PARA O ALBERONI LEMOS FILHO

Velho amigo, aqui, tudo está diferente, vivemos em um novo século. O beco, o velho beco não tem mais aquela paisagem urbana da qual você era uma presença constante, principalmente no bar do Tião, onde uma vez por outra a gente se encontrava e tomava algumas doses de cachaça. As personagens que você descreve na sua crônica O Beco, que transitaram contigo, quase todas já foram para o campo santo Lembranças para Maria José, tua companheira. Fiquei sabendo da morte dela poucos dias depois que cheguei a Teresina, dois anos atrás Fui a tua casa para dar as minhas condolências aos teus filhos.

Falei apenas com Virginia, os outros não estavam em casa. Vi a empregada de vocês, que ainda é a mesma desde o tempo de teu casamento. Vi também os jabutis. Aliás, estão lá desde que você se casou. Tenho a impressão de que vão durar mil anos. Se houver mesmo reencarnação e caso vocês voltem ao seio da mesma família, com certeza, vão encontrar os velhos jabutis ainda vivos.

Eu gostaria de avisar a você como é hoje a redação de um jornal, coisa de louco. Não tem mais este negocio de telex, não se ouve mais o batucar do teclado da máquina de escrever. Tudo é à base do computador, que está conectado com o planeta Terra em todo grau de latitude e longitude. Agora, sim, vivemos mesmo em uma aldeia global. Eu te imagino em frente a um computador abrindo janelas com um rato, sempre com aquela tua rapidez nervosa, ora apaziguada com um trago de cigarro. Só que não sei se terias direito de fumar na redação. Aqui a caça aos fumantes está um deus nos acuda. A tua querida Irma Verônica, que sempre fez campanha contra o cigarro, venceu.

Já que estou recordando nossos velhos tempos, ainda lembras o teu projeto de escrever um romance? De repente você resolveu fazer uma experiência no mundo do romance, sair da reportagem nua e crua para o campo inventivo da narrativa. Em menos de quinze dias batucando em sua máquina de escrever, você engrenou uma narrativa que não é de se jogar fora. E o dia em que você chegou dizendo para mim que tinha entrado para o Partido Comunista?

Estou me lembrando da nossa viagem a Campo Maior quando você me apresentou a sua noiva Maria José. Não demorou muito, se casaram. Fui o padrinho do casamento. Deste-me de presente, como lembrança do acontecimento, a caneta com a qual assinamos os termos de teu matrimônio. Meu caro amigo Alberoni, com certeza você está aí em cima num dos círculos da Divina Comédia, e pouco se lixando de recordar coisas aqui da terra. Mas, gente viva, é bicho chato, besta. E por isso mesmo insisto nas nossas lembranças. Veja esta: a comemoração dos quinze anos da tua querida filha Virgínia. Você já estava doente numa luta de quebra de braço com a morte. A festa foi no terraço ajardinado de sua casa, lá no Barrocão, vizinho à casa do Arnaldo Albuquerque. Tiramos uma foto juntos com a aniversariante. Tempos depois, você me deu uma cópia. Claro que você não se lembra mais de nada disso.

Também me lembro de nossas partidas de xadrez. Você sempre levava a melhor nos seus lances incríveis. Eu era um pato. Meus peões, meus cavalos, minhas torres, meus bispos, minhas rainhas não sabiam proteger o meu rei, e eu terminava ferrado com um xeque-mate. E na dama e no bozó você era o diabo. E os livros que você me deu presente, entre eles cito um clássico - A Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel, uma obra-prima do conto russo. As lembranças são muitas. Até breve.

Meu primo,

A tua carta deixou o céu em alvoroço. O velhinho são Pedro achou estranho eu receber uma carta vindo daí do planeta Terra, se fosse ao menos um e-mail. E foi logo pedindo para abrir o envelope e ler a carta. Eu não esperava esta atitude dele. Claro que não deixei. Ele deu de ombro.

Aqui é um sítio onde a fofoca impera. O malfeito e o bem-feito é da conta de todo mundo. Se tua carta caísse nas mãos dele, eu estaria frito. Pois não sou flor que se cheire. Acho que estou aqui por engano, ou então, porque sempre fui pobre, aquela fábula de um camelo no fundo de uma agulha, ou, porque São Pedro já está caducando e me tomou por outra pessoa.

Você sabe quem está aqui? Voltaire.

Claro que aqui não é o melhor dos mundos, mas a gente se acostuma. Tem jogos interessantes e a gente se distrai, a pobreza do Beco está toda aqui. Não vou fazer uma lista porque você já conhece. Outra coisa, aqui é que a imaginação corre solta. Você pega uma nuvem e pinta e borda o que quiser.

Agora mesmo está chegando muita gente daí para cá. A pobreza. Estão fazendo milhares de puxadinhos na periferia. Os pobres estão contentes. E dizem, a minha casa o meu céu.

O Bastião negocia com São Pedro a inauguração de seu bar. São Pedro prometeu deferir o mais cedo possível o alvará para o funcionamento do boteco. Mas até agora nada.

Vou ter que suspender a pena. Que pena, paciência. São Pedro chegou sorrateiro, por trás de meu ombro e parece eu está lendo o meu texto. Estou frito.

*Geraldo Almeida Borges.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 16/11/2016
Código do texto: T5825435
Classificação de conteúdo: seguro