História De Trincheira

Já houveram noites muito frias, mas a daquele dia em especial estava de congelar até os ossos e mais um pouco, talvez pela falta de calor humano naquele buraco com dois metros de altura e um e oitenta de largura cavado no chão na linha de frente do campo de guerra ou quem sabe fosse só a noite mais fria já registrada na história da humanidade. Não se sabe ao certo, a única certeza era que aqueles dois corações que restavam ali pulsavam rápido, ah sim, como pulsavam, pulavam no peito de bravura e coragem. Isso, dois corajosos e ardentes corações. Ou seria medo? O responsável por tanta agitação? Bom, isso de pouco importa, o fato é que ali, naquele buraco que fedia a terra, merda, sonhos perdidos e corpos fuzilados ainda restavam dois bons soldados.

- Eu to ouvindo alguma coisa, tem alguém ali Morales, eles vieram. Dizia o bravo soldado Garcia tremendo dos pés à cabeça.

- Calma seu cagão, deve ser só a merda de um esquilo. Respondeu de maneira convincente o soldado Morales, transmitindo calma e confiança na proporção inversa em que Garcia demonstrava medo, desespero e um cagaço sem igual.

Garcia desabou e quase que como um golpe de misericórdia ele implorou.

- Não tem mais jeito, acabou pra gente, já era, aqui não dá mais pra ficar, eles estão vindo eu sinto isso, quem sabe se a gente fugir...

Morales, que por um instante pareceu querer dar um bom e belo soco no meio do que poderia ser o último rosto que ele veria na vida, só se ajeitou e disse:

- Para de falar merda, o reforço chega pela manhã - ele não tinha certeza acerca do que estava prestes a dizer, mas continuou - a gente só tem que aguentar mais essa noite, só isso. Dito isso, cuidadosamente se ajeitou no chão.

- Mas que porra Morales, você ainda acredita nisso? Olha em volta todos esses restos aí eram iguais a você, todos eles acreditavam nos reforços. Você não vê, isso aqui é um abatedouro. “Defenda sua nação”, “Honre suas famílias”, era isso que aqueles porcos velhos cheios de medalhas no peito diziam pra mandar a gente pra cá, ratos dentro de um buraco, é isso que nós somos, só isso e nada mais. - Morales até quis rebater, mas simplesmente não teve como, ele só imaginou onde o cretino que mandou eles pra lá estaria agora. Em alguma banheira, quem sabe na cama quentinha com a mulher. Ele não sabia, mas com certeza em algum lugar bem longe da linha de frente. Vendo que o companheiro nada mais faria além de abaixar a cabeça, Garcia acrescentou: - Olha, só essa noite, nada mais, eu já não aguento mais esse buraco imundo e fedido, se esses cavaleiros alados dos seus sonhos não chegarem até amanhã bem pela manhã, nós fugiremos, sem hesitar. Agora eu vou dar uma volta, quem sabe te traga até um pônei se eu achar um.

Quando Garcia sumiu de vista Morales puxou do bolso de seu uniforme uma pequena foto, umas das poucas coisas, quem sabe a única que ainda o fazia sorrir por ali. Era sua família, uma foto tirada pouco antes da grande guerra para qual ele foi convocado de forma “nada forçada” estourar. Ele sentia, mesmo que bem lá no fundo, a segurança da sua casa, o cheiro daquela sopa bem quente que só sua mãe sabia fazer. Ele queria sentir isso de novo. Ele não estava pronto para partir e diferente do que disse ao companheiro de guerra, ele não acreditava nos reforços, mas sabia que sair dali só anteciparia sua morte, e ele não queria morrer. Não, ele não queria.

Galhos quebraram, o mato balançou e gritos foram soltos ao ar, Garcia vinha correndo o mais rápido que podia. A princípio ele nada viu até que tiros começaram a assobiar a centímetros do rosto do seu companheiro que apesar de todo seu esforço não resistiria aos trinta e cinco tiros só nas costas, isso porque eles simplesmente ficaram com preguiça de contar o resto do corpo. Mas antes de morrer Garcia gritava desesperadamente: - A granada Morales. Pega a porra da granada. – Morales não se mexia, seu coração palpitava mas seu corpo não apresentava sinal nenhum de movimento, enquanto Garcia berrava de longe – Mas que porra você está esperando, se mexe Morales. Anda seu filho da p......

Os gritos pararam, agora eram só os tiros, pareciam milhares deles. Morales sabia que era seu fim, ele apertou a foto contra o peito e naquele instante ele se sentiu tão perto de casa, a apenas metros de distância e a sensação aumentou assim que o primeiro tiro acertou seu ombro – nossa, como era quente, quente como a sopa – depois vieram os outros, perna, barriga, peito, eles pareciam não parar, aqueles segundos se arrastavam enquanto as balas cruzavam seu corpo no que parecia ser a velocidade da luz. Ele se sentiu forte, bravo, feliz, estava perto de sua família, de sua casa, ah sim, estava, bem perto. E sorrindo com a foto colada ao peito Morales nada mais sentiu após os tiros misericordiosos acertarem o que ele acreditava ser o seu coração, quase indistinguível naquele momento. Assim partiu Morales, mais próximo de sua família como jamais esteve...

JCandido
Enviado por JCandido em 24/04/2016
Reeditado em 01/06/2016
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