No arraial: inveja (julho de 2016)

O sol nasceu atrás do morro em frente à minha casa. Na rua de barro pastava o gado da fazenda vizinha a caminho do pasto. Alguma névoa teimava em não se dissipar e só era possível enxergar uns cinco metros à frente do nariz. Neste exato momento eu estava apartado do mundo, sonhando acordado na cama com castelos distantes e aventura.

Dona Assíria fazia algum ruído na cozinha. Acordava muito cedo e se punha a cortar as hortaliças que colhia para o almoço. Começava a preparar o almoço ainda antes das seis horas da manhã, de tal forma que às onze horas já era possível comer aqui em casa. À parte isto, também diariamente passava um pano por toda a casa.

Eu permanecia deitado na cama, de ouvidos atentos ao que acontecia em toda a casa. Os movimentos de Dona Assíria eram previsíveis, metódicos, todos os dias da semana fazia a mesma coisa e praticamente da mesma maneira. Ela era responsável por tudo na fazenda, ajudada por Tonny Bravata, meu empregado.

Juntos, os dois alimentavam os porcos e as galinhas. Tonny alimentava os dois potros com ração e coordenava os colhedores de café que eram cinco à época da colheita – de forma que não restava muito para que eu pudesse fazer. Ficava de cama até as oito horas da manhã, já me levantando consciente de tudo o que acontecera na fazenda aquele dia.

Este dia em especial acordei com um pouco de enxaqueca, como era habitual depois de uma noite de bebedeira no bar do arraial. Todas as terças-feiras à noite reuniam-se os fazendeiros da região para um jogo de buraco e um aperitivo. E assim havia sido na noite anterior, nos reunimos todos no bar: eu, que sou o Sr. Pedro, e compadres.

À noite não havia sido agradável porque nada ocorreu como de costume. Toda a atenção da noite voltou-se para uma fofoca que me atingiu em cheio naquela roda, naquela mesa. O Sr. Constantino, fazendeiro do outro lado da estrada na altura de minha fazenda, veio trazer-me notícias de Tonny Bravata.

Estava sendo roubado pelo empregado, jurava-me o Sr. Constantino. Nas tardes das segundas-feiras, quando eu saía para ir ao banco na cidade e Dona Assíria retirava-se para uma soneca, uma pickup parava ao lado da casa da fazenda. Surrupiavam milho e parte da ração dos porcos. O Sr. Constantino havia visto com seus próprios olhos.

Tonny Bravata geralmente me acompanhava para a nossa reunião no bar do arraial às terças-feiras, de modo que todos mantinham relações com ele. Nesta terça-feira, no entanto, ele não passava muito bem e resolveu ficar de cama. Eu fui ao encontro dos compadres, me esperando todos com um sorriso discreto de satisfação.

Realmente, não combinava a mis-en-scéne dos compadres em volta da mesa com sua secreta satisfação em relatar-me o mal que me acometia através das ações mal-intencionadas de meu empregado de longa data. Aquilo que ouvi desceu amargo junto com a cachaçada. Conheço Tonny Bravata a pelo menos trinta anos.

Os Compadres Sr. Juracyr e Sr. Alberto Cunha montaram cena com Sr. Constantino. Todos mostravam-se pesarosos com o fato de terem sido eles a inteirar-me do malfeito. Sr. Juracyr até contou-me de algo parecido que lhe acontecera no passado, eu não era o único que teria sido prejudicado por alguém em quem confiava.

Jogamos quatro rodadas de buraco e a garrafa de cachaça não demorou a esvaziar-se. Pedimos outra ao seu Olavo do bar. Enchemos a cara e o Sr. Constantino levou-nos todo o dinheiro das quatro rodadas do jogo. No final da última rodada de buraco apertamo-nos as mãos como cavalheiros e nos despedimos.

Fui para casa caminhando, uma vez que morava a pouco mais de um quilômetro do arraial. A noite dominava tudo e o vento fazia agitar as árvores que se enfileiravam nos dois lados da estrada pelo caminho. Bêbado e em uma noite sem luar como aquela ficava difícil enxergar alguma coisa e eu me tornava alvo cheio de algum delinquente.

Não conseguia retirar de minha mente a história de Tonny Bravata roubando-me em uma pequena pickup. Onde haveria ele encontrado coragem para roubar seu amigo? Eu dele sou patrão mas o tempo que nos conhecemos nos faz algo mais que empregado e patrão. Por um instante imaginei uma emboscada de Tonny no caminho escuro.

Imaginei Tonny vindo sem nenhum dó, pulando de uma lateral da estrada, de cima de uma árvore, encima de mim e me degolando. Arregalei os olhos e apertei os passos. Todo o cuidado é pouco quando se tem um malfeitor à solta. Pensei em Dona Assíria que poderia correr perigo em casa, ao lado do malfeitor.

Era tarde, quase meia-noite, e todos na propriedade dormiam. Não quis comer nada, meu estômago estava embrulhado, e fui direto para o quarto de dormir. A imagem de Tonny Bravata surgindo à minha frente era assustadora. Até que, ao caminhar do quarto ao banheiro no lado de fora para fazer a higiene bucal encontrei Tonny.

O susto foi tão grande que saquei a pequena pistola que havia pegado no quarto para proteger-me e dei dois tiros certeiros em Tonny Bravata. Ele caiu aos meus pés, estendendo para mim a mão em que portava algo como um bilhete para mim. Atônito, li o bilhete: era uma lista de compras do que teríamos a comprar para o início da semana.

Sem pensar muito no que fazia, arrastei o corpo de Tonny até o pé de uma pedra no terreiro, a cinquenta metros de onde o assassinara. Ninguém haveria de encontrá-lo ali – pensei. Depois, escovei os dentes e pus-me de volta para o quarto de dormir. Pus o pijama e deitei-me na cama. Sonhei com castelos e aventuras até o outro dia.

Aqui nesta cama está um assassino. Já nem acredito na culpa de Tonny Bravata, pois atribuo o que ouvi à inveja daqueles com quem me confraternizei a noite anterior. Sigo ouvindo os ruídos de Dona Assíria, mas nada ouço de Tonny, um cadáver escondido no terreiro. Nada posso dizer de sua culpa: minha é a culpa de seu triste assassinato.