Pirâmide


- Ei, Francisco, que parafernália é essa na portaria?
- É do apartamento do seu Otávio. Aquele do 701.
- Nossa! O velho tá doido mesmo, hein?
- O pessoal diz que ele está paranóico, com cisma de segurança, sabe?
- Que nada, meu filho, isso é coisa do Inimigo.
- Que Inimigo, dona Rosa, já vem a senhora com essas explicações evangélicas malucas. O Otávio precisa de um psiquiatra.
- Olha, eu também sou pentecostal, mas o caso do velho é para doutor da cabeça. Depois que viuvou piorou.
- Psiquiatra, Chico, psiquiatra!
- É isso mesmo.
- E o coitado não tem ninguém. Lembro que dizia alguma coisa de algum escritor que não me lembro.
- "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria", Machado de Assis, dona Rosa.
- Olha, quem é vivo sempre aparece, chegou o poeta do prédio!
- Que poeta, dona Rosa, sou um leitor compulsivo e não posso esquecer o maior nome de nossa literatura.
- Viu, ele fala bonito!
- Já viu a nova do Otávio, Alfredo?
- Tô vendo, parecem peças para instalação de ar-condicionado central, não?
- Sim, seu Alfredo. O pessoal da instalação tá subindo aos poucos com essa para... fê..., como é que é o nome, seu Armando?
- Parafernália, Chico.
- O caso é sério, hein? Há um tempo o velho blindou todo apartamento. Paredes, janelas e portas. Quase não o vejo mais, depois que dona Zulmira faleceu.
- É verdade, Alfredinho, falei com o seu Armando que isso é trabalho, coisa de encosto, sabe?
- Ah, meu Deus, a senhora insiste?
- Calma, Armando. Doenças da alma ou da mente são irmãs. Uma é a linguagem religiosa popular e a outra é mais acadêmica. No entanto, as duas são aceitas pelo mesmo modo, ou seja, a fé. Refiro-me aos leigos como nós.
- Olha só, nem mais no mercado ele vai. Toda hora chega alguma encomenda pra ele aqui na portaria: supermercado, farmácia, banca de jornal, livraria...
- Sério, Chico? Talvez eu dê uma passada hoje a tarde em seu apartamento.

 

Otávio tinha 78 anos e era viúvo. Morava numa cidade grande e muito violenta. Mas parece que só percebera isso depois que Zulmira morreu. Nunca quis ter filhos. Nem Zulmira. Foi paixão de primeira. Depois virou amor. Viraram necessidade um para o outro. Otávio era filho único. Zulmira tinha uma irmã que falecera primeiro que ela. Mas não tinham contato com ela e nem sua família desde que se casaram. Otávio e Zulmira não tinham uma vida social agitada. Eram de poucos amigos. Ele era militar aposentado e ela fazia artesanato de lazer. Os dois eram o suficiente para a existência. "A vida sem Zulmira" era um fantasma que sempre rondara a cabeça de Otávio, mas agora o fantasma ganhou realidade.

- Seu Otávio, seu Otávio...
- Oi? Desculpe-me, o que foi?
- Vamos desligar a luz para fazer a instalação, ok?
- Tudo bem.
- Até a noite deve estar tudo pronto, ok?
- Ok, filho.
- O senhor poderia ficar em seu quarto?
- Sem problema.

 

Otávio olhava pela janela de seu quarto silencioso. Sem a gargalhada de Zulmira vendo seus filmes de comédia. Ele olhava o grande morro que abrigava uma grande favela. Caos. Tocava em sua janela reforçada e blindada. Sentia-se seguro. Sentia-se triste. Tudo que tinha estava naqueles oitenta metros quadrados. Tudo que queria não existia mais. Zulmira desapareceu e com ela o sentido de sua existência. Foi ao banheiro e olhou-se no espelho. Não estava arrependido de não ter tido filhos. Não desejava a companhia de outras pessoas, só a de Zulmira. Ouvia sua voz. Sentava na cama e revia as fotos de seus dias.
 

A campainha tocou. Olhou pelo olho mágico. Era Alfredo, o poeta. Pensou por alguns segundos e abriu. Alfredo entrou e tomaram um café juntos. Conversavam.

- O senhor está bem, seu Otávio?
- Não.
- Sei. Entendo.
- Entende o quê? Você é um garoto. Não pode entender esse tipo de dor.
- Desculpe-me.
- Tudo bem.
- Seu Otávio, por que o senhor não faz uma viagem?
- Para quê?
- Seria bom para o senhor... Desculpe-me, acho que seria interessante.
- Não, não preciso.
- Ok. Fiquei sabendo que o senhor instalou um ar-condicionado central.
- Sim. É um conservante.
- Sei. Fica bem agradável aqui, mesmo com esse calorão lá fora.
- O calor não me incomoda.
- Ok. 

 

Otávio ria da conversa com o jovem poeta. Os jovens temem a morte. Ela virá de toda forma, mas temem assim mesmo. Zulmira não vive mais. Em breve eu não viverei mais. Eles não entendem que um homem tem que construir sua pirâmide a tempo.
 

- Que horas é o velório?
- Nove horas.
- Sujeito estranho, gastou um dinheirão se protegendo para em seguida se matar.
- Ele não se protegia, Armando. Ele construia uma pirâmide.
 
Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 19/10/2016
Reeditado em 19/10/2016
Código do texto: T5796664
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