A prima sorriso: ira (abril de 2016)

Vinha de bicicleta com sorriso solto, fácil. Vestia-se de branco, com o vestido até os joelhos e preso ao corpo com elásticos na altura da cintura e dois laços na altura dos ombros. Um tanto antiquado para os dias de hoje, mas minha prima vivia um sonho de vida no campo, em uma bela propriedade rural imaginária do interior da França.

Tendo atravessado a metade do bairro, e tido a certeza de haver deixado para trás encantados todos os vendedores das bancas de revista, minha prima Norma chegou até mim. Eu a esperava na varanda do andar de cima, que dá para a rua em frente da casa. Já na esquina me avistara e desatava a agitar a mão direita e sorrir.

Minha preocupação quando a vi se agitando na bicicleta foi a de que caísse. O que seria da Norminha se caísse daquela bicicleta e arrebentasse a boca no meio-fio? Talvez achasse que teria que pedir esmolas para sobreviver, uma vez que para a Norminha o frescor de seu sorriso era realmente decisivo. De fato, era tudo na vida.

Branca como o leite, os olhos profundamente verdes como às vezes é a água do mar, chegou até o portão de minha casa. Tinha o cabelo loiro em tranças presas à maneira de um coque no alto da cabeça. Por um instante lembrou-me alguma fraulein bávara, personagem de propaganda de laticínios. Não tocou a campainha.

Olhou-me nos olhos ao chegar perto do portão. Não fez menção de tocar a campainha, uma vez que já me havia visto lá de baixo. Mas fechou o sorriso, adquirindo um olhar sério que não condizia com seu habitual. Eu falei a ela que ia descer, e saí da varanda. Ela respondeu que estava bem, me esperaria no portão para que o abrisse.

Qual o motivo da visita da prima sorriso, senão aquele de ajudar-lhe com algo que havia se tornado quase uma mesada? A cada dois meses - jurava ela sempre que seria a última vez – ali estava para um pequeno empréstimo. Nunca me pediu mais de quinhentos reais por vez. O argumento era que estava difícil pagar as mensalidades da faculdade.

Entrou e nos acostamos no sofá da sala. Conversamos a princípio sobre a saúde de tia Verinha, sua mãe. Conversávamos para melhorar o desconforto que pairava sobre nós a cada visita de Norminha. Estava claro para nós que pedir-me dinheiro era um pesar. Isso feria demais seu orgulho: mas seu olhar triste deixava claro que não tinha outra escolha.

Dessa vez me pagaria em dez dias, coisa certa. Pagaria o montante de quinhentos reais que tomava emprestados hoje e os oitocentos e cinquenta reais que já me devia havia respectivamente dois e quatro meses. Ela assegurava sem olhar-me nos olhos, pois que tudo muito lhe envergonhava

Eu não negava o contentamento em que me pagasse as quantias que me devia, uma vez que não sou pessoa rica. Emprestava a ela em razão da obrigação que me forçava o parentesco e alguma satisfação pessoal. A tal quantia que Norminha prometia pagar em dez dias viria a calhar. Iria para a compra de um novo televisor.

Minha amazona alemã abriu-se prontamente em um grande sorriso ao ver o maço de notas de cem reais. Em seguida jogou-se sobre mim em um terno abraço e um choro morno e melancólico. Mais uma vez me contou a história do destino daquele dinheiro: serviria para pagar a mensalidade da faculdade que estava atrasada.

Se não morassemos em uma cidade pequena, onde uns conhecem os outros e todos falam da vida de todos, eu acreditaria imediatamente na prima sorriso. Todavia eu bem sabia do destino certo daquele dinheiro. Norminha tinha que manter uma outra boca além da sua: tinha uma filhinha bebê a quem ninguém conhecia.

A prima sorriso guardava seu segredo até mesmo de mim. Mas não conseguiu escondê-lo da empregada que faz o trabalho de limpeza aqui em casa, que em seu círculo de amizades sabe de tudo um pouco de todos os habitantes da cidade. Eu acredito ser aquele que melhor a compreendia – e escolhia manter o silêncio até mesmo dela.

Norminha levantou-se e tentou impor uma emoção especial ao choro – o que logo desistiu ao perceber que eu não me alterava. Ela enxugou os olhos e caminhou de mãos dadas a mim até a porta. Sempre me senti curioso em relação à Norminha. Havia algo nela que nunca pude compreender. É que embaixo de seu sorriso parecia haver mais.

E foi embora a Norminha, minha fraulein prima sorriso. Nesse dia senti um embargo em minha voz, uma sensação muito boa em relação à prima sorriso, que eu até então desconhecia. Dei-lhe um beijão na bochecha rosada e um beijo amoroso na testa antes de fechar o portão. E esta foi a última vez que vi Norminha.

Minha tia Verinha, a mãe, não teria para com sua filha o carinho e a compreensão que eu tinha. Eu compreendia mais, é verdade, e isso explicaria a displiscência de sua família em relação a ela. Contrariando sua marca registrada, o grande sorriso, escondia-se em algum lugar daquele indivíduo, a quem eu chamo de prima, a ira.

Já me haviam advertido na família que Norma sentia-se desconfortável em relação a tudo e todos, mas no momento julguei conhecer melhor minha prima do que qualquer outro. Era mentira, acreditava eu, que ela odiasse a quem porventura pudesse tratá-la com desatenção ou com desrespeito – como afirmavam. Mas eu estava enganado.

Eu um dia destes, antes da visita derradeira, estava eu muito preocupado com os meus próprios problemas que decidi não atender à campainha para Norminha. Disse à empregada que lhe dissesse que por favor retornasse outro dia. Pois Norminha comportou-se de uma maneira tão inesperada que eu tive de descer para falar com ela.

Norminha começou a chutar o portão de ferro fazendo barulho e gritando que sabia que o miserável, fresco do primo dela, não queria atendê-la em um momento de grande importância. Havia combinado por telefone aquele encontro e só sairia dali se eu a atendesse. O que eu fiz, prontamente diante do escândalo.

Naquele dia, já faz uns dois meses a julgar da periodicidade com que recolhia os empréstimos, conversamos muito. Por um momento, as emoções da prima sorriso ficaram à mostra para que eu pudesse ver e compreender. Pedimos os dois mil desculpas um ao outro. Eu por conta de minha indisposição para falar-lhe, ela por sua grosseria.

Norminha então levantou-se umas duas ou três vezes para olhar para a bicicleta através da janela. Mostrava-se muito preocupada com a possibilidade de que alguém levasse sua bicicleta. Pegou como poucas vezes minhas mãos nas suas e agradeceu-me muito por perdoá-la. Não queria que pensasse dela nenhum mal, apenas perdeu a cabeça.

Tenho que admitir que não a via nem a vejo hoje como uma pessoa descontrolada, odiosa talvez, mas sem dúvida desvelou-se para mim uma pessoa que se inflama ao ser rechaçada, ignorada, ou desrespeitada. Era verdade o que me haviam dito os primos, e uma ou outra pessoa da família, a prima sorriso se inflamava facilmente em ira.

O motivo de ver-se sozinha para criar a criança parecia ter a ver com essa característica de Norminha. Ela vivia do vento, contando com formar-se para trabalhar em farmácia ou tornar-se modelo. O namorado quis tomar conta dela e da filha, mas pediu a Norma que trabalhasse ao menos meio-período para ajudá-lo com as despesas, o que não quis.

Iracunda, pôs o namorado de porta a fora da casa quando o bebê tinha apenas três meses, anunciando para ele e para a vizinhança que não aceitava mais dele um tostão. Ela cuidaria da filha pessoalmente, com a ajuda de Deus. Tenho certeza que naquele momento ela pensou em mim como a mão de Deus. E não enganou-se.

Como poderia eu negar ajuda a minha prima, visto que conhecia secretamente toda sua história e sabia que não havia mais ninguém com quem pudesse contar naquele momento? Como deixá-la desamparada para criar aquela criança que vinha ao mundo de um ventre tão frágil?

A prima sorriso desfilava de bicicleta pelas ruas com a certeza de que alguém algum dia haveria alguém que bem lhe quisesse e lhe fizesse posar de modelo fotográfico. Apostava muito nos dentes marfim e nos olhos cor de água limpa, muito verdes. Ter de acreditar que não teria essa sorte algum dia faria com que se inflamasse facilmente.

Por isso costurava as esquinas e trançava de um lado a outro das ruas com peraltice, saudando a todos os que via passar por seu caminho. Não só os donos do pequeno comércio, como também os trabalhadores da manhã de trabalho que começava, sabiam seu nome e a cumprimentavam, “bom-dia dona Norma”. E ela lhes ofertava o sorriso.

Não sei se a prima sorriso voltará em dez dias, como prometido, para saldar a dívida. Sei por experiência que volta pontualmente em dois meses para pegar um novo empréstimo. Acontece é que aprendi a acreditar nas pessoas, e por isso acredito em Norminha. Que ela não pense mal de mim.