Terminos à Tarantino

Não costumava fazer esse tipo de visitas. Só aparecera por ocasião do nascimento da neta de sua amiga, que também era escritora. Escritora de verdade, não como ele que se arriscava a escrever meia dúzia de versos cheios de álcool, tabaco e mulheres. Ela escrevia sobre essa beleza da vida, essa beleza que qualquer um consegue ver no por do sol, numa pétala de flor caindo, no sorriso de uma criança...qualquer um consegue. Menos ele.

Levava em uma das mãos uma pequena pelúcia, apenas como sinal de carinho por aquela bela criança que acabara de nascer. Na outra mão o último trago de um cigarro, visto que se a visita demorasse mais de vinte minutos, a vontade de fumar chegaria, e ele não pretendia demorar. Nunca pretendeu nada na verdade.

Crianças, especialmente as recém-nascidas, sempre nos trazem uma pequena dose de esperança, misturada com amor e vontade de uma vida melhor. Ao pegar aquela bebê nos braços, por alguns instantes, a vida parecia não ser tão ruim assim. Ou pelo menos não tão crua como é. Mas é.

Entre uma xícara de café e outra, ela chegou. Falavam de cinema. Filmes em sites de streaming. Ela sentou-se próxima aos presentes, buscando um espaço para entrar na conversa.

- ...tenho assistido muitos filmes estrangeiros, principalmente os mexicanos e argentinos. Cuarón e Iñarritú tem excelentes filmes, tem tudo pra detonar Hollywood...- dizia ele enquanto servia mais um café.

- Ouvi falar muito bem sobre eles - disse a mãe da garotinha recém-nascida - mas meu marido e eu temos aproveitado nosso tempo para assistir umas séries muito boas.

- Séries de TV? ou de séries de filmes? - perguntou a recém chegada a conversa - ...porque se for de filmes, eu adoro! Já vi várias dessas: Harry Potter, Senhor dos anéis...

- Não, as de TV mesmo...

- Ahh, sim...

Silêncio sepulcral.

Pelos quintos dos infernos, quem assiste Harry Potter? A pergunta ecoava em sua mente. Ela aparentava ter no mínimo uns 27 anos, já teria tempo suficiente para assistir algo mais sólido, ao invés desses contos de fadas modernos que meus colegas de colégio assistiam para parecerem cult. Mas parecia ter algo a mais nela. Para retomar a conversa ele tentou recomendar algo mais leve.

- Bem, tem alguns outros filmes muito bons também. Desses que mexem com a emoção até de pessoas duronas. Quase chorei outro dia assistindo O doador de memórias...

- Sério? - Ela interrompeu - me falaram muito bem desse filme. Vou assistir. inclusive quero anotar suas indicações, me parecem muito boas.

Pronto, tudo voltou ao normal. Todos na sala o notavam novamente. Principalmente ela.

- Sim claro, fique a vontade. Bom, tenho que ir - disse levantando-se - tenho umas coisas marcadas para logo mais!

Sua amiga e anfitriã o acompanhou até a porta. Combinaram de falarem mais tarde. Ele realmente tinha umas coisas pra resolver. Na verdade, só uma. Um encontro. Desses encontros que o cara espera

muito tempo para conseguir, comemora com antecedência e conta como uma enorme vitória. Mas aquela mulher a mesa, que falava de cinema adolescente como se fosse a melhor coisa do mundo, enchia seus pensamentos. Acendeu um cigarro, acreditou que tudo isso era besteira, entrou no carro e partiu.

Chegara em casa as 3 da manhã. Cansado e ainda um pouco embriagado de cerveja, cigarro e tesão. Seu encontro fora excelente. A mulher acabara com ele fisicamente. Fatos simples: Ela, professora de Educação Física, meia idade, hábitos saudáveis; Ele, cigarro, cerveja e poucas horas de sono. Em seu ritual noturno, acendeu o último cigarro do dia e foi checar seu telefone. Várias mensagens de sua amiga escritora. "A fã de filmes adolescentes adorou ter lhe conhecido, pediu seu telefone. Aqui está o dela. Fale com ela amanhã. Ela está solteira e mora sozinha. Super querida. Quebre o gelo". Achou tudo aquilo meio doido, meio arranjado. Deu uma última tragada e foi para cama ainda pensando em como alguém assiste Harry Potter.

Apesar de sua variada experiência com abordagens a mulheres, era a primeira vez que isso lhe acontecia. Mas o que de errado poderia acontecer? Ele que já se envolvera com depressivas, bipolares,

esquizofrênicas, casadas, separadas, mães solteiras e alcoólatras, não temia nada mais. Ainda no café da manhã, resolveu que não iria se manifestar. Que iria esperar até a hora do almoço. Fracasso! As nove da manhã já tinha enviado uma mensagem. Ao meio-dia já tinham conversado sobre muita coisa. Gostos em comum, time de futebol, profissão, etc. Resolveram se encontrar dali uns dias.

O encontro correu muito bem, na verdade melhor do que ele esperava. Vinho, conversa agradável,olhares sorridentes. Tudo muito diferente do que ele estava acostumado. Mas tudo parecia bem. Aproveitou a boa sensação e a boa companhia.

- Parece que te conheço a algum tempo - disse ela depois de um longo beijo

- Também sinto isso.

Sentia mesmo? O conforto e a comodidade são os piores inimigos de um homem solitário. Quando menos percebe, ele fica extremamente a vontade e começa a espelhar seus sentimentos na outra pessoa.

Os encontros, casualmente foram acontecendo durante a semana. Era perigosamente confortável estar com ela, digo, ele até queria levá-la pra cama, mas se sentia enormemente grato pela companhia e carinho. Perigo à vista.

- Oi, tudo bem? Estou numa reunião aqui na casa de uma amiga, por que não passa aqui depois do seu plantão?

- Claro - ela respondeu prontamente - saio as 23 e vou pra ai.

Nessa altura, ele já nem se importava em ser visto andando de mãos dadas com ela por ai. Todos ali observavam o brilho em seus olhos, o cuidado e o carinho com que ele a tratava. Fosse ao servir uma taça de vinho, ou um petisco qualquer da mesa. Noite agradável, ótima companhia e vinho de graça, o que mais um homem pode querer? Só podia querer que a vida não o ferrasse novamente. E adivinhe? naquela mesma noite a vida já começou a trabalhar nesse propósito.

Ao acompanhá-la até o carro, ela não se conteve e começou o assunto.

-Olha, não tá dando para aguentar!

-Aguentar o que?

-O fato de você ser ateu! Isso me incomoda...digo, as suas manifestações e opiniões sobre o assunto. Não bate com o que eu penso. Simplesmente não dá mais para continuar te encontrando...

-Olha- ele interrompeu - já sei onde você quer chegar, então, me permita citar uma cena do filme do Tarantino, Bastardos Inglórios. Aquela, que acontece uma matança no bar, lembra?

-Não...

-Pois então, quando o ator disfarçado de militar alemão é desmascarado pelo major da SS, prestes a tomar uma dose de um bom Scotch de 33 anos, ele diz: "Sabe major, existe um lugar especial no inferno para quem desperdiça um bom scotch, e sabendo que estou prestes a bater nessa porta, permita-me que eu morra falando meu idioma natal".

-Não me lembro da cena...

-Pois é, ela acaba com ele acendendo um cigarro e tomando sua dose.

Ele acendeu seu cigarro, se virou, e foi embora sem se despedir.

Márcio Filho
Enviado por Márcio Filho em 24/10/2016
Reeditado em 19/01/2017
Código do texto: T5801848
Classificação de conteúdo: seguro