SANGUE POR ÁGUA

Delicada e pacientemente, Alberto soprava os minúsculos tições que os gravetos de loureiro e urze deixaram aninhados entre as pedras de massapês do lar. A panela de ferro deixava antever o jantar dos oito jornaleiros e do mestre da levada. Na água gelada retirada da nascente ao lado, misturavam-se semilhas, pimpinelas, inhame e vagens de feijão raiado. Tudo inteiro e com casca. Depois de cozinhados os vegetais, cada um descascaria os que fosse comer. Ali, os legumes só tinham as honras de ir ao lume descascados quando lhes calhava a companhia de algum coelho bravo ou pombo trocaz, que por sua má sorte se tivesse atravessado no caminho dos homens, ou então quando havia convidados. Havendo trutas para conduto, os peixes eram assados sobre as brasas que sobravam no lar, depois de retirada a panela com os vegetais já cozidos. Outras vezes, o frio da montanha sugeria por ementa uma sopa quente de rabaças ou de agrião silvestre colhidos nas redondezas e engrossada a semilhas atabalhoadamente esmagadas com a colher de pau de laranjeira.

Com destreza, Alberto acomodou sobre a cama de gravetos incandescentes algumas lascas de lenha de cedro e continuou a soprar delicadamente até que o fogo, num repentino despertar, abraçou as achas com entusiasmo.

No lusco-fusco, os companheiros que descansavam a fadiga na beira de um penhasco que se abria em vistas sobre as serras do Monte e de Santa Maria Maior, consumiam o plangido solitário e triste do charamba que mestre Augusto Jangão cantarolava, acompanhado pelos nostálgicos acordes do seu velho rajão.

Hoje fora mais um dia de trabalho árduo deste grupo de nove homens. Embrenhados nas funduras da floresta madeirense, os operários iam progredindo lentamente na construção do canal que reforçaria o regadio no Funchal, transportando a água abundante na costa norte da ilha, para o despertar da vida adormecida nas terras sedentas e prenhes do sul, ora carcomendo a montanha em sulcos horizontais, pendurados por cordas nas arribas, quais marionetas de fios, ora perfurando as suas entranhas à força de fogo e de inclementes golpes de picaretas de bicos aguçados.

O grupo já fora maior, mas a orografia das montanhas da ilha é implacável, e os seus abismos (seja por vingança contra os que lhes ferem o rosto e invadem as entranhas, ou tão-somente pelo vaidoso e despótico desejo de medir forças com os seus invasores) devoram um homem sempre que lhes sobrevém a necessidade de impor temor e respeito. E, enquanto a fetidez mórbida da desgraça e da morte paira na memória do povo, os serviços de hidráulica da Junta Geral têm dificuldade em recrutar substitutos para a tarefa.

— A ceia está pronta! — anunciou Alberto enquanto da panela inclinada escorria água fumegante que se espalhava sobre o manto seco de folhas de barbusano que atapetavam o chão.

Os homens dispuseram-se em redor da panela e foram retirando à vez os alimentos que descascaram e comeram em silêncio.

— Amanhã vais descer à poça do corgo para pescar umas trutas, Manuel — destinou o mestre Augusto Jangão no fim do jantar. — O senhor engenheiro da Junta vai estar o dia connosco. E tu, Alberto, vais começar mais cedo a fazer o almoço. Vê lá se fazes um comer em condições.

Os homens ainda ficaram mais algum tempo a saborear o aconchego morno das sobras do brasido que contrastava com a cortante viração, prenúncio de outra noite gélida. Artur, o mais jovem dos trabalhadores, apanhou o rajão do encarregado da obra e ainda tentou desenhar-lhe com os dedos calejados na escala um acorde de sol maior, mas Augusto Jangão tolheu-lhe os intentos:

— Dá cá isso, rapaz. Não percebes nada de música e ainda me rebentas alguma corda — e dedilhou no instrumento uns harpejos ao acaso, como que a procurar uma melodia perdida entre eles.

— Toque uma música alegre, mestre Augusto — sugeriu Alberto. — Os charambas são muito tristes e de tristezas, já basta a puta da vida.

Augusto Jangão fez-lhe a vontade e tocou um bailinho que todos acompanharam em vozes cansadas. Ainda urdiu uma mourisca, mas os bocejos rendidos dos companheiros denunciavam a fadiga acumulada ao longo de um dia de duro labor e clamavam por descanso.

— Pronto, por hoje chega, vamos dormir — decidiu o encarregado enquanto zelosamente guardava o rajão num saco que fora de farinha quando ainda era branco.

— Montem a tenda.

Os homens ergueram os varapaus de folhado, desdobraram o pano oleado e, usando alguns bocados de arame e de corda, montaram a improvisada barraca ao lado do lar de massapês que ainda crepitava timidamente.

Depois de se benzerem, enrolou-se cada um na sua manta tomando um lugar no abrigo que se propunha a tornar-lhes mais suportável a noite gelada.

*

Alberto não conseguia dormir. As dores lancinantes na perna esquerda acentuavam-se com o frio da montanha e adivinhavam-se-lhe horas de tortura: outra noite repartida entre breves e tormentosos cochilos, e longos períodos de dolorosa insónia.

Desde que levara aquele tiro no Cabo da Levada do Moinho, nunca mais fora o mesmo, e as noites gélidas do outono serrano insistiam sadicamente em renovar-lhe o sofrimento pela perda de Belmira da Conceição, assassinada pela polícia numa noite que ele muito desejava já remota.

O gorjear frenético de milhentos pássaros despertavam a madrugada modorrenta enquanto os homens se erguiam dos improvisados leitos e dispersavam-se para verter águas. Para o desjejum, como habitualmente havia uns bocados generosos de inhame e algumas semilhas separados na véspera.

Após a refeição, Augusto Jangão dividiu o pessoal. Manuel foi, de linha e anzol, para a poça do corgo; Alberto e Júlio seguiriam com o mestre Jangão para prepararem a argamassa de areia e cal e acarretarem as pedras com que neste dia Augusto Jangão iria construir mais alguns metros de canal. Os restantes avançariam para jusante; uns trepariam a arriba para a limpeza da vegetação da linha da obra e os outros iriam para as lides do picão.

Pelas dez horas, Manuel voltou com algumas trutas e uma florida touceira de orégãos. Por ordem do mestre das obras, Alberto levou os peixes e as ervas para a pequena clareira onde os homens costumavam cozinhar, comer e dormir e acendeu o lume. Enquanto a água aquecia, já com um bom ramo de orégãos, descascou os inhames, as semilhas e as pimpinelas para o almoço. Estripou depois as trutas, temperou-as com sal e flores de orégão e deixou-as a marinar.

Pelo meio-dia, chegava o engenheiro da Junta, acompanhado por dois homens que carregavam sacas de serapilheira com mantimentos.

Depois de cumprimentar o mestre Jangão, o engenheiro desdobrou umas grandes folhas de papel que estendeu no chão e prendeu-lhes as pontas com pequenas lascas de pedra. Com um metro articulado de madeira, tirava medidas no desenho e anotava-as num caderno. Depois, com a ajuda de Augusto Jangão, media a largura e profundidade da levada e verifica-va as anotações do caderno.

— O almoço está pronto, mestre Augusto — informou Alberto.

— Podes escorrer a panela — respondeu-lhe o encarregado.

Pouco depois, soou o apito de Augusto Jangão. Era o sinal para que os homens viessem almoçar. Em pratos de alumínio, Alberto serviu o encarregado da obra e o engenheiro. Em ambos os pratos, alguns legumes e uma truta dourada por cima. Os restantes comeriam, como habitualmente, diretamente da panela de ferro.

Depois do almoço, os homens foram novamente distribuídos nas tarefas. Alberto foi com outros dois homens para a limpeza da escarpa. Presos por cordas atadas à cintura e munidos de podoas e barras de ferro, cortavam os arbustos e descosiam as pedras soltas para permitir que os restantes homens escavassem com alguma segurança.

De súbito, uma torrente de terra e pedras desabou sobre Alberto. O rapaz desfez-se rapidamente das ferramentas e protegeu a cabeça com os braços. Tarde demais. O arbusto a que estava atada a corda que o suspendia cedeu e Alberto iniciou uma vertiginosa queda no vazio que só terminaria no leito de um ribeiro muitos metros abaixo.

Respirou de alívio quando se deu conta de que finalmente estava em solo firme e surpreendeu-se por não sentir dores. Tentou erguer-se. Debalde. Nenhum dos seus membros obedecia às insistentes instruções que lhes dava. Decidiu gritar por socorro, mas a voz não se lhe desprendeu dos lábios e nem a boca ao menos se moveu. Tentou erguer a cabeça, mas também não conseguiu. Era como se todo o seu corpo estivesse concertado numa estranha conspiração contra si. Abriu bem os olhos. Ao menos via, menos mal. Apercebeu-se então de que no pequeno córrego onde tinha o corpo mergulhado, estranhamente não corria água, mas sangue.

— Alberto, Alberto! — Ouvia chamar lá de cima. Se ao menos pudesse responder… mas com certeza os companheiros viriam buscá-lo. A menos que suspeitassem que estivesse morto… nesses casos vinha um padre, rezava as exéquias na esplanada da levada, aspergia o abismo com água benta e assunto arrumado.

Foda-se, se calhar iam dá-lo por morto! Não conseguia responder aos companheiros, e eles pareciam já ter desistido de o chamar…

Languidamente, a tarde consumia-se. Alberto pouco mais conseguia ouvir do que o chilrear dos pássaros e o borbulhar monótono do regato de sangue. De vez em quando caiam algumas pedras e ouvia ao longe as vozes desconexas dos companheiros. Já não o chamavam e pareciam ter retomado o trabalho. Teriam desistido de o procurar? Ah, se calhar algum deles foi em busca de ajuda. Não eram precisos todos para essa tarefa… Foi seguramente isso. A queda fora muito grande e na obra não havia cordas com mais de cinco a seis metros. Alguém foi buscar cordas maiores de certeza.

Caiu a noite. Estranhamente, Alberto não sentia frio nem lhe doía a perna em tempos alvejada. Não sentia nada, a bem dizer. Achou que o melhor era ter calma e esperar que amanhecesse. Pela manhã, de certeza viriam buscá-lo. Foram só buscar cordas maiores, era isso.

Voltaram-lhe então ao pensamento as imagens que todas as noites insones o atormentavam: o massacre salazarento no Cabo da Levada. Lembrou-se das inúmeras vezes em que esteve no local que os vizinhos da Lombada da Ponta do Sol e do Lugar de Baixo guardavam noite e dia para evitar que os levadeiros da Junta Geral canalizassem a água que compraram de papel passado junto com os terrenos, para a estatal Levada Nova, condenando à seca as suas culturas. O envio em repetidas ocasiões de contingentes armados da polícia para o Cabo da Levada não conseguira demover os agricultores de defender a sua água. A cada dia que passava, os camponeses concentravam-se na nascente em maior número e com uma determinação cada vez mais firme. Mas, extremadas as posições, aquela sinistra madrugada de 21 de agosto teve um desfecho trágico.

Na Lombada da Ponta do Sol, a noite acordara sobressaltada a buliçosos toques de búzio. Lembra-se de que, tendo ouvido esse sinal de alarme, levantou-se à pressa. Ainda mal acabara de vestir-se quando bateram à porta. Era Belmira da Conceição, a Sãozinha da Lombada. Alberto, que à data era levadeiro da Levada do Moinho, abalou rapidamente com Sãozinha para junto da nascente onde o povo fazia vigilância permanente. Lembra-se de, em largas passadas, terem subido o trilho e atravessado a Levada do Moinho. Rompendo o silêncio da noite, ecos de esporádicos tiros de espingarda ribombavam de monte em monte, mas a mesma motivação que lhes instigava a coragem atemorizava-lhes o medo a acelerava-lhes os passos. No Cabo da Levada, os populares formavam um denso cordão, barrando aos levadeiros da Junta o acesso à nascente. Um enorme contingente policial cercava os populares e, de espingardas apontadas, os agentes ordenavam-lhes, debalde, que se afastassem do local. Belmira da Conceição furou o cerco policial e, atravessando a ribeira a correr, foi juntar-se aos seus, sentando-se sobre uma fraga entre a Cecília e a Maria da Paz.

Alberto lembrava-se tão bem do sorriso triunfante que se acendeu no rosto da jovem quando, ao chegar junto às vizinhas, segredou algo ao ouvido da Cecília. E, de repente, os acontecimentos precipitaram-se. Ouviu-se um tiro e Sãozinha tombou morta no regaço de Cecília. Alberto recordou-se então da explosão de gritos e protestos que, ato contínuo, eclodiram no Cabo da Levada. Foi nessa altura que, aproveitando a confusão, furou também ele o cerco, correndo na direção de Belmira da Conceição. O rapaz erguia-lhe a cabeça do regaço de Cecília, quando foi atingido por uma bala na perna esquerda e caiu com Sãozinha no cau-dal que corria em direção à Levada do Moinho.

Lembra-se de, antes de ter desmaiado, ter visto deslizar para a madre da Levada uma torrente purpurina, mistura de água e sangue que alimentaria os solos do sustento do povo.

*

O dia despontava. Não tardaria muito, os homens lançariam grandes cordas ribança abaixo e viriam buscá-lo. Deviam estar no desjejum, o melhor era ter paciência.

“Ai, Sãozinha, Sãozinha, isto foi castigo de Deus…”, pensava que dizia.

“Foi uma grande traição, eu sei… tu defendeste com a vida a nossa água dos ladrões da Junta e eu aqui… a trabalhar para eles…”, continuou.

Silvou o apito do mestre Augusto Jangão. Normalmente era o sinal para iniciar ou parar o trabalho… Iriam começar a jornada com ele ali ferido e incapaz de mover-se? Não. Certamente estiveram a combinar o resgate e o assobio era talvez o sinal para descerem o abismo. Agora não tardaria muito. Era só ter mais um pouco de paciência.

Começaram a rolar algumas pedras encosta abaixo, e de quando em vez, Alberto conseguia ouvir as estocadas dos alviões que, furiosos, insistiam na missão voraz de esventrar a encosta.

Também, para socorrer um homem, não são precisos outros oito! O mais sensato seria esperar tranquilamente, até porque o precipício era profundo. Ainda deveriam demorar a chegar, mas chegariam. Não são precisos oito homens para socorrer um outro, ora.

Inusitadamente, de um momento para o outro as pedras deixaram de rolar e calaram-se se os golpes das picaretas. Alberto apercebeu-se então do som de uma possante voz que, lá em cima, rivalizava com o alarido matinal da passarada da montanha. Se ao menos pudesse ouvir o que dizia… mas o vento recusava-se a cooperar. Levava e trazia fragmentos de frases, palavras entrecortadas que também os pássaros não queriam deixar que destrinçasse.

Depois de algum esforço, Alberto conseguiu assimilar algumas das palavras que caiam da esplanada da levada:

— Dai-lhe Senhor o eterno descanso entre os esplendores da luz perpétua…

Fechou os olhos para não ouvir mais e julgou sentir lágrimas escorrendo pelas faces. Quando voltou a abri-los, o dia fizera-se radioso e choviam pétalas de violeta. Os pássaros entoavam agora doces e harmoniosas melodias, e Alberto sentiu uma leveza fresca e agradável a invadir-lhe o corpo inerte. Uma silhueta envolta em luz caminhava suspensa em sua direção a passos lentos. Enquanto caminhava, espalhava com subtil elegância pétalas de violeta em seu redor e o seu sorriso era deslumbrante. Na fronte, de um furo de bala, escorria um fino fio púrpura.

— Sãozinha?

Sãozinha estendeu-lhe a mão pálida. Alberto levantou-se e segurou-a entre as suas.

— Perdoa-me, Sãozinha...

Sãozinha indicou-lhe o riacho de onde Alberto acabara de erguer-se e que agora corria cristalino:

— Sangue por água — murmurou.

E, na esplanada da levada, os homens viram erguer-se do fundo da falésia dois exuberantes pássaros coloridos em gracioso voo.

Oscar Fernandes
Enviado por Oscar Fernandes em 28/09/2016
Reeditado em 28/09/2016
Código do texto: T5775014
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