Mauro Amado: preguiça (agosto de 2016)

O noticiário principal do dia começava. Na cozinha minha esposa com os olhos inchados de muito chorar terminava de preparar o jantar. Eu estava deitado na poltrona, com os pés para o lado de fora, incapaz de fazer qualquer movimento, mas consegui estender a mão até a mesa para alcançar o controle-remoto e abaixar o som.

Eu queria ouvir Stela, que se murmurava qualquer coisa como uma cantiga de igreja tendo a voz embargada, de muito choro. Ela relutava em contar para mim o que se passava. Não queria que me sentisse culpado por nada, não queria que eu soubesse o quanto ela estava preocupada com o nosso provimento.

Minha boa esposa trabalhava em uma farmácia, fazendo oito horas diárias em cinco dias da semana. Graças a ela não passávamos fome. Graças a ela tínhamos o que comer. Durante os dias da semana em que trabalhava, eu ficava em casa deitado na cama ou no sofá da sala de TV.

Em torno de mim a justificativa para o meu mal: ao menos três medicamentos diferentes para curar a depressão. Desde que que um médico constatou que sofria do mal havia uns dois meses depois de ser demitido da fábrica automotiva eu me via cercado por todos os lados de medicação antidepressiva.

Só quem já se sentiu como eu pode dizer o que é a depressão. Ela nos envolve como uma chateação temporária, uma indisposição, e vai tomando conta de tudo em nossas vidas. No meu caso, a demissão de meu emprego estava intimamente ligada ao aparecimento da depressão. Assim que foi diagnosticada, comecei o tratamento.

A depressão me impediu de conseguir um novo emprego, o que fez apenas pesar a responsabilidade sobre o trabalho de Stela. Nos primeiros dias, não conseguia levantar-me da cama de manhã. Despedia-me bem cedo de Stela com um beijo dela em minha testa e um suco de laranja posto em minhas mãos.

Ela escondia o quanto estava preocupada comigo e com nosso futuro. O que ganhávamos os dois sempre foi o suficiente para pagar as contas da casa. Agora, estas contas nos colocavam contra a parede e fomos forçados a fazer diversos cortes para assegurar-nos passar mais um mês longe da inadimplência.

No início fiquei muito encabulado, temendo que Stela me visse como preguiçoso. De fato, não sentia-me motivado a nada. Nada parecia contribuir para mover-me até mais longe do que a sala de visitas. Uma caminhada até a cozinha para fazer as refeições era sempre uma aventura.

Minha sogra, ao saber do meu estado de recolhimento, logo disparou uma opinião desconcertante para Stela e para mim. Disse ela que nós dois precisávamos de mais desafio para as nossas vidas. A falta de mais desafios na vida era o porquê de estarmos amarrados os dois em vícios que fazia com que ficássemos engessados, os dois.

Minha sogra ainda acrescentou que eu nunca primei pela força de vontade, pelo trabalho duro. De alguma maneira, para ela, minha inatividade era resultado de uma falha moral. Nunca usou a palavra preguiça, mas era exatamente isso que desejava dizer a Stela. Minha sogra nunca cogitou que eu poderia sofrer de depressão.

O vizinho, quando soube que já não saía para trabalhar de manhã bem cedo, disparou contra mim sua contundente previsão: “isso que ele tem vai contagiar os dois da casa” e “no futuro os dois vão ter de tratar-se juntos dessa depressão.” Minha esposa ficou horrorizada quando ouviu dele sua opinião. Mas considerou-o um ignorante.

Também contou-me Stela que uma colega de trabalho se saiu melhor: propôs um remédio sem contra-indicação. Para esta farmacêutica, Stela devia forçar-me a um banho bem gelado pela manhã e alguns exercícios aeróbicos. Depois eu me serviria de uma gemada dupla e caminharia duas voltas no quarteirão. Stela também não gostou.

Umas pessoas fugiam de dizer sua opinião pessoal, outras faziam questão de dizê-la. De uma maneira ou de outra acreditavam todos que eu sofria de preguiça. Tive a sorte divina de ter ao meu lado uma pessoa como Stela, que soube compreender-me como depressivo. Com nosso pouco dinheiro comprava os remédios receitados pelo médico.

Aos poucos, passados uns cinco meses, esbocei alguma melhora. Levantava-me da cama e sentava-me no quintal na parte da frente da casa para tomar um pouco de sol. O ritual de levar um lençol e um travesseiro para a espreguiçadeira ainda era muito penoso. Gastava muito tempo para fazer tudo.

Disse-me Stela um dia, “Mauro Amado, não me importa o que pensam os outros, tenho certeza de que vai melhorar.” Ainda que ela não desconfiasse disso, fiz das suas palavras um incentivo diário para levantar-me da cama acreditando que o período depressivo fosse passar logo.

Dependíamos os dois de minha recuperação. Eu tinha que estar apto para procurar emprego e voltarmos a pagar as prestações da geladeira. Comigo longe das despesas de casa, o teto sobre nossas cabeças parecia pesar e ameaçar desabar. Pagar as prestações da geladeira novamente era muito importante em nossa vida.

Meu pai, sabendo de minha convalescênça, nos emprestou ontem um dinheiro para o pagamento da geladeira. Com isso, salvamos o nosso nome do SPC. Stela beijou-me toda contente e ensaiou alguns passos de dança na cozinha. Este dia fez uma moqueca de ovos muito modesta mas para mim maravilhosa.

Vivemos. Honramos aos poucos com nossos compromissos e sinto com os meses a recuperação de minha condição. Os vizinhos que sintam preguiça. Eu, sinto-me deprimido. Mas aos poucos vou me convencendo de que tudo tem um motivo em nossas vidas. Em minha vida isto tem servido para me manter unido, apesar dos outros.