O EXÍLIO

Antonia nasceu em um pequeno povoado no interior do Ceará. Quando estava com quatro anos, seu pai foi para São Paulo em busca de emprego. A princípio, mandava dinheiro todos os meses, mas um dia, a ajuda não chegou. Como Jesuíno também não deu notícias, nem sequer voltou para casa, sua mulher fez as trouxas, pegou a filha e se mandou para a capital paulista. Chegando lá foi até o endereço que tinha anotado, mas não o encontrou. O porteiro explicou que Jesuíno tinha sido despedido e desconhecia o seu paradeiro.

Ao ouvir aquilo, Iracema se desesperou.

- Ave Maria! Tô lascada! O que vou fazer agora? Não conheço ninguém aqui. Não tenho pra onde ir e minha filha tá morta de cansada.

Aflita, Iracema começou a chorar. O porteiro ficou com pena da moça e resolveu interfonar para a síndica. D. Yvette desceu e ouviu a história toda. A menininha dormia como um anjo no sofá do hall de entrada. A síndica então achou por bem abrigá-las em sua casa só por aquela noite.

As mulheres subiram com a ajuda do porteiro que não despregava os olhos da jovem. Embora ela estivesse com a aparência exausta e triste, dava para ver que era bonita. Enquanto Iracema e a menina foram tomar banho, D. Yvette despachou Francisco, providenciou toalhas e lençóis limpos e colocou tudo no quarto de empregada. Depois, deixou-as fazendo um lanche e foi dormir.

No outro dia, a síndica se levantou cedo e foi até a cozinha. No momento em que abriu a porta, ouviu o rádio baixinho, tocando uma música de Fagner. Depois sentiu o cheiro de café fresquinho e viu a mesa posta com um bolo a ser desenformado. D. Yvette sorriu.

- Bom dia, Iracema! – exclamou a síndica. - Dormiu bem?

- Sim, senhora. - respondeu a mulher timidamente.

Aquele foi só o primeiro dos muitos cafés da manhã preparados por Iracema. A cearense tinha talento para cozinhar, e aos poucos, foi aprendendo receitas novas para a alegria de D. Yvette, do marido e da filha do casal. Quanto à Antonia, foi recebida com carinho por todos e se tornou companheira de Monique.

Com o passar do tempo, Iracema esqueceu Jesuíno, e começou a namorar Francisco. Após um ano, eles resolveram morar juntos. O condomínio permitiu que os dois vivessem no apartamentinho destinado ao zelador, mas Antonia continuou a morar na casa dos patrões.

Quando a menina fez doze anos, D. Yvette esperou a festa de aniversário passar para contar uma novidade para Iracema.

- Ceminha, você se lembra daquela firma que o Henri trabalhava quando você veio para a nossa casa? - perguntou D. Yvette sem dar tempo para Iracema responder. - Pois bem, eles fizeram uma proposta irrecusável para ele voltar para a companhia, mas a única condição é que nós teremos que nos mudar para a França. Você pode imaginar a alegria do Henri? Isso significa voltar para seu país de origem, e ganhando bem! Ele até já aceitou, e daqui a algum tempo nós estaremos morando em Paris! Mas não se preocupe porque queremos levar você e Antonia. Se vocês quiserem, é claro.

Iracema ficou muda por uns instantes, afinal, foi pega desprevenida, mas depois explicou:

- Não me leve a mal, D.Yvette, mas não posso ir. Sou muito grata à senhora, mas não quero sair do meu país. Além disso, amo o Francisco. E tem outra coisa: tô prenha de novo.

- É mesmo? Nossa! O que eu posso dizer?...Parabéns! É... eu entendo sua situação, mas e quanto à Antonia? – indagou a patroa surpresa.

- Não sei... não sei o que vou fazer. Eu tenho que pensar. – reconheceu Iracema.

- É isso mesmo. Pense bem, analise tudo com muita calma, e depois me diga o que resolveu. - tranquilizou a síndica.

Alguns dias depois, Antonia ficou sabendo do convite. Ansiosa, a menina foi até a cozinha, olhou para a mãe e a interpelou:

- Mainha, é verdade o que as pessoas estão falando? Você não está a fim de ir para a França? Como posso ir sem você? Mas também não quero ficar sem Monique e seus pais. Eles são minha família.

Antes que Iracema tivesse tempo de dizer alguma coisa, a menina correu para o quarto, chorando. A cearense estava diante de um dilema. Padeceu dia e noite, por mais de uma semana, até que finalmente se decidiu. A mudança poderia ser boa para o futuro de Antonia, sendo assim, a filha iria viajar.

Ao saber da escolha de Iracema, D. Yvette prometeu que todos voltariam ao Brasil sempre que pudessem. Em seguida, a síndica consultou o advogado da família para saber como proceder. A solução foi adotar Antonia. Quando a papelada ficou pronta, marcaram a data da viagem. A despedida no aeroporto foi de cortar o coração. Mãe e filha estavam inconsoláveis. A criança só parou de chorar quando pegou no sono já dentro do avião.

A adaptação de Antonia foi um tanto difícil por causa da escola. Embora fosse estudiosa e se esforçasse muito, seu conhecimento da língua francesa estava aquém do que era exigido no colégio. A família, então, tomou uma resolução. Todos só falariam com ela em francês a fim de ajudá-la a se tornar fluente o mais rápido possível.

Após alguns meses, Antonia recebeu a notícia de que sua mãe tivera um menino, mas ela não deu a menor importância ao fato. Era como se ele não existisse. Quando chegou a São Paulo em sua primeira viagem de volta, ela já havia esquecido por completo do nascimento de Jorge. Ao ver a mãe, a garota a abraçou calorosamente, e a beijou no rosto, depois, pediu:

- Mainha, vamos até o parque? Tenho tantas coisas pra te contar.

- Não vai dar, minha flor. Teu irmão tá dormindo lá no quarto. Ele é muito novinho e agora o sol tá muito forte. - lembrou Iracema.

Foi assim que os sonhos da menina foram por água abaixo logo de início. Ela havia planejado passear com a mãe enquanto falaria sobre o apartamento em Paris, a escola, os novos amigos, mas tudo, tudo não passou de uma enorme ilusão. Frustrada e morrendo de ciúmes, Antonia teve que se controlar para não ir lá dentro dar uns catiripapos naquele fedelho.

Por sua vez, Iracema ficou numa tremenda saia justa. Embora estivesse muito saudosa, tinha uma casa, um companheiro e um bebê para cuidar. Não sabia como dar a atenção exclusiva que a filha cobrava. Além disso, sentiu algo diferente quando viu Antonia. Não era mais a mesma menina que partira. Estava mudada. Iracema acabou ficando um tanto acanhada e não soube bem o que dizer ou perguntar. Aquela situação deixou-a triste e desassossegada. No último dia, ao se despedir de Antonia, teve medo de nunca mais abraçá-la.

- Té logo, querida. Não se esqueça de tua mãe. Que Nossa Senhora da Penha te proteja e te ilumine!

Apesar da decepção com a primeira visita, Antonia ainda voltou ao Brasil por duas vezes, mas era sempre a mesma coisa. Não existia diálogo com Iracema. Apenas trocavam umas poucas palavras, e logo depois mergulhavam em um silêncio constrangedor. Uma barreira invisível e intransponível parecia ter se instalado entre as duas, mantendo-as afastadas. Além do mais, aquele pestinha estava sempre por perto, estragando toda e qualquer tentativa de aproximação entre mãe e filha.

No quarto ano após a mudança para Paris, D. Yvette teve que cancelar a viagem de férias por motivos de saúde, entretanto, para Antonia, estar ou não com sua mãe brasileira, não fazia a menor diferença. Elas haviam se tornado duas estranhas. Além disso, uma colega da escola a convidara para passar uns dias em sua casa na Riviera Francesa, então, não fazia sentido perder tempo, pensando em quem estava tão distante.

Assim, pouco a pouco, Antonia foi se esquecendo de suas raízes. Toda vez que D. Yvette e o marido perguntavam se queria visitar o Brasil, Antonia recusava a sugestão e oferecia outra opção para as férias. Seus pais fizeram de tudo para convencê-la a rever a mãe e o irmão, mas a moça foi firme:

- Não vejo razão para visitar minha mãe biológica. Ela parece feliz com sua nova família e não precisa mais de mim.

Quando Antonia entrou para a faculdade, conheceu um colega chamado Michel. Da parte dele, foi amor à primeira vista. Embora ela fosse arredia, ele se encantou por sua beleza exótica. Deu muito trabalho conquistá-la, mas depois de alguns meses, foi bem sucedido. No primeiro aniversário de namoro, Michel, sabendo que Antonia não ia à sua terra natal havia anos, teve uma ideia. Na sexta-feira à noite, quando a encontrou, deu a ela um embrulho bem grande. A moça curiosa quis logo verificar que presente era aquele. Quando rasgou o papel, viu uma caixa. Ao abri-la, encontrou outra menor, e foi assim até chegar à última. Lá dentro havia dois ingressos para um show de música brasileira que aconteceria em uma cidade próxima na semana seguinte. Antonia ficou desapontada, mas ao olhar para Michel, notou o quanto ele estava ansioso para ver sua reação. No fundo, ela sabia que ele tinha agido com a melhor das intenções, e como não queria magoá-lo, resolveu calar-se. Aquela não era hora de dizer que já não pensava ter mais nenhum laço afetivo com seu país. Para despistar, agradeceu o mimo com um beijo tão demorado que o rapaz acabou não desconfiando de nada.

No sábado, lá foram eles de trem para o show. Antonia logo começou a ouvir pessoas falando português. Como há anos não usava a língua materna, tinha quase certeza de que não seria capaz de sustentar uma conversa por muito tempo. No entanto, isso era só uma constatação, pois não pretendia se comunicar com ninguém.

Ao entrar no estádio lotado, Antonia sentiu uma vibração estranha. Parecia que o ar estava carregado de eletricidade. Para ela aquele cenário mais lembrava uma final de Copa do Mundo do que um show de música brasileira. Muitas pessoas usavam camisas verdes ou amarelas, e havia até alguns jovens enrolados na bandeira. A moça não sabia bem explicar o porquê, mas a visão de tanta gente usando as cores do Brasil mexeu com ela de um jeito todo especial.

Michel estava extasiado. Tudo para ele era novidade: a língua, o colorido das roupas, as demonstrações de carinho entre conterrâneos, e a euforia dos fãs que cantavam e dançavam antes mesmo do evento começar. O rapaz sinceramente acreditava que a namorada havia ficado feliz com o presente. Mal sabia ele que ela estava ali só por sua causa. Nos dias que antecederam o espetáculo, a moça estivera tão desinteressada que nem procurou saber quem iria se apresentar naquela noite, entretanto ali, naquele lugar, tudo estava tomando um rumo diferente. À medida que o tempo passava, Antonia sentia uma ansiedade crescer dentro de si.

Dali a trinta minutos, o show começou. Primeiro, entrou Caetano Veloso, e o público começou a cantar. Depois, veio Gilberto Gil, e o povo resolveu dançar. Parecia uma grande festa. Antonia sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Em todos esses anos na França, ela nunca se sentira tão tocada, tão comovida. Nunca, até àquele dia.

Já havia se passado, mais ou menos, uma hora e meia quando Gil interrompeu a cantoria, pediu silêncio, e disse:

- Ó paí, ó, rapaz! É massa ver todo esse povo cantando com a gente, né véio? Pessoal, eu e Caetano estamos muito felizes por estar aqui hoje. E para retribuir todo esse carinho, vamos trazer uma atração porreta pra vocês. Um pouco antes do show, ficamos sabendo que um amigo de longa data estava na cidade. Então, convidamos esse grande artista para vir até aqui.

As pessoas em torno de Antonia começaram a conjecturar quem poderia ser, mas ela nem tentou adivinhar já que conhecia pouquíssimos cantores. Além do mais, Michel insistia em saber o que Gil dissera.

Assim que a banda começou a tocar os primeiros acordes, a moça reconheceu a melodia – era a música favorita de sua mãe. Dali a instantes, Raimundo Fagner apareceu no fundo do palco, cantando:

- Quando penso em você, fecho os olhos de saudade.

Antonia tentou segurar o choro, mas já era tarde demais. O nó na garganta deu lugar a um soluço, e de repente, todos os sentimentos represados dentro do peito saíram de uma só vez. Ela, então, virou-se para Michel em busca de conforto, e ele a abraçou.

Por alguns instantes o rapaz ficou sem entender porque Antonia estava chorando, mas logo depois intuiu o que se passava e achou melhor não falar nada. Ao final do espetáculo, a moça olhou bem para o namorado e murmurou:

- Merci, mon amour.

Michel beijou-a com ardor. Era a primeira vez que ela o chamava de meu amor! Ele mal podia acreditar naquelas palavras. Tinha esperança de que talvez agora ela mudasse um pouco e deixasse de ser tão contida. Se isso acontecesse, seria o homem mais feliz do mundo.

Os dois foram andando em silêncio em direção à estação de trem. Enquanto Michel permanecia tranquilo, a moça ainda se encontrava sob forte emoção. Afinal, aquele show foi um divisor de águas em sua vida. Primeiro, porque descobriu que o amor por sua mãe estivera apenas adormecido, e segundo, porque pôs fim a uma enorme angústia. Mesmo acreditando ter cortado os vínculos com sua pátria, ela nunca havia se sentido uma autêntica francesa. E essa sensação de não pertencimento a assombrava e a deixava perdida. Entretanto, naquela noite, ela acabou compreendendo que, no fundo, nunca deixara de ser brasileira.

Antonia estava esgotada. A caminho de casa tomou uma decisão: era hora de pôr fim ao próprio exílio.

Ao entrar no apartamento, Antonia olhou para o relógio da sala e viu que já era bem tarde. Mesmo assim, fez questão de ir até o quarto dos pais, os acordou e disse em português:

- Nas férias, quero ver minha mãe. Quero conhecer melhor o Brasil e Michel vai comigo. Boa noite.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 16/10/2016
Reeditado em 16/10/2016
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