Corre morre mata (fevereiro de 2016)

Paulo Maluco está em casa. Toma café frio enquanto assiste à última parte de O Poderoso Chefão. Coisa boa essa de se viver matando meio mundo impune sempre cercado de belas mulheres, de muito dinheiro, e respeito! Coisa boa essa de ser um crápula de cinema, mas este era um crápula de balas de festim. Imitação.

Sorve mais um pouco de café frio e arrota um arroto azedo desavergonhado. Não é entanto o caso de preocupar-se, pois está sozinho. Era uma tarde de domingo e Paulo Maluco estava sozinho de novo no seu barraco de periferia. Ninguém para chamar de seu, mas também ninguém para temer.

Os pacotinhos brancos na laje quente, muito quente pela tarde quente de domingo. A erva no quarto do fundo, na laje quente do quarto de dormir. O telefone ali na frente, jogado displicente sobre a mesa, à espera de Canguru e Mata-Moscas. Estes, os dois sócios de Paulo Maluco, eram esperados chamar a qualquer momento.

O telefone cumpre papel estratégico no cafofo de Paulo Maluco. É para marcar a hora de chegada dos atravessadores e para ter certeza de que tudo corre bem, procurando se informar das andanças da polícia. Uma batida policial na boca de fumo de Paulo Maluco poderia ser desastrosa, por isso melhor se precaver em todos os passos.

Mas eram três da tarde e Paulo Maluco esperava um telefone que parecia não querer tocar. Enquanto isso, divagava (toco de fumo na mão), se algum dia suportaria tratar Canguru e Mata-Moscas do mesmo jeito de Marlon Brando no filme, o poderoso chefão dando seus dois beijinhos na bochecha dos comparsas.

Canguru e Mata-Moscas tinham o aspecto repugnante. Canguru tinha as bochechas coladas nos ossos, secas como resultado do abuso de crack. Não era negro nem quase branco – era um mulato de olhos sempre avermelhados que causavam medo a qualquer pessoa que o desconhecesse. Não era também pessoa generosa, ou boa. Era mau.

Mata-Moscas, como o nome diz, sugeriria que o tal não matasse nem mesmo uma mosca, mas a verdade era o inverso. Corria pelas ruas o boato de que Mata-Moscas havia matado a bala dois homens. E tudo por causa dos pontos de venda de drogas. Naquele meio, arranjava-se inimizade, morria.

O único anjo metido naquele negócio infeliz de traficar drogas era Paulo Maluco. Não andava armado nem havia matado ninguém. Verdade que, uma vez, ele e Mata-Moscas deram uma surra pra valer em num mal-pagador. O homem ficou prostrado, de costas, e alguém teve que carregá-lo morro abaixo inconsciente em um carrinho de mãos.

Mas Paulo Maluco era como o sensível Marlon Brando do filme de mafiosos. Um homem sensível que, ele sim, mataria mais que uma mosca. Sua arma andava carregada com balas de festim, mas apenas para disfarce. Para disfarçar, dizia, “a diplomacia, eu.” "Para o trabalho árduo, havia Canguru e Mata-Moscas, a 'turma do papai do céu.'"

Não falei ainda de Canguru. Digo ao leitor que o malandro era barrigudo como se carregasse um bicho debaixo da camiseta suja (sempre imunda). Daí o apelido. Apesar de ganhar uma graninha vendendo drogas e fazendo serviços para Paulo Maluco, Canguru vivia sob o teto da casa de sua mãe.

A mãe de Canguru era muito velha, e pouco compreendia das andanças de seu filho. Pouco se falavam, mas era ele quem colocava em casa a comida e pagava as contas de luz e telefone. A água não pagavam porque se beneficiavam de um poço no fundo do quintal. Sua mãe estava sempre sozinha mas, septuagenária, não reclamava muito.

Canguru tinha uma peculiaridade: unhas. Também corria solto pelas ruas que ele havia esfolado as mãos de alguns devedores arrancando-lhes as unhas. Não, não havia naquele trio ninguém bom. Todos tinham medo de canguru, até mesmo os policiais da pequena delegacia do bairro. A polícia o respeitava porque temia sua cara de mau.

Canguru era pior que Mata-Moscas, porque enquanto aquele se vangloriava de ter matado duas pessoas, Canguru sorria feliz pelas inúmeras torturas a que havia submetido traidores e pessoas que lhe deviam. E havia também matado mais, talvez a quantidade de seis pessoas algo de que se vangloriava. Dizem.

Canguru sorria sem quase nenhum dente na boca, e fazia a conta de seus presuntos com os dedos: os seis. Tanto Canguru quanto Mata-Moscas eram viciados em drogas e, por esse motivo, tinham o aspecto repugnante de dois esqueletos lentos para caminhar e para falar. Quando riam, riam gelado; só para afastarem de si a presença de outros.

A comparação entre Canguru e Mata-Moscas com Paulo Maluco não faria jus ao último. Apesar de terem aproximadamente a mesma idade, Paulo Maluco ainda tinha os dentes da boca para sorrir, garantidos pelo dentista seu vizinho e usuário de pó. Quando vestia-se usava camisas de times esportivos, o que lhe marcava bem o estilo próprio.

Paulo Maluco tinha o estilo de alguém que praticava o ofício que ele praticava e que vivia exatamente como ele vivia. Não era bonito e, a exemplo de seus meliantes, não era de todo negro nem de todo branco. Paulo Maluco tinha os cabelos anelados, enquanto os dois parceiros tinham os cabelos crespos.

Um dia, disseram-me as ruas que os negócios de Cachorro Doido, concorrente de boca-de-fumo na região de Paulo Maluco, cresceram em rivalidade. Veio de Mata-Moscas a história de que um guarda-costas do rival lhe havia dado até um tiro que passou de raspão, quase atingindo sua omoplata. Feriu-lhe o ombro.

Neste dia, Paulo Maluco quis dar um recado à rua. Escreveu em letras grandes desenhadas (um milagre lográ-lo, para quem estudou até o primeiro ano fundamental), as palavras Corre Morre Mata no muro que cercava sua casa. Sua intenção era poupar os vizinhos, no caso de um confronto com Cachorro Doido, de uma bala perdida.

Informava assim à rua: Corre Morre Mata. O suficiente para qualquer um compreender que ficar ali era perigoso, tinha morte, e tem gente que mata. Para Paulo Maluco era importante conquistar a simpatia da vizinhança, no caso de depender deles para escapar de uma batida da federal.

E então bradaram as ruas o toque de recolher para as onze horas da noite. Não houve quem ficasse feliz com a mudança de hábitos. Havia quem trabalhasse até tarde morro abaixo e haviam também os tantos pinguços que retornavam para casa depois desse horário para dormir. Mas todos tiveram que se adaptar. A guerra havia sido proclamada.

Da mesma forma que Paulo Maluco também Cachorro Doido inventou uma paralisação para o seu modo de guerra. Os dois adquiriram arsenal pesado e nada de brinquedo de criança. Paulo Maluco passou a assistir seus DVDs com o braço enrolado em um fuzil. Na muro instalou um sistema de alarme e a porta de casa ganhou mais uma fechadura.

E foi assim, segundo me contaram: era uma tarde de terça-feira quando uma visita tocou a campainha do cafofo. Desconfiado, Paulo Maluco demorou a atender. Mas terminou cedendo à curiosidade e chegou a cabeça até a janela da frente, atrás da cortina. Viu um velho apenas, curioso e atento para o movimento na janela.

“Ó de casa!” disse o velho e Paulo Maluco vestiu uma camisa do Palmeiras. Depois, abriu a porta. Foi até o portão de cara amarrada, e encontrou no velho um gesto tal que lhe contrariou todas as expectativas e fê-lo sentir-se envergonhado. O velho lhe estendia a mão. Pensou logo que fossem os Testemunhas de Jeová, e reagiu com um passo atrás.

Mas o velho foi logo se apresentando, não era religioso, mas primava pelo prazer de uma boa argumentação. A frase Corre Morre Mata no muro da casa lhe houvera chamado atenção. Ficara maravilhado. Era aposentado, disse-lhe ele, mas jamais se livrara do vício de professor de português. Perguntou se a frase era sua.

Embora desconfiado, achando que fosse zombar dele, afirmou que sim. Depois, o velho era só sorriso. Ficara “maravilhado com aquilo que também os concretistas conceberam um dia.” Paulo Maluco entendia de concreto, lápide, laje, defunto. Mas não entendia nada de quem eram aqueles, e não queria perguntar para não parecer ignorante.

Por isso, não convidou o velho para entrar no cafofo nem encompridou a conversa. Disse que estava na hora de trabalhar e foi entrando. O velho pediu desculpas por ter-lhe importunado, explicou que não era dali. Em vão, porque Paulo Maluco bateu a porta da frente trancando em seguida as três trancas da porta.

A noite não tardou a chegar e Paulo Maluco passou a mão no fuzil, agarrando-se nele. Havia café frio na xícara e entornou o líquido de uma só vez pela garganta. Lembrou-se de que gostava de português na escola, mas sua mãe o retirara de lá. Ela era mãe solteira, desempregada, e dependia do único filho para vender cocada na vizinhança.

Paulo Maluco lembrou-se com tristeza de que fora filho sem pai, filho da puta. Não admitia que ninguém falasse mal de sua santa mãe, mas ele mesmo tinha o sentimento de rejeição na vizinhança pelo fato de ser filho sem pai. E aos poucos foi se desvirtuando do caminho do bem, depois de retirado da escola por sua mãe.

Contam os que conheciam à sua família que, aos poucos, já não vendia mais as cocadas na vizinhança. Aos poucos, começou a “fazer avião.” Foi aos poucos que começou a entregar pacotinhos de cocaína nas ruas. Em ocasiões, entregava até em domicílios. Com poucos anos, perseverante, montava sua própria boca-de-fumo.

E foi nessa época, em que saiu da casa de sua mãe – ela, casada pela quarta vez com um homem a quem Paulo Maluco detestava – que pôs em funcionamento seu “pequeno negócio”. À essa altura de sua vida convidou dois colegas das ruas para trabalhar com ele. Convidou Canguru e Mata-Moscas.

Mas, aqueles que contam esta estória, leitor, contam que Paulo Maluco sentiu-se sensibilizado depois da visita do velho. Não que, por milagre de uma santa, ele tivesse se tornado um homem bom. Continuava amargo como a bile de um boi assassinado, mal como são más as pessoas diversas vezes vilipendiadas pela vida. Continuava o mesmo.

Infelizmente, a visita do velho não serviu para tocar seu coração de pedregulho, mas pôs-se a pensar. Sua vaidade fora conquistada pela conversa com o velho de quem não sabia sequer o nome. Mas, também não importava isso, uma vez que disse não morar ali. Era certo que não se veriam novamente.

Uma noite, tarde como às duas horas da madrugada, saiu de casa e parou em frente ao muro, para admirá-lo. Haveria algo ali de valioso? Ou o velho não teria chegado ao portão e tocado a campainha? Repetiu as palavras lentamente, mais de uma vez, e se viu aplaudido na sala de aula da vida: Corre Morre Mata.

Procurou pensar como dono de um negócio, então, alguém que precisa zelar pela continuidade de suas transações. Dali por diante pensaria sempre na possibilidade de estreitar seu contato com o consumidor. Haveria de instruir Canguru e Mata-Moscas para que usassem de palavras célebres na rua. Ou não, isso não daria certo?

Não daria certo fazer com que aquilo que estava ali, em sua frente, e àquela altura da madrugada, fosse compreendido como palavras de valor, com palavras de prestígio lá no asfalto, lugar onde acaba o morro. Mas seu perigoso criador ficou a admirar a criação: afinal, o que diziam mesmo as palavras?

Pensou e pensou, até concluir que o velho era gagá. Não entendera nada do que vira... “Corre, para não levar chumbo.” Mas pensou mais um pouco e sentiu-se tocado de verdade pela presunção de sua originalidade. Prometeu a si mesmo que seguiria pichando os muros da rua, assim que tivesse inspiração. Mas nunca mais a teve.