãozinhas como a minha eram capazes de acomodar a massa de seus “petits fours” de forma homogênea. Eu acreditava nisso e fazia o que ela pedia. Com muito cuidado, eu ia apertando a massa em torno do interior das forminhas de ferro. Inúmeras vezes e incansavelmente.

Tia Malu tinha o olhar alegre, contente, e costumava fingir que me batia com o pano de cozinha. É quando dizia, “muito bem biju”. E eu lhe redarguia volta e meia, “não sou biju de ninguém! ” Mas ela depois se enxia de orgulho de mim e me respondia, “Tudo bem, meu biju, meu querido! ”

Em resposta às investidas calorosas de minha tia, eu invariavelmente franzia o cenho e fazia com que visse que eu estava enfrentando um fardo insuportável. Passava as costas da mão direita na testa para enxugar o suor que gotejava pela minha face. Depois emitia um suspiro longo, sofrido.

Mesmo com todo o calor da cozinha, e o tédio de ter de trabalhar mais de uma centena de forminhas, eu era secretamente feliz. Tia Malu sabia como me comprar: era chegada a hora de decorar os salgadinhos de queijo parmesão com uma cabeleira solta e vasta de fios de ovos. Ela punha-se de costa, enquanto eu decorava os “petits fours” com eles.

Tia Malu ficava de costas para lavar alguma lambança, fingindo não prestar atenção no que eu fazia com os salgadinhos encima da mesa. Era esta a hora que eu devorava os fios de ovos que retirava de um enorme tabuleiro. Para que tia Malu não percebesse aquela minha diabrura de garoto de dez anos de idade, disfarçava – e não comia muito.

Talvez aquele seja um gosto que compartilhe com outros meninos da minha idade. Provavelmente sim. Imagino que sejam poucas as pessoas que possam resistir ao amarelinho dos fios de ovos. Eu tinha a sorte de comer um punhado deles todos os dias. Isso enquanto minha tia fingia que nada via, permitindo entre nós até um segredo.

E a mamãe do biju chegava pontualmente no cair da noite, para carregar o querido da tia Malu para casa, para carregar o filho para o livro de matemática que esperava dentro da mochila para ser aberto. Tia Malu me dava um beijo no cocuruto e se despedia, “vejo você amanhã, biju querido. ”

Ao ouvir a aproximação de minha mãe, apressada do lado de dentro do portão da rua, confesso que me sentia um pouco frustrado. Sabia o que me esperava para o final do dia, lembrava-me do banho, jantar de comida da tia Malu e livro de matemática. Televisão e videogame para o pequeno escravo aqui só nos fins-de-semana.

Hoje são passados trinta anos e ainda me lembro dos salgadinhos de queijo parmesão com fios de ovos que pareciam com pequenas bonecas cabeludas e cuidadosamente penteadas. Lembro-me de que pouco me interessavam os salgados, e que o que me encantavam eram os adereços que os enfeitavam.

Minha tia morreu, minha avó também. Mamãe ainda é viva, mas quando menciono os fios de ovos de tia Malu não consegue arrancar do cocuruto a lembrança. Para ela tia Malu fazia croquetes, coxinhas de galinha, empadas. Mas não se lembra das bonequinhas de parmesão. Estas são o que mais me vêm à lembrança. Faz trinta anos.