O beijo

Doía. Mas não como toda dor. Para ser sincera, doía nela mais que a dor o coração. Olhos secos, lábios cerrados e pernas pétreas caminhavam pela praia. Era frio. Naturalmente. Todo fim de tarde é extremamente frio. Pelo menos quando o derradeiro raio de sol desmaia no horizonte. E naquele instante ele desmaiara havia muito num profundo sono. Queria ela, esperançosa, ter dormido também. Não pode. Os humanos não usufruem dessa dádiva. Nem ela. Ela é humana, segundo dizem. E eles devem possuir a verdade.

Tá. Mas, agora, para onde ir? A noite vem. A noite leva as meninas embora. É má. Inclusive com as grandes. E diga-se de passagem que prefere, sobretudo, estas últimas. Atrevidas, insubordinadas e contundentes que são. E a tal ponto o são que fazem o que bem entendem da vida. Embora decidir e fazer seja negro. Cômico. Essa cor não assusta ninguém senão os outros. Então, destemida e relutante, ela decide: não voltará para casa.

Caminha quase cega. A dois passos um menino-homem. Que também parece ser míope. Caminha ao lado dela. Como não percebera? Há quanto tempo e por quê a seguiu? Ela para. Ele, escuro como o céu sem estrelas, se aproxima. Mas ela não tem medo do preto. É só uma questão de auto controle, auto confiança, monologa em pensamento. E sente o arfar do peito alheio. Tão perto. Tão quente.

Nunca soube que era capaz disso, de deixar alguém tocar os seus lábios. E deixou. Atônita. Frêmita. Inconsciente. Ele encostou os dele nos seus por um momento repentino. Brevíssimo, dir-se-ia, caso pudesse ser cronometrado. Mas não pode nem poderá. Como não se pode dormir tampouco voltar para casa. Encostou. Suave e brusco. Meio oco como a dor. Meio salgado feito o mar. Meio ou bem perigoso como as profundezas abissais. Mas foi um beijo. E beijar pode.

flor de vento
Enviado por flor de vento em 03/06/2016
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